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sábado, 27 de outubro de 2018

Resenha nº 134 - O Vidiota, de Jerzy Kosinski


Resultado de imagem para livro o vidiotaTítulo original: Being There
Título em português: O Vidiota
Autor: Jerzy Kosinski
Editora: Ediouro
Tradutores: Laura Alves e Aurélio Barroso Rebello
Copyright:1970
ISBN: 85-00-01742-2
112 páginas
Gênero: Romance
Origem: Literatura Americana
Bibliografia do autor: The Future is Ours, Comrade: Conversations with the Russians, 1960; No Third Path, 1962; The Painted Bird, 1965; The Art of The Self: Essays à Propos Steps, 1968 ; Steps, 1968 ; Being There, 1970; By Jerzy Kosinski: Packaged Passion, 1973; The Devil Tree, 1973; Cockpit, 1975; Blind Date, 1977; Passion Play, 1979; Pinball, 1982; The Hermit of 69th Street, 1988; Passing By: Selected Essays, 1962-1991, 1992; Oral Pleasure: Kosinski as Storyteller, 2012. Filmografia: Being There, 1979; Reds, 1981; The Statue of Liberty, 1985; Lodz Ghetto, 1989 e Religion, Inc., 1989.

O céu escurecia rapidamente, puxando sobre si um cobertor de nuvens escuras. Empolgado com a leitura deste O Vidiota, eu não prestava atenção à tempestade que se anunciava. Jerzy Kosinski conseguia a proeza de me fazer deixar o mundo real lá fora e me envolver com o pequeno volume à mão, comprado em um sebo. Tinha feito o percurso inverso, há muito tempo assistira ao filme Muito Além do Jardim, com Peter Sellers, adaptado do livro – um filme nada comercial e só agora, ao caminhar para o fim do ano de 2018, tomava contato com a história escrita. Que livro genial! E enquanto o lia, a chuva torrencial chegava, carregando sombrinhas das mesas do clube onde estava, jogando mesas na piscina e promovendo uma verdadeira correria por lugares abrigados. Havíamos passado por uma manifestação política, militantes apaixonados e disse à minha esposa, sentada ao lado: não poderia ter encontrado fato melhor para contextualizar o livro. Vocês verão porquê.

Jerzy Kosinski nasceu na cidade de Lódz, Polônia, com o nome de batismo de Joséf Lewinkopf, em 14/06/1933 e faleceu em 03/05/1991, aos 57 anos, em Manhattan, Estados Unidos. Ele era filho de pais judeus e viveu na parte central da Polônia, sob o nome falso dado pelo pai; Joséf adotou aquele nome – Jerzy Kosinski. Um padre católico-romano deu-lhe um certificado de batismo e a família Lewinkopf conseguiu sobreviver ao Holocausto da Segunda Guerra Mundial, contando com a ajuda de judeus poloneses.

Kosinski diplomou-se pela Columbia University e tornou-se cidadão americano no ano de 1965. Casou-se em 1962, mas divorciou-se quatro anos depois. Mary Hayward Weir, sua ex-esposa, morreu em 1968, de câncer no cérebro. Jerzy contraiu várias doenças (os dados biográficos consultados não dizem quais) e terminou por se suicidar.

Foi acusado de plágio e de falsificar fatos ocorridos. Ao escrever The Painted Bird (O Pássaro Pintado), uma narrativa de guerra, Jerzy teria adulterado dados ao compor sua narrativa, pois relata uma série de torturas e crueldades perpetradas pelos judeus poloneses, quando estes o teriam ajudado a sobreviver. Mais tarde, recebeu a acusação de plágio por Being There (O Vidiota). Para o caso de plágio, vou usar a argumentação de um ensaio de Phillip Roth.

Segundo a crítica da época, Jerzy Kosinski teria plagiado um trabalho em polonês intitulado A Carreira de Nikodem Dyzma, de 1932. Segundo Roth, o livro não foi publicado em inglês, portanto, ele diz não poder comparar. Mas uma justificativa para a originalidade de Kosinski é que aquele livro polonês fora escrito em 1932, época em que a televisão ainda não existia. “Kosinski pode ter tomado emprestada a premissa do idiota cujas declarações simplórias são interpretadas como profundezas, mas ele teve que moldar consideravelmente essa premissa para ajustar-se a seus propósitos”, conclui Roth. Acertadamente, penso.

Este O Vidiota é genial. Narrativa curta, de apenas 112 páginas, aí incluídos um posfácio muito interessante assinado por Xico Sá, e alguns dados biográficos do autor. E desejo fazer uma abordagem diferente, caro leitor. Primeiro, vamos ao enredo do livro.

Chance é o protagonista do livro, narrado a partir de um narrador onisciente. Ele trabalha como jardineiro na casa onde vivem o Velho (personagem sem nome e de quem se sabe pouca coisa além de ele não poder se locomover por ter fraturado a bacia), e uma empregada. Chance mora num quarto com porta para o jardim, a empregada lhe traz alimentação e ele tem, à sua disposição, um aparelho de televisão. Nunca sai da casa. Não possui amizades, não tem documentos, não sabe ler nem escrever – enfim, vive enclausurado na casa do Velho. Acontece que o dono da casa morre e Chance tem de sair do local. É quando acontece um acidente que mudará sua vida: um motorista deu ré num carro luxuoso em cima de Chance, que tem sua perna presa e machucada. A dona do carro, uma mulher rica, o leva para casa dela e trata dele. Aí começam as “peripécias” de Chance, o jardineiro (gardener, em inglês).

A madame entende mal seu nome e passa a chamá-lo de Chauncey Gardiner – sobrenome comum em inglês e fonicamente semelhante a “Chance, gardener”.

Aqui entra a abordagem diferente. Vamos assumir um leitor que não conhecesse nada da obra, nunca tenha ouvido falar deste O Vidiota (não é o meu caso, há muito tempo venho procurando este livro). A minha tese é que o livro – qualquer livro – é que propõe a forma como deve ser abordado, isto é, fornece pistas para que o leitor saiba como deve ler o texto.

Estamos lendo sobre um personagem incomum: desde que ele consegue se lembrar, sempre trabalhou ali na casa do Velho; não tem registro de empregado, não recebia um salário, não saía para lugar nenhum. Não tem documentos que provem legalmente que ele exista. Não sabe ler, não sabe escrever; na verdade, tudo o que ele sabe é cuidar do jardim. Raramente via o tal patrão, já que ele tinha limitações físicas para se locomover. O homem, entretanto, deixava que ele escolhesse a roupa do guarda-roupa dele, Velho, que Chance quisesse.

Um personagem tão estranho assim, numa história tão plana... caro leitor, leia o texto com outros olhos, mais perquiridores! O sentido da narrativa, com absoluta certeza, não está na superfície. O texto tem cara de parábola, tem cheiro de parábola. Ora, este gênero textual é caracterizado por uma linguagem figurada, com coisas que às vezes nos parecem meio incoerentes.

Meu conhecimento de mundo me diz que dificilmente eu conheceria uma pessoa assim, tão sem vestígios; órgãos do governo, bem aparelhados, não conseguiram detalhes da vida de Chance. Nenhum parente. Sequer uma testemunha de que ele, realmente, tenha trabalhado para o Velho.
Por aí vamos. Chance só diz coisas sobre plantio, flores, poda, adubação; seu mundo imediato é o jardim da casa do Velho. Ele não tem contato com o mundo lá fora, a não ser como representado pela tela da televisão. Sempre que perguntado sobre alguma coisa – e ele só sabe o que tenha visto pela tevê e, mesmo assim, seu parco entendimento dos fatos corriqueiros da vida é limitado –, Chance dá uma resposta vinculada ao seu mundo vegetal:
“O Sr. Rand tirou os óculos, soprou nas lentes e poliu-as com o lenço. Depois recolocou os óculos e olhou para Chance em expectativa. Chance percebeu que a resposta não fora satisfatória. Ergueu o olhar e encontrou o de EE.
— Não é fácil obter um lugar adequado, um jardim onde se possa trabalhar sem interferências e cultivar conforme as estações. Não existem mais muitas oportunidades. Na TV... – vacilou e prosseguiu – nunca vi um jardim. Vi bosques e florestas, às vezes uma ou outra árvore. Mas um jardim onde eu possa trabalhar e ver crescer o que plantei... – sentiu-se triste.
O Sr. Rand debruçou-se na mesa em direção a Chance.
— Muito boa a explanação, Sr. Gardiner. Importa-se se eu o chamar de Chauncey? Um Jardineiro! Não é a descrição perfeita do verdadeiro homem de negócios? Alguém que torna produtivo um solo pedregoso, com o trabalho das próprias mãos, que o rega com o suor do próprio rosto, que cria um lugar de valor para a sua família e para a comunidade. Sim, Chauncey, que metáfora excelente! Na verdade, um produtivo de negócios é um operário na sua própria vinha!
O entusiasmo com que o Sr. Rand reagiu aliviou Chance.: tudo ia bem.
— Obrigado, Sr. Rand – murmurou ele.” (página 34)
Daí para frente, todo o discurso sobre jardins, emitido por Chance, será levado à conta de metáforas brilhantes, sendo ajustadas pelos interlocutores de acordo com suas conveniências. Como quando, no programa televisivo de entrevistas, Esta Noite, sobre questões econômicas dos Estados Unidos, nosso personagem diz:
“— Em um jardim tudo cresce... mas antes precisa murchar; a árvore tem de perder as folhas para que nasçam novas e ela fique mais grossa, mais forte e mais alta. Algumas árvores morrem, porém novos rebentos as substituem. Os jardins exigem muitos cuidados. Mas se amarmos o nosso jardim, não nos cansaremos de trabalhar nele e esperar. Então, na estação adequada, certamente o veremos florir.” (página 54)
O entrevistador do programa avalia entusiasticamente a atuação de Chance:
“— Obrigado, muito obrigado, Sr. Gardiner. É de espíritos como o seu que este país tanto necessita. Esperemos que ele ajude a anunciar a primavera da nossa economia. Mais uma vez obrigado, Sr. Chauncey Gardiner, financista, conselheiro presidencial e um verdadeiro estadista!” (página 54)
Hã, como assim? Nosso personagem não era um jardineiro, cuja experiência se resumia a cuidar de um jardim? Como um analfabeto pode ser alçado à categoria de financista, conselheiro presidencial, estadista?! Ou não entendi bulhufas, ou o texto quer me dizer outra coisa...

Elevado à categoria de mito, Chance (rebatizado para Chauncey Gardiner) tem todas as suas falas transformadas em geniais metáforas econômicas. Ou seja, a partir da construção de mito, suas atitudes e seus discurso jamais serão postos em dúvida – as pessoas sempre partirão da sua condição de mito para validar o que é dito. E tanto é assim, que o autor nos deixa uma pista, citando, muito apropriadamente,  a autoridade de Shakespeare (outro mito!):
“— Apreciei enormemente a franqueza do seu pronunciamento pela televisão. Muito hábil, muito hábil mesmo! Ninguém precisa usar de excessiva delicadeza para explicar as coisas, não é? Quero dizer, pelo menos quando se fala para idiotas videomaníacos. Afinal, eles querem mesmo é “ser punidos por um deus, não por um homem igualmente fraco”, não é? (alusão a Shakespeare, Coriolano, Ato III, Cena 1- N. dos T.)” (página 71)
Desta forma de abordagem, uma historinha aparentemente incoerente, cheia de senões, com um personagem bobalhão, cercado de um bando de idiotas se identifica conosco, somos nós mesmos aqueles idiotas videomaníacos, manipulados pelos meios de comunicação. Antes, era somente a televisão e o rádio; hoje, contamos com a acessibilidade das mídias sociais. Somos manipulados com nossa própria adesão. Estamos no reino das fake news, das fofocas eletrônicas via Facebook, Whatsapp e o que mais vier.

Como analisa Xico Sá, em seu posfácio ao livro, Chance é
“Um homem parado, que mimetiza o mundo vegetal e parece ter a propriedade de clorofilar-se de tão... comum, homem que se confunde com a paisagem. De tão entregue à desacontecência do trabalho e dos dias.” (página 103)
Eis porque, amigo leitor, adiei o término desta leitura para ler, primeiro, Bartleby, O Escriturário. Ambas as obras têm em comum o mundo de alienação a que nos relegamos com nossa própria conivência. Os dois personagens primam pela não ação: Bartleby, pela falta de sentido para sua vida; Chance, pela completa falta de interação com o mundo. Chance ficaria melhor como ornamentação, num belo vaso chinês da dinastia Ming:
“No entanto, sem sombra de dúvida, e eu me responsabilizo por isto, que ele nunca se envolveu em qualquer problema legal com qualquer indivíduo, nem com qualquer organização, empresa ou agência particular ou pública, estadual ou federal. Jamais causou qualquer acidente ou prejuízo e, além do acidente com os Rand, nunca se envolveu como terceiro em qualquer dessas situações. Jamais foi hospitalizado; não possui seguros e, por falar nisso, é provável que não tenha qualquer outro documento ou identificação pessoal. Não dirige automóvel, não pilota avião, e em seu nome nunca se emitiu licença alguma. Não tem cartões de crédito, nem talões de cheques, nem cartões de visita. Não é proprietário neste país... Sr. Presidente, nós bisbilhotamos a respeito dele em Nova York: não fala de negócios nem de política, ao telefone ou em casa. Tudo o que faz é assistir TV: no seu quarto o aparelho está sempre ligado: há um barulho constante...” (página 97)
Leitura pertinente aos tempos em que vivemos, com impressionante atualidade da mensagem.

Recomendo, mais que recomendo este O Vidiota; pena que não haja, pelo menos que eu saiba, uma nova edição nas livrarias, quer físicas, quer virtuais. Pena; estão perdendo a oportunidade de causar reflexões, livrarias e editoras.

Mas, afinal, quem se interessa em fazer pensar?

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