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sexta-feira, 31 de março de 2023

Resenha nº 202 - Migrações, de Charlotte McConaghy

 

 




Título original: Migrations

Autora: Charlotte McConaghy

Tradutora: Wendy Campos

Edição: s/n

Editora: Editora Alta Books/TAG Livros

Copyright: 2023

ISBN: 978-85-508-0774-4

 

Charlotte McConaghy é australiana, nascida em Darwin (1988). Autora também do livro Once there were wolves, teve este Migrações publicado pelo Clube de Assinatura de Livros TAG, no mês de fevereiro deste ano.

Você, meu caro leitor, já deve ter lido alguma distopia, estou certo? Este tipo de leitura está na ordem do dia. Livros que abordam situações do pós-guerra nuclear, pós-catástrofes naturais da Terra. Mas nenhuma distopia que eu tenha lido se parece com esta obra da Charlotte.

Uma distopia ecológica. O que seria isso? Não, os humanos não estão (ainda) em extinção, diretamente. O que se extingue são os outros animais. E pela ação do homem. Bem pesquisado, este trabalho aponta as variações climáticas, mas não apenas elas, como a causa do lento desaparecer das espécies. Vejamos como ele se inicia:

“Os animais estão morrendo. Em breve estaremos sozinhos.

Certa vez, meu marido encontrou uma colônia de painhos-de-cauda-quadrada na costa rochosa do indômito Atlântico. Na noite em que me levou até eles, eu não sabia que aqueles eram alguns dos últimos de sua espécie. Só sabia que eram impetuosos para defender suas cavernas noturnas e ousados ao mergulhar nas águas iluminadas pela lua. Passamos um tempo com eles e, por algumas poucas horas na escuridão, pudemos fingir que também éramos assim, selvagens e livres.” (página 3)

A personagem principal, Franny Stone, chega a Groenlândia. Ela procura um barco em que possa viajar, monitorando andorinhas do mar; as aves – algumas portando um dispositivo de localização atado às pernas, são aves com energia para fazerem o maior percurso migratório de todas as espécies. Vão até ao Ártico.

Franny é obstinada. Esta é sua maior característica. Existe outra, entretanto: ela é capaz de amar, mas é incapaz de ficar em algum lugar. É, ela mesma, uma ave sem pouso. E aí, o título Migrações se torna metafórico. Tanto se refere às migrações das tais andorinhas do mar, quanto refere-se às migrações da própria Franny. A obstinação da protagonista e sua constante necessidade de ir e vir darão o mote ao romance.

“Fui tirada da casa da minha mãe e mandada para a Austrália para morar com minha avó paterna. Só tentei mais uma vez, muitos anos depois, quando conheci um homem chamado Niall Lynch e nosso amor era tão profundo que se entranhou em nossos nomes, corpos e almas. Tentei com Niall, assim como fiz com minha mãe. Realmente tentei. Mas o ritmo das marés é a única coisa que nós humanos ainda não conseguimos destruir.” (página 19)

O único barco disponível para a pretensão de Franny Stone é o Saghani – um barco pesqueiro, comandado pelo capitão Ennis Malone. O capitão é um homem dividido, sempre atormentado por profundo dilema. Precisa apanhar peixes, muitos peixes; tem a consciência de que, assim agindo, contribui poderosamente para o extermínio deles.

Talvez, numa camada interpretativa mais profunda, possamos enxergar nesta figura uma crítica ao capitalismo, que exarceba o consumo, não importando a que preço. O preço, aqui, é o extermínio.

O interessante deste livro é que cada personagem da embarcação tem seu próprio mundo dramático: Basil, Samuel, Anik, Lea, Malachai. Léa é a única mulher entre os tripulantes e tem um gênio difícil. Malachai foi para na pesca à procura de uma garota, mas acaba se envolvendo numa relação homoafetiva com Daeshim. Anik é um homem mal-humorado, imediato no Saghani.

Temos, então, duas grandes linhas temáticas neste livro. A primeira, como o leitor já deve ter percebido, os esforços de Franny Stone para não perder de vista as andorinhas do mar, que monitora. A outra, os dramas pessoais da protagonista, acentuados ou, em parte revelados, pela interação dela com os outros componentes da embarcação.

O enredo é do tipo não linear. Isto que dizer que o leitor deverá estar atento para as idas e vindas dos marcos temporais, para ligá-los e dar sentido à narração. Este recurso, embora mais difícil de seguir, no caso de um leitor incipiente, é muito interessante, por servir a uma narrativa cuja personagem principal tem dificuldade de se estabelecer em qualquer lugar.

Em sua infância, Franny já estabelecia uma amizade com um bando de corvos de sua cidade:

“Os corvos passaram a me seguir. Se caminhássemos até as lojas, eles voavam ao nosso lado e pousavam nos telhados das casas. Quando eu perambulava ao longo das muretas de pedra até as colinas, eles sobrevoavam alto. Eles me seguiam até a escola e esperavam nas árvores até o fim das aulas. Eram meus companheiros constantes, e minha mãe, talvez intuindo que eu precisava mantê-los em segredo, fingia o tempo todo que não percebia a devota nuvem negra que mês seguia.” (página 79)

Há no texto citações do poeta inglês Keats, do romântico Byron, do americano Herman Melville, autor de Moby Dick (de resto, uma referência fortíssima para aventuras marítimas). Ainda mais, se fizermos uma analogia entre a obstinação de Franny e do Capitão Ahab.

A narrativa de Migrações possui certo tom lamentoso, como se alguém desesperançado fizesse as anotações, como se segue abaixo:

“Estou no convés, envergonhada. Mas também sinto alívio; estou aliviada pelos peixes, que nadaram para longe do nosso alcance, e pelos pássaros, que já partiram para caçar o próximo cardume. E pela tartaruga. Penso nela enquanto ignoro o capitão e me junto ao resta da tripulação. É nos olhos dela que penso enquanto enrolo as cortiças, girando e girando. Seu olhar enquanto estava pendurada lá, presa na rede, presumindo que seu fim havia chegado.” (página 103)

Este é um livro que vou reler, em algum ponto do futuro. O texto é fluente, aliciante. Trata de um tema bastante atual, objeto de tantas reuniões governamentais sobre o clima. Cada vez mais – esta é uma reflexão minha – os problemas se tornam de amplitude planetária. A solução deles não passa mais por atitudes isoladas, individuais. Tornaram-se coletivas.

Individual, mesmo, é a tomada de consciência. Neste ponto, penso que livros como este são fundamentais.