Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de
Janeiro, no ano de 1926. Segundo relata, desde criança teve problemas de
dicção, somente superados em 1941, após cirurgia. Decidiu ser padre aos 11
anos, para o que ingressou no Seminário Arquidiocesano de São José. Entretanto,
abandonou o projeto em 1945, para iniciar seus estudos de Filosofia na
Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil – hoje conhecida como
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Cony foi funcionário da Câmara
Municipal do Rio, na década de 50, época em que começou também a trabalhar como
redator no Jornal do Brasil. Teve
problemas com a censura dos ditos Anos de Chumbo (Ditadura Militar), morou em
Cuba em 1967 e, ao retornar ao Brasil, foi preso.
Em 1966 recebeu o Prêmio
Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra. Quase Memória levou o Prêmio Jabuti como melhor livro de ficção no
mesmo ano. Em 1998, voltou a receber o mesmo prêmio com A Casa do Poeta Trágico; foi condecorado pelo governo francês com a
comanda da Ordre des Arts et des Lettres.
Publicou Romance Sem Palavras em 1999
e no ano seguinte, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras.
Atualmente, Carlos Heitor Cony é colaborador do jornal Folha de São Paulo.
Antes propriamente de iniciar
esta resenha, devo dizer que este Quase
Memória é o primeiro livro do autor lido por mim. O exemplar em mãos é o da
Biblioteca Folha de São Paulo, coleção esta coeditada com o jornal O Globo,
mudando-se somente o projeto da sobrecapa que acompanha o volume. E eis
exatamente aí um problema: não sei o que aconteceu exatamente, mas a foto
estampada na sobrecapa não tem qualquer nexo com a obra em si. É a foto de um
rosto feminino, entrevisto por detrás de uma espécie de vegetação seca. Creio
que a foto da versão da Folha de São Paulo (veja a imagem acima) é bem mais
adequada, pois nos mostra uma cena antiga da cidade do Rio de Janeiro.
Assumido pelo próprio autor,
esta é uma obra mista, sendo
“... ‘quase-romance’
– que de fato o é. Além da linguagem, os personagens reais e irreais se
misturam, improvavelmente, e, para piorar, alguns deles com os próprios nomes
do registro civil. Uns e outros são fictícios. Repetindo o anti-herói da
história, não existem coincidências, logo, as semelhanças, por serem
coincidências, também não existem.
No quase-quase
de um quase-romance de uma quase-memória, adoto um dos lemas do personagem
central deste livro, embora às avessas: amanhã não farei mais essas coisas.”
(página 7)
O narrador recebeu um volume,
caprichosamente confeccionado, que lhe fora entregue pelo porteiro do hotel no
qual estava:
“Não cheguei
a ouvir o meu nome. Foi a secretária que me avisou: um dos porteiros, de
cabelos brancos, óculos de aros grossos, queria falar comigo. E sabia o meu
nome – eu que nunca fora hóspede do hotel, apenas um frequentador mais ou menos
regular do restaurante que é aberto a todos.
Aproximei-me
do balcão, duvidando que realmente me tivessem chamado. Ainda mais pelo nome:
não haveria uma hipótese passável para que soubessem meu nome.
—
Sim...
O
porteiro tirou os óculos, abriu uma gaveta embaixo do balcão e de lá retirou o
embrulho, que parecia um envelope médio, gordo, amarrado por barbante
ordinário.
— Um
hóspede esteve aqui no último fim de semana, perguntou se nós o conhecíamos,
pediu que lhe entregássemos este envelope...
—
Sim... Sim...
Eu não
sabia se examinava o envelope ou a cara do porteiro. Nada fizera para que ele
soubesse meu nome, para que pudesse dizer a alguém que me conhecia. O fato de
duas ou três vezes por semana eu almoçar no restaurante do hotel não lhe daria
esse direito.” (páginas 9 e 10)
O mistério não compreendido: o
envelope trazia, em uma das faces, subscritada, o nome do jornalista Carlos
Heitor Cony. Era, inquestionavelmente, a letra de seu pai...morto há mais de
dez anos!
O pacote recebido pelo
narrador tem o poder de lhe despertar sinestesicamente, as memórias do pai. O jeito
de atar o barbante, os cheiros, a aparência do embrulho – tudo lhe invocava seu
pai.
A partir desse motivo, o autor
constrói as recordações paternas. E como seria de se esperar, a figura central
de Ernesto Cony Filho, jornalista de profissão, como o próprio filho, precisa
de contextualização para existir dentro da narrativa proposta.
Personagens, personalidades da
época são trazidas para o presente. E entre todas, destaca-se Ernesto, o
jornalista, construído por Heitor Cony como um homem polêmico em suas atitudes,
mas igualmente, um personagem de ricos matizes. Contraditório às vezes, sincero
outras, herói e anti-herói, diletante de óperas, jornalista que recusara ser
editor.
Homem inconstante e ingênuo em
seus empreendimentos, fora jornalista, criador de galinhas e vendedor de ovos,
criador de jacaré num lago feito em sua propriedade, vendedor de rádios,
elaborador fracassado de perfumes. Homem de “sete profissões e quatorze
misérias”.
Entretanto – e sobretudo – um homem
que não reclamava da vida, ganhando um salário razoável para a época,
permitindo-lhe dar uma vida segura e sem luxos para a família.
Em Ernesto, a imaginação
superava a realidade, fazendo dele uma espécie de Pantaleão, tipo criado pelo excelente
Chico Anysio – um mentiroso contumaz. Pois que, certa vez, ganhara uma viagem a
Fiuggi, na Itália, cidade famosa por águas curadoras da fonte Bonifácio VIII.
Não saíra do Brasil, pois, o projeto em andamento, a viagem fora suspensa por
causa de Benito Mussolini – ele havia descoberto uma conspiração contra seu
regime e abortara qualquer viagem a seu país, incluindo a localidade de Fiuggi.
Ernesto Cony é obrigado a
voltar, mas isso não impede de ele narrar as belezas da “viagem”, da “cidade
visitada”. Conta, para quem queira ouvir (e esse dado é verídico), que o famoso
pintor-arquiteto-escultor Michelangelo teve um problema de pedra nos rins
resolvido ao tomar a água daquela fonte. Segundo a Wikipédia, o artista teria
cunhado uma frase de efeito, dizendo “aquelas eram o único tipo de pedra que
ele não podia amar”.
Os elementos ficcionais da
narrativa realmente levam à classificação dela, imprecisamente, como um
quase-romance, uma quase-memória e – eu acrescentaria – uma quase-crônica. Da
estrutura do romance, estão presentes as possibilidades de vários núcleos
dramáticos, não realizados; de memória, a existência de pessoas de existência
real, mas entremeadas de outras, ficcionais; de crônica, pela insistência na
abordagem dos fatos ligeiros, quotidianos, no que resulta uma visão entrevista
do Rio de Janeiro antigo, com seus costumes e cultura. É, portanto, uma obra de
gênero híbrido por excelência.
Tive de usar a disciplina para
vencer as 223 páginas que compõem a obra. O problema não é, per si, a prosa de Carlos Heitor,
divertida, irônica muitas vezes, como podemos constatar pelo trecho abaixo:
“Minha
mãe, que vivera infância e parte da mocidade no interior, depois do susto,
declarou que aquilo não era filhote de jacaré, apenas um lagarto – o que
desmoralizava o pai mais uma vez. Ninguém é grande em sua casa.
Eu
acreditei no jacaré, o pai o levou, apesar de já ser noite fechada, para a
represa. Teve a infeliz ideia de soltá-lo. Nunca mais fui para aqueles lados
até que minha mãe reclamou, o lagarto-jacaré estava crescendo, aparecia no
quintal, já chegara até a porta da cozinha, qualquer dia estaria na sala de
visitas, nos quartos.
O pai
resolveu prendê-lo. Comprou uma comprida corrente, das mais finas, dessas de
amarrar cachorro pequeno. Colocou uma argola onde julgava ser o pescoço do
lagarto-jacaré. Apesar de suas técnicas, descuidou-se, o bicho deu uma volta no
ar e o pai deu um grito. O polegar recebeu a dentada, por pouco perdia o dedo. Sangrou
muito.” (página 88)
Se não é a linguagem, o enredo
em si, qual seria o problema desta obra?
Exatamente, o seu padecimento
é a sua indefinição de gênero. O texto é truncado, sofre de maior fluidez. Há relações
exaustivas de personalidades, enumerações em demasia – que acabam, na minha
opinião – por não serem melhor aproveitadas. Diferentemente da vida real, na
qual vamos encontrando pessoas ocasionais e não significativas para nós, numa
obra ficcional os personagens, os fatos têm de ter função narrativa.
É um livro ruim, então?
Não, absolutamente, não. Autores
humanos, imperfeitos, por definição não produzem obras perfeitas, sem qualquer
senão. Há trechos bem engraçados, contribuindo para tornar a leitura mais
palatável. Há referência ao Rio de Janeiro do início do século XX muito
interessantes. Por exemplo, já sabia da proeminência da Confeitaria Colombo, pelas
histórias contadas por minha mãe, que a frequentava.
Talvez o próprio fazer
literário de Cony tivesse se ressentido, pois essa foi a primeira obra
produzida por ele depois de 20 anos. Escrever – e escrever narrativas – não tem
nada de milagre. É disciplina, é dedicação, é muito, muito trabalho constante.
CONY, Carlos Heitor. Quase Memória. Biblioteca O Globo. Rio
de Janeiro, RJ: 2003