Título em português: Voragem
Autor: Jun’ichirō Tanizaki
Tradutor: Leiko Gotoda
Editora: TAG/Cia. das Letras
ISBN: 978-85-359-3112-9
Copyright: 1931
Gênero: Romance
Literatura Japonesa
Bibliografia do autor (incompleta): The
Tattooer, 1911; Há que prefira urtigas, 1929; Naomi, 1947; Elogio da sombra,
1933; As irmãs Makioka, 1936; Uma gata, um homem, 1940; Diário de um velho
louco, 1961; Um amor insensato, 1924; Voragem, 1928.
Jun’ichirō Tanizaki nasceu em Tóquio,
em 24 de julho de 1986 e faleceu em 30 de julho de 1965. É considerado um dos
maiores escritores japoneses, autor de pelo menos três obras-primas: Há quem prefira as urtigas, Voragem e As irmãs Makioka. Tanizaki era membro de uma família de mercadores
e, em sua juventude, deixou-se encantar pelo mundo ocidental, numa adoração
meio ingênua, e pelas conquistas da modernidade. Entretanto, seus valores
mudaram posteriormente e ele passou a enaltecer a preservação da língua e da
cultura japonesas. Em 1923, foi obrigado a mudar-se para Ashiya, perto de Ozaka
e Kyoto. Esta região forneceu-lhe cenários que vão compor o seu romance As Irmãs Makioka. Para compor as
personagens centrais deste calhamaço (as quatro irmãs), Tanizaki baseou-se na
figura de sua terceira esposa, Matsuko. Esta obra é das poucas do autor nas
quais ele não aborda a infidelidade, fetichismo ou sadismo. A maior parte da
bibliografia de Jun’ichirō tem presente a questão do erotismo, da paixão e suas
loucuras. Para uma parte da crítica, seu trabalho é perpassado por uma edipiana
busca pelo “eterno feminino”.
As 240 páginas de Voragem foram lidas em apenas um dia –
28/07/2018, em regime de maratona. A obra nos conta a história do
relacionamento de quatro personagens: a bela jovem Mitsuko Tokumistu, a Sra.
Sonoko Kakiuchi, o marido desta, Koutaro Kakiuchi e Eijiro Watanuki. Antes de prosseguir com os comentários, devo ressaltar que esta é
minha primeira incursão pela literatura japonesa, tão rica, mas ainda desconhecida
da maioria dos leitores brasileiros, entre os quais me incluía.
Voragem é um romance soberbo. Aborda o amor homossexual entre
Mitsuko e Sonoko; entretanto, não há descrição de quaisquer cenas explícitas de
sexo. Elas dão lugar a uma tensão erótica, a uma paixão fulminante – quase uma
possessão. Sonoko conhece a bela Mitsuko, mas inicialmente não se aproxima
dela. As duas mulheres frequentam uma escola de segunda classe para público
feminino e Sonoko faz, ali, o curso de pintura. Ela não é talentosa, mas ao
reproduzir a figura de uma deusa japonesa, Sonoko reproduz inconscientemente o
rosto de Mitsuko. O falatório começa e em breve, Mitsuko se aproxima de Sonoko.
Isto basta para detonar a paixão voraz (daí o título do romance) desta por
Mitsuko.
O livro é narrado em primeira
pessoa, pela própria protagonista, Sonoko. Ela faz um relato oral a um
personagem nominado apenas por sensei
(conselheiro, alguém respeitável e experimentado pela vida). Tal opção do autor
não é gratuita. Como toda a história é narrada pela própria personagem, não
conseguimos outro ponto de vista para compararmos se tudo que é dito é verdade.
Técnica também usada pelo nosso Machado de Assis, constitui um “narrador não
confiável”.
O Sr. Koutaro Kakiuchi é um homem
bom, correto até demais, mas desinteressante e tedioso para sua mulher. Ele é
dependente dela. A verdade é que, quando a paixão avassaladora envolve os
quatro personagens já enunciados, ninguém escapa: todos manipulam todos, na desesperada
tentativa da manutenção da posse do objeto da paixão. São todos capazes das
piores mentiras, das vilanias. Adeus à ética, ao respeito.
O texto de fácil leitura de
Tanizaki nos vai levando, como verdadeiros voyeurs
destes amantes enlouquecidos, pelos despenhadeiros humanos. E o incrível, Jun’ichirō
escreveu este livro em 1928, numa época em que o tema das relações homossexuais
eram tabu.
Temos de explicitar, a cultura
japonesa teve um período, chamado Era Meiji, no qual as xilogravuras (gravuras
feitas pela aposição de altos-relevos em madeira, como um carimbo) de sexo
explícito eram frequentes. É que a cultura japonesa, antes de seu contato com o
cristianismo ocidental, não via o sexo como algo proibido ou pecaminoso. A fruição
do prazer sexual era legítima. Mesmo nesta Era, o amor homossexual, conquanto
fosse representado, não era tão frequente como o eram as representações do amor
heterossexual.
Magistralmente, o autor nipônico
nos enlaça numa história cheia de reviravoltas, arrependimentos e reatamentos. O
personagem Koutaro nos parece um tanto solto na narrativa, nos dando a ideia de
ser sem função. E sabemos que uma das regras mais respeitadas dentro de uma
narrativa é exatamente esta: não criar personagens que não tenham uma função. Diferentemente
da vida, em que há pessoas com as quais cruzamos apenas uma vez na vida, a
narrativa deve obedecer ao princípio da economia de personagens. Seria, portanto,
uma deficiência de Tanizaki? Longe disto, é mais uma das artimanhas do bruxo
japonês. O Sr. Koutaro terá sua participação revelada a partir de um ponto
tardio no texto.
Voragem não poderia ser melhor achado como título deste livro. Voragem
é algo que não se controla, que se mostra em toda a sua força, que subjuga. Os personagens
desta magnífica história são tragados por suas paixões, são destruídos por elas.
Não posso adiantar mais nada sem cometer spoilers.
A protagonista adianta, já no capítulo
introdutório, o tom intimista da narrativa:
“Vim hoje à sua casa com a intenção de lhe contar todo o incidente, sensei, mas ... noto que interrompi seu trabalho. Tem certeza de que não se importa? Narrada em detalhes, a história é longa e tomará um bocado do seu tempo... Eu podia até registrar os acontecimentos no papel em forma de romance e submetê-lo em seguida à sua apreciação, soubesse eu ao menos redigir melhor. Falando a verdade, eu me pus realmente a escrever há alguns dias num repente, mas o fato é que as ocorrências se embaralhavam em minha cabeça e, despreparada com sou, não consegui nem sequer descobrir por onde ou de que jeito começar. Logo vi que só me restava realmente esta alternativa: pedir-lhe a atenção.” (página 7)
Este interlocutor instituído pela
personagem, presumivelmente, é o próprio autor. Ele não diz nada, a não ser em
alguns poucos momentos, em que apõe ao texto sua observação:
“(Nota do Autor: Tanto quanto a foto me permitia adivinhar, os referidos quimonos idênticos eram de cores espalhafatosas, tão ao gosto das mulheres de Kansai. A viúva Kakiuchi tinha o cabelo puxado para trás e preso em coque na nuca, em estilo sakuhatsu, enquanto Mitsuko trazia o dela em tradicional estilo japonês shimada. Os olhos de Mitsuko – uma típica jovem urbana da região de Osaka – brilhavam expressivos, transbordantes de sedução. Resumindo, olhar de uma especialista na arte de amar, repleto de energia e de poderoso fascínio. Realmente, a jovem era dona de uma beleza rara, e a viúva Kakiuchi não estava sendo apenas modesta ao definir-se como simples elemento destinado a realçá-la. Ainda assim, eu duvidava que Mitsuko fosse modelo de rosto adequado às feições benignas de Yoryu-Kannon.)” (página 19)
Aparentemente, aquele Eijiro
Watanuki seria o antagonista, o vilão da história. Entretanto, neste Voragem não temos um vilão caracterizado
por um personagem. Na verdade, esta função cabe à paixão sentida pelos seres
por ela possuídos:
“Devo realmente ter perdido o controle naquele instante. Mais tarde, Misuko me disse que o rosto pálido e o olhar feroz que eu, trêmula, voltara para ela pareciam realmente ensandecidos. A própria Mitsuko tremia enquanto me encarava de volta em silêncio, intensamente. A pose altiva de Yoryu-Kannon que mantivera até então tinha-se desfeito: tímida, braços cruzados sobre os seios e mãos em torno dos próprios ombros, um joelho ligeiramente flexionado e um pé pousado no outro, ela me parecia agora extremamente bela e tocante. Cheguei a ter pena dela, mas quando vi a pele branca do ombro roliço surgindo entre as tiras do lençol não consegui conte um ímpeto cruel de estraçalhar tudo. Excitada, saltei sobre ela e arranquei o lençol.” (página 40)
Elementos narcísicos também estão
presente nesta relação entre as duas mulheres:
“... Sim, é verdade. Mitsuko comentou certa vez a esse respeito: ‘Receber elogios de uma pessoa do meu sexo me deixa muito mais orgulhosa do que recebê-los de gente do sexo oposto. É natural que um homem considere uma mulher bonita. Mas, quando percebo que sou capaz de atrair alguém do meu próprio sexo, aí sim, sinto-me realmente bela e feliz.” (página 115)
Realmente, a bela Mitsuko tem
consciência de que sua beleza é uma arma de sedução e não tem escrúpulos em
usá-la na conquista de seus objetivos. Tenho lido algumas opiniões de leitores,
apontando a mimada Mitsuko como algoz e a “pobre” Sonoko como vítima. Não concordo.
Se, inicialmente, podemos até entender a bela personagem como manipuladora – e,
de fato, ela o é – e a insatisfeita Sonoko como ingênua, as duas mentem, chantageiam,
manipulam conforme a narrativa avança. O problema é que, como só podemos seguir
o desenvolvimento narrativo pelas interpretações de Sonoko, ela pode exercer e
exerce livremente seu poder de sedução como uma Sherazade saída de As Mil e Uma
Noites, desta vez enredando o leitor com sua capacidade de contar histórias.
O livro não tem mais do que
duzentas e quarenta páginas. Voragem é
admirável também por isso: o texto é enxuto, mais mostrando do que dizendo; o
autor é um extraordinário contador de histórias. Apesar de denso, possuidor de
uma tensão erótica que não descamba para o mais fácil (descrever cenas de sexo
explícito), fornece aqui e ali insinuações do que acontece, seja por uma rápida
descrição, seja pelas argumentações de Sonoko ao perceber as manipulações de
que é vítima ou as outras, das quais é autora.
Voragem é um livro absolutamente sensacional, obra-prima da
literatura mundial. Degustei-a em uma leitura de várias horas, mas que
não se revelou, em nenhum momento, cansativa. Mais que recomendo sua
leitura. Pelo menos para mim, é daqueles livros para muitas incursões; para
o aprendente da escrita, é uma aula de como elaborar um livro que prende, mais
do que prende, enfeitiça. Nota máxima, portanto: 10.
Texto de apoio: Revista TAG Livros, junho/2018.
Texto de apoio: Revista TAG Livros, junho/2018.