Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

domingo, 29 de julho de 2018

Resenha nº 123 - Voragem, de Jun'ichiro Tanizaki


Resultado de imagem para livro voragemTítulo original: Manji
Título em português: Voragem
Autor: Jun’ichirō Tanizaki
Tradutor: Leiko Gotoda
Editora: TAG/Cia. das Letras
ISBN: 978-85-359-3112-9
Copyright: 1931
Gênero: Romance
Literatura Japonesa
Bibliografia do autor (incompleta): The Tattooer, 1911; Há que prefira urtigas, 1929; Naomi, 1947; Elogio da sombra, 1933; As irmãs Makioka, 1936; Uma gata, um homem, 1940; Diário de um velho louco, 1961; Um amor insensato, 1924; Voragem, 1928.

Jun’ichirō Tanizaki nasceu em Tóquio, em 24 de julho de 1986 e faleceu em 30 de julho de 1965. É considerado um dos maiores escritores japoneses, autor de pelo menos três obras-primas: Há quem prefira as urtigas, Voragem e As irmãs Makioka. Tanizaki era membro de uma família de mercadores e, em sua juventude, deixou-se encantar pelo mundo ocidental, numa adoração meio ingênua, e pelas conquistas da modernidade. Entretanto, seus valores mudaram posteriormente e ele passou a enaltecer a preservação da língua e da cultura japonesas. Em 1923, foi obrigado a mudar-se para Ashiya, perto de Ozaka e Kyoto. Esta região forneceu-lhe cenários que vão compor o seu romance As Irmãs Makioka. Para compor as personagens centrais deste calhamaço (as quatro irmãs), Tanizaki baseou-se na figura de sua terceira esposa, Matsuko. Esta obra é das poucas do autor nas quais ele não aborda a infidelidade, fetichismo ou sadismo. A maior parte da bibliografia de Jun’ichirō tem presente a questão do erotismo, da paixão e suas loucuras. Para uma parte da crítica, seu trabalho é perpassado por uma edipiana busca pelo “eterno feminino”.
As 240 páginas de Voragem foram lidas em apenas um dia – 28/07/2018, em regime de maratona. A obra nos conta a história do relacionamento de quatro personagens: a bela jovem Mitsuko Tokumistu, a Sra. Sonoko Kakiuchi, o marido desta, Koutaro Kakiuchi e Eijiro Watanuki. Antes de prosseguir com os comentários, devo ressaltar que esta é minha primeira incursão pela literatura japonesa, tão rica, mas ainda desconhecida da maioria dos leitores brasileiros, entre os quais me incluía.
Voragem é um romance soberbo. Aborda o amor homossexual entre Mitsuko e Sonoko; entretanto, não há descrição de quaisquer cenas explícitas de sexo. Elas dão lugar a uma tensão erótica, a uma paixão fulminante – quase uma possessão. Sonoko conhece a bela Mitsuko, mas inicialmente não se aproxima dela. As duas mulheres frequentam uma escola de segunda classe para público feminino e Sonoko faz, ali, o curso de pintura. Ela não é talentosa, mas ao reproduzir a figura de uma deusa japonesa, Sonoko reproduz inconscientemente o rosto de Mitsuko. O falatório começa e em breve, Mitsuko se aproxima de Sonoko. Isto basta para detonar a paixão voraz (daí o título do romance) desta por Mitsuko.
O livro é narrado em primeira pessoa, pela própria protagonista, Sonoko. Ela faz um relato oral a um personagem nominado apenas por sensei (conselheiro, alguém respeitável e experimentado pela vida). Tal opção do autor não é gratuita. Como toda a história é narrada pela própria personagem, não conseguimos outro ponto de vista para compararmos se tudo que é dito é verdade. Técnica também usada pelo nosso Machado de Assis, constitui um “narrador não confiável”.
O Sr. Koutaro Kakiuchi é um homem bom, correto até demais, mas desinteressante e tedioso para sua mulher. Ele é dependente dela. A verdade é que, quando a paixão avassaladora envolve os quatro personagens já enunciados, ninguém escapa: todos manipulam todos, na desesperada tentativa da manutenção da posse do objeto da paixão. São todos capazes das piores mentiras, das vilanias. Adeus à ética, ao respeito.
O texto de fácil leitura de Tanizaki nos vai levando, como verdadeiros voyeurs destes amantes enlouquecidos, pelos despenhadeiros humanos. E o incrível, Jun’ichirō escreveu este livro em 1928, numa época em que o tema das relações homossexuais eram tabu.
Temos de explicitar, a cultura japonesa teve um período, chamado Era Meiji, no qual as xilogravuras (gravuras feitas pela aposição de altos-relevos em madeira, como um carimbo) de sexo explícito eram frequentes. É que a cultura japonesa, antes de seu contato com o cristianismo ocidental, não via o sexo como algo proibido ou pecaminoso. A fruição do prazer sexual era legítima. Mesmo nesta Era, o amor homossexual, conquanto fosse representado, não era tão frequente como o eram as representações do amor heterossexual.
Magistralmente, o autor nipônico nos enlaça numa história cheia de reviravoltas, arrependimentos e reatamentos. O personagem Koutaro nos parece um tanto solto na narrativa, nos dando a ideia de ser sem função. E sabemos que uma das regras mais respeitadas dentro de uma narrativa é exatamente esta: não criar personagens que não tenham uma função. Diferentemente da vida, em que há pessoas com as quais cruzamos apenas uma vez na vida, a narrativa deve obedecer ao princípio da economia de personagens. Seria, portanto, uma deficiência de Tanizaki? Longe disto, é mais uma das artimanhas do bruxo japonês. O Sr. Koutaro terá sua participação revelada a partir de um ponto tardio no texto.
Voragem não poderia ser melhor achado como título deste livro. Voragem é algo que não se controla, que se mostra em toda a sua força, que subjuga. Os personagens desta magnífica história são tragados por suas paixões, são destruídos por elas. Não posso adiantar mais nada sem cometer spoilers.
A protagonista adianta, já no capítulo introdutório, o tom intimista da narrativa:
“Vim hoje à sua casa com a intenção de lhe contar todo o incidente, sensei, mas ... noto que interrompi seu trabalho.  Tem certeza de que não se importa? Narrada em detalhes, a história é longa e tomará um bocado do seu tempo... Eu podia até registrar os acontecimentos no papel em forma de romance e submetê-lo em seguida à sua apreciação, soubesse eu ao menos redigir melhor. Falando a verdade, eu me pus realmente a escrever há alguns dias num repente, mas o fato é que as ocorrências se embaralhavam em minha cabeça e, despreparada com sou, não consegui nem sequer descobrir por onde ou de que jeito começar. Logo vi que só me restava realmente esta alternativa: pedir-lhe a atenção.” (página 7)
Este interlocutor instituído pela personagem, presumivelmente, é o próprio autor. Ele não diz nada, a não ser em alguns poucos momentos, em que apõe ao texto sua observação:
“(Nota do Autor: Tanto quanto a foto me permitia adivinhar, os referidos quimonos idênticos eram de cores espalhafatosas, tão ao gosto das mulheres de Kansai. A viúva Kakiuchi tinha o cabelo puxado para trás e preso em coque na nuca, em estilo sakuhatsu, enquanto Mitsuko trazia o dela em tradicional estilo japonês shimada. Os olhos de Mitsuko – uma típica jovem urbana da região de Osaka – brilhavam expressivos, transbordantes de sedução. Resumindo, olhar de uma especialista na arte de amar, repleto de energia e de poderoso fascínio. Realmente, a jovem era dona de uma beleza rara, e a viúva Kakiuchi não estava sendo apenas modesta ao definir-se como simples elemento destinado a realçá-la. Ainda assim, eu duvidava que Mitsuko fosse modelo de rosto adequado às feições benignas de Yoryu-Kannon.)” (página 19)
Aparentemente, aquele Eijiro Watanuki seria o antagonista, o vilão da história. Entretanto, neste Voragem não temos um vilão caracterizado por um personagem. Na verdade, esta função cabe à paixão sentida pelos seres por ela possuídos:
“Devo realmente ter perdido o controle naquele instante. Mais tarde, Misuko me disse que o rosto pálido e o olhar feroz que eu, trêmula, voltara para ela pareciam realmente ensandecidos. A própria Mitsuko tremia enquanto me encarava de volta em silêncio, intensamente. A pose altiva de Yoryu-Kannon que mantivera até então tinha-se desfeito: tímida, braços cruzados sobre os seios e mãos em torno dos próprios ombros, um joelho ligeiramente flexionado e um pé pousado no outro, ela me parecia agora extremamente bela e tocante. Cheguei a ter pena dela, mas quando vi a pele branca do ombro roliço surgindo entre as tiras do lençol não consegui conte um ímpeto cruel de estraçalhar tudo. Excitada, saltei sobre ela e arranquei o lençol.” (página 40)
Elementos narcísicos também estão presente nesta relação entre as duas mulheres:
“... Sim, é verdade. Mitsuko comentou certa vez a esse respeito: ‘Receber elogios de uma pessoa do meu sexo me deixa muito mais orgulhosa do que recebê-los de gente do sexo oposto. É natural que um homem considere uma mulher bonita. Mas, quando percebo que sou capaz de atrair alguém do meu próprio sexo, aí sim, sinto-me realmente bela e feliz.” (página 115)
Realmente, a bela Mitsuko tem consciência de que sua beleza é uma arma de sedução e não tem escrúpulos em usá-la na conquista de seus objetivos. Tenho lido algumas opiniões de leitores, apontando a mimada Mitsuko como algoz e a “pobre” Sonoko como vítima. Não concordo. Se, inicialmente, podemos até entender a bela personagem como manipuladora – e, de fato, ela o é – e a insatisfeita Sonoko como ingênua, as duas mentem, chantageiam, manipulam conforme a narrativa avança. O problema é que, como só podemos seguir o desenvolvimento narrativo pelas interpretações de Sonoko, ela pode exercer e exerce livremente seu poder de sedução como uma Sherazade saída de As Mil e Uma Noites, desta vez enredando o leitor com sua capacidade de contar histórias.
O livro não tem mais do que duzentas e quarenta páginas. Voragem é admirável também por isso: o texto é enxuto, mais mostrando do que dizendo; o autor é um extraordinário contador de histórias. Apesar de denso, possuidor de uma tensão erótica que não descamba para o mais fácil (descrever cenas de sexo explícito), fornece aqui e ali insinuações do que acontece, seja por uma rápida descrição, seja pelas argumentações de Sonoko ao perceber as manipulações de que é vítima ou as outras, das quais é autora.
Voragem é um livro absolutamente sensacional, obra-prima da literatura mundial. Degustei-a em uma leitura de várias horas, mas que não se revelou, em nenhum momento, cansativa. Mais que recomendo sua leitura. Pelo menos para mim, é daqueles livros para muitas incursões; para o aprendente da escrita, é uma aula de como elaborar um livro que prende, mais do que prende, enfeitiça. Nota máxima, portanto: 10.

Texto de apoio: Revista TAG Livros, junho/2018.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Resenha nº 122 - Viver em paz para morrer em paz, de Mario Sergio Cortella


Resultado de imagem para livro viver em paz para morrer em pazTítulo original: Viver em paz para morrer em paz
Autor: Mario Sergio Cortella
Editora: Planeta
Copyright: 2017
ISBN: 978-85-422-0976-1
Gênero: Filosofia
Páginas: 174
Bibliografia: Qual é a tua obra?, Vida e carreira: um equilíbrio possível?; Pensar bem nos faz bem; Ética e vergonha na cara; Basta de cidadania obscena; Por que fazemos o que fazemos?, entre outros.

Mario Sergio Cortella é por demais conhecido nos meios de comunicação brasileiros. É filósofo, escritor, com mestrado e doutorado em educação e professor-titular da PUC-SP, com docência e pesquisa na Pós-graduação em Educação. Foi Secretário Municipal de Educação de São Paulo (1991-1992). Foi também Assessor Especial e Chefe de Gabinete do professor Paulo Freire. Exerce atividade como comentarista da Rádio CBN nos programas Academia CBN e Escola da Vida. Tem mais de vinte livros publicados, entre eles, Qual é a tua obra?, Educação, convivência e ética (resenhado neste blog e campeão absolutíssimo de acessos) Vida e carreira: um equilíbrio possível?, com Pedro Mandelli e Pensar bem nos faz bem!
E aqui vai mais uma resenha de um livro do Cortella.  Campeão absoluto de acessos neste blogue, já tendo sido resenhado duas vezes (Por que fazemos o que fazemos e Educação, Escola e Docência – novos tempos, novas atitudes). Gosto muito dos “quatro cavaleiros do apocalipse filosófico”: Leandro Karnal, Mario Sergio Cortella, Luís Pondé e Clovis de Barros Filho. E as obras do Cortella me dão prazer de ler, por alguns motivos bem claros e que vão muito além de me provocar o pensar.
Viver em paz para morrer em paz é um Cortella puro. O texto é agradável de se ler, montado com uma tese, um desenvolvimento e uma síntese ao final. Os temas propostos são aqueles que fazem o nosso dia a dia. Vejamos os 19 títulos nas 174 páginas que compõem o livrinho: 1) O que se aprende com o óbvio; 2) Escrever, para apaziguar; 3) A diferença está na atitude; 5) Experiência e imprevistos; 6) O acolhimento da discordância; 7) O raio da paixão e a construção do amor; 8) Viver em paz; 9) A ecologia, o apego e o erotismo; 10) a graça da vida; 11) A sociedade da exposição; 12) Como me tornei eu mesmo; 13) A criação de diferenciais; 14) Fabricação do passado, anseio de futuro e desespero do consumo; 15) Evolução nem sempre é para melhor; 16) Sexo, o simples e o complexo; 17) Felicidade como vitalidade; 18) Desejo, necessidade, vontade; 19) Razões da existência.
Bem sei que nenhum dos quatro filósofos pops já citados anteriormente goza de unanimidade junto aos que os ouvem. Para muitos, eles não passam de oradores bons de palco e nada mais. O que fazem não seria, de acordo com seus detratores, exatamente filosofia. São apontados como gurus midiáticos, formadores de opinião de um bando de não pensantes.
Não sei você, leitor, mas eu claramente me coloco como alguém que presta bastante atenção à fala destes senhores e sempre acabo caminhando para uma reflexão nova, ou para uma reflexão antiga, mas para a qual me foi fornecido certo ângulo para o qual eu ainda não havia atentado.
Eles não pretendem, em nenhum momento, fazer história da filosofia ou explicar como pensa cada filósofo. Sei também de gente que torce o nariz diante de O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder, por ele, talvez, tornar a história filosófica palatável ao popular. A mesma coisa acontece com os livros de História, escritos por Laurentino Gomes. Podem não descer a grandes profundidades, mas divulgam coisas interessantes ou reflexões oportunas de uma maneira agradável e de acesso ao público.
Não vou pinçar citações capítulo a capítulo, pois isto me levaria fazer longas transcrições. Mas há coisas saborosas e provocadoras – aliás, o subtítulo do livro é já uma provocação: “se você não existisse, que falta faria?
“O que podemos aprender com o óbvio? Podemos aprender que ninguém nasce pronto e vai se desgastando. Nós nascemos crus e vamos nos fazendo. Sim, isso é óbvio, mas como eu aprendi? O que mais aprendi? E o que deixei de aprender? Quais são todas as  coisas que ainda não aprendi? Quando aprenderei? Aprenderei? Sou sempre a minha mais recente edição, revista e ampliada.” (página 19, O que se aprende com o óbvio)
“Assim, o amor é uma sensação de pertencimento recíproco que almeja a plenitude. No fundo, o amor é uma identidade, pois eu me encontro no outro ou na outra. O amor tem turbulências, mas ele não é confrontante, e sim conflitante. O amor, ao contrário da paixão, oferece paz – sendo que paz não é ausência de conflitos, e sim a capacidade de administrar conflitos para que não haja rupturas. Assim, se você consegue guardar o meu amor, se cuida dele, eu fico. Mas, se não cuida nem o guarda, eu parto.” (página 64, O raio da paixão e a construção do amor)
“Na sociedade da exposição e do espetáculo, ver e ser visto é fundamental. O velho ditado ‘diz-me com quem andas e te direi quem és’ ressurge com força. Estar em boa companhia qualifica o acompanhante – até por isso, as pessoas gostam de ir a bares e outros lugares da moda, onde vão artistas e celebridades. Estar cercado de estrelas, de pessoas que brilham, tira o anônimo das sombras, diminui seu pavor da penumbra.” (página 99, A sociedade da exposição)
“Numa cidade como São Paulo, a classe média vai a feirinhas de antiguidades, na praça Benedito Calixto ou no vão do Masp, para comprar a cristaleira da vovó, a poltrona dos anos 1930, a luminária da década de 1940 ou a mesa que nunca é reformada, que comprada para permanecer descascada, algo que nunca se verá nas casas populares. Na casa do burguês, é sinal de riqueza, pois o antigo tem valor.” (página 130, Fabricação do passado, anseio de futuro e desespero do consumo)
“A burguesia cultua o escuro, o tédio. Na Europa, o movimento punk e o movimento dark nascem ligados à ideia de um mundo que não lhes serve, um mundo impregnado de riquezas – mas é a mesma riqueza que os sustenta. O movimento hippie das décadas de 1960 e 1970, do qual fiz parte, carregava a ideia da simplicidade, e a simplicidade era o brilho. Era o Flower Power, o poder da flor, da cor; não o da olheira, do rímel, da Amy Winehouse.” (página 132, Fabricação do passado, anseio de futuro e desespero do consumo)
“Insisto na ideia: Adão e Eva desobedecem  Deus para poderem ser mortais. Para poderem sentir seus corpos. Para sentirem dor e depois alívio. Cansaço e depois descanso. O paraíso devia ser tedioso. A serpente cumpre uma grande função, ainda que de natureza simbólica, ela nos permite a felicidade.” (página 160, Felicidade como vitalidade)
“Henry Kissinger, ex-secretário de Estado dos Estados Unidos da América, disse que ‘sexo é para principiantes; os experientes gostam é de poder’. A questão central do poder é ser visto para não ser esquecido. Kissinger estava certo. O que mais levaria certos políticos brasileiros que já tiveram tudo a continuar na vida pública até a degradação? O que leva alguém a se ver em situações constrangedoras? Para que continuar? Porque eles precisam continuar visíveis.” (página119, A criação das diferenciais)
Como sempre, os textos deste Viver em paz para morrer em paz são fluidos, muito bem escritos e seu autor usa com frequência a etimologia das palavras para daí extrair os conceitos com os quais trabalha:
“O curioso é que a palavra ‘evolução’ se vale de um radical usado no grego e no latim, o radical vol, formador de palavras como ‘envolver’ e ‘vulva’, que mais tarde será utilizado como ‘rol’, de ‘rolar’, que dá ideia de desenvolvimento.” (página 140, Evolução nem sempre é para melhor)
Não classifico o gênero dos textos deste livro como de auto-ajuda; estes são os que dão um conselho bobo a cada parágrafo, como “sorria para o mundo e o mundo sorrirá para você”... hum hum, já tentei e não deu certo...
Se você, leitor, gosta deste tipo de leitura, aconselho a leitura dele. A nota que lhe dou (ao livro, é claro) é um redondo 9,0. Abraços!

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Resenha Nº 121 - A Escolha da Dra. Cole, de Noah Gordon


Resultado de imagem para livro a escolha da dra. coleTítulo original: Choices
Título em português: A Escolha da Dra. Cole
Autor: Noah Gordon
Tradutor: Aulyde Soares Rodrigues
Editora: Rocco
S/Ed.
Copyright: 1995
ISBN: 85-325-0675-5
Bibliografia: Gênero: Romance
Páginas: 320
Literatura americana
Bibliografia do autor: O Rabino, 1965; O Comitê da Morte, 1969; O Diamante de Jerusalém, 1979; O Físico, 1986; Xamã, 1992; A Escolha da Dra. Cole, 1996; O Último Judeu, 2000; Sam e Outros Contos de Animais, 2005; La Bodega, 2007 (no Brasil, todos os títulos publicados pela Editora Rocco).

Noah Gordon nasceu em Worcester, EUA, em 11/11/1926. Serviu no exército, durante Segunda Guerra Mundial; após esta conflagração, entrou para o curso de pré-medicina, por pressão dos pais. Cursou apenas por um semestre. Transferiu-se para o curso de jornalismo e se formou em 1950. Atuou como editor em algumas revistas, tendo publicado seu primeiro romance O Rabino em 1965. Seus trabalhos falam a respeito da história da medicina e ética médica; mais recentemente, passaram a focar a inquisição e a herança cultural judia.
Com este volume, Noah Gordon fecha sua trilogia sobre a história da medicina. Os volumes anteriores, já resenhados para este blogue, foram O Físico e Xamã. Para quem ainda não leu as duas resenhas precedentes, esta saga trata da família Cole e o estranho dom que permeia alguns dos componentes. Tal característica é o poder que têm alguns dos médicos da família de, apenas ao segurar as mãos de uma pessoa, saber imediatamente se ela morrerá em breve. Outra coisa que marca esta família é que são frequentes os membros formados como médicos, em várias épocas. Assim, temos a história de O Físico ambientada na velha Europa do século XI, na qual a medicina começa a ser considerada uma profissão, com orientação científica; convive, por um tempo, com os barbeiros-cirurgiões (sem formação superior).
Xamã executa um salto temporal e a ação vai se localizar nos Estados Unidos, melhor dizendo, na época da formação deste país como nação. Os médicos, ali, lutam ainda com condições muito precárias, inclusive sendo mal remunerados.
A Escolha da Dra. Cole se passa no final do século XX e é ela – uma mulher – desta vez, quem será a personagem central deste volume:
“R. J. lembrava de ouvir a mãe dizer a uma amiga que sua filha havia desafiado o pai pelo fato de nascer mulher. Ele esperava um filho. Há séculos, os primogênitos dos Cole recebiam o nome de Robert com segundos nomes que começavam com a letra J. O dr. Cole tinha pensado muito para escolher o nome do filho – Robert Jenner Cole, o segundo nome em homenagem a Edward Jenner, o descobridor da vacinação. Quando nasceu uma menina e quando se tornou evidente que sua mulher, Bernadette Valerie Cole não podia ter mais filhos, o dr. Cole insistiu para que o nome da filha fosse Roberta Jenner Cole e seria chamada de Rob J. Era outra tradição da família Cole. De certa forma declarar que a criança era um novo Rob J. era declarar que acabava de nascer outro médico na família Cole.” (página 67)
Caberá a ela enfrentar uma das grandes questões femininas em debate, ainda no nosso tempo: o direito de as mulheres disporem do próprio corpo, encerrando uma gravidez indesejada. Questão polêmica, bem se vê, pois, as religiões, de uma maneira geral, são contra o aborto. Uma grande parcela da população também tem posição contrária. E o raciocínio lógico que se antepõe à tese contra o aborto ( a de que o nascituro tem direito à vida) firma suas bases, além de no já alegado direito feminino de gestão do corpo, é a de que se o aborto não fosse legalizado, mesmo assim ele seria executado, pondo em risco a vida de milhares de mulheres, que se serviriam do atendimento perigoso de clínicas clandestinas.
Esta é a crença da Dra. Cole: ela não apoia o aborto, mas acha que as mulheres têm direito à melhor assistência possível para a tomada autônoma desta importante decisão:
“Ela dava valor especial às crianças e não gostava da ideia de evitar que nascessem. O aborto era uma coisa feia e suja. Às vezes interferia em suas outras atividades profissionais, porque alguns dos seus colegas não aprovavam e, por motivos de relações públicas, Tom sempre temeu e detestou seu envolvimento na questão do aborto.” (página 25)
A militância antiaborto, nos Estados Unidos de então, era muito engajada e, de fato, bastante violenta, como se atesta na mesma página 25, um pouco abaixo da primeira transcrição acima:
“Mas estava havendo uma guerra antiaborto na América. Muitos médicos se afastavam das clínicas, intimidados pelas ameaças nada dissimuladas do movimento antiaborto. R. J. achava que era um direito da mulher decidir o que fazer com o próprio corpo, assim, todas as quintas-feiras de manhã ela ia de carro até Jamaica Plains e entrava discretamente na Clínica do Centro de Planejamento Familiar, evitando os grupos que faziam manifestações na frente do prédio, as faixas sacudidas sobre sua cabeça, os crucifixos apontados para ela, o sangue atirado, os vidros com fetos quase encostados no seu rosto e os palavrões.”
 Diferentemente dos protagonistas dos livros anteriores – eles recebem o chamado para a medicina e o aceitam sem muitas delongas – a Dra. Roberta não se dispõe imediatamente a seguir carreira como profissional da saúde. Ela inicia sua vida profissional como advogada. Trabalha em um grande escritório de advocacia, onde terá a oportunidade de defender médicos em processos diversos. Esta experiência será de grande valia para ela. R. J. – abreviatura agora designando Roberta Jeanne – tem uma vida amorosa conturbada, como não poderia deixar de ser. Em parte, isto acontece por causa de sua atuação como médica de uma clínica de abortos, em parte pelas peças que “o destino” lhe prega.
A Dra. Cole deixa a clínica onde trabalhava e vai viver e trabalhar como médica em Woodfield, no interior, entre as montanhas, localidade pela qual se encanta:
“Lentamente, R. J., Pegg e Toby organizaram a rotina de trabalho no consultório. Lentamente também, R. J. aprendeu os ritmos da cidade e se acostumou a eles. Percebeu que as pessoas gostavam de inclinar a cabeça e dizer: ‘Olá, doutora!’ Sentia o orgulho delas no fato de a cidade ter um médico outra vez. Começou a atender chamados em casa, de preferência os que estavam acamados, viajando para ver pacientes a quem era difícil ou impossível ir ao consultório. Quando tinha tempo e ofereciam um pedaço de torta e uma xícara de café, ela sentava com eles à mesa da cozinha, conversava sobre política, sobre o tempo e copiava receitas de cozinha em seu receituário.” (página 105)
O famoso dom já havia se manifestado em sua vida profissional. Entretanto, a médica tem, pela primeira vez, a percepção de que tal manifestação não é uma sentença de morte do paciente – coisa impossível de perceber aos protagonistas dos outros livros da saga, pela própria condição precária da medicina da época. Para R. J., o dom funciona como um aviso e, se ela estiver atenta o suficiente, é capaz de salvar vidas de uma maneira que parece, aos seus pacientes, como coisa de origem mágica:
“O oxigênio penetrou nas células do músculo cardíaco e quando chegou a permissão do controle médico, o medicamento começava a fazer efeito. Quando a sra. Olchowski foi retirada da ambulância pela equipe de emergência do hospital, o dano ao seu coração estava minimizado.
Pela primeira vez R. J. compreendeu que a mensagem que recebia às vezes podia salvar a vida dos seus pacientes.” (página 130)
Apesar de a Dra. Cole viver e trabalhar numa pequena cidade, onde ela é a única médica disponível no raio de quilômetros, a vida dela não é fácil. Ela tem problemas de relacionamento amoroso e familiar, suas amigas – que também são suas pacientes – têm problemas vários, ela às vezes tem de improvisar como qualquer bom médico de interior. Não há laboratório para exames, não há aparelhagem que dê suporte a seus diagnósticos; quando tais coisas são inteiramente necessárias, seus pacientes têm de viajar para cidades maiores, distantes dali. Em situações completamente inusitadas para ela, tem de atuar até como veterinária, ao fazer o parto complicado de um bezerro. E, porque ela aceita, ainda que temporariamente, trabalhar numa clínica de abortos, em outra cidade, às quintas-feiras, as admoestações e os ataques dos militantes antiaborto recomeçam.
Roberta J. é uma personagem que cresce durante a narrativa, entretanto, acredito, este romance não se enquadra na categoria de Bildungsroman – romance de formação – uma vez que o foco da história não é marcar a formação do personagem, acompanhando-o desde a tenra idade até a maturidade. Há dois pontos em que nossa protagonista demonstra estar apta e sentir vontade de dirigir a própria vida:
“— Eu já tenho um lugar – R. J. disse, com uma leve irritação, com a impressão de estar sendo tratada com paternalismo, aborrecida com a ideia de que pessoas bem-intencionadas estavam sempre tentando mudar sua vida.” (página 277)
E esta outra:
“— Você tem de aprender a me deixar dizer não, papai – ela disse, com calma. – Tenho quarenta e dois anos e sou capaz de tomar decisões por minha conta.
Ele virou o rosto. Mas logo olhou outra vez para ela.
— Quer saber uma coisa?
— O quê, papai?
— Você está absolutamente certa.” (página 303)
Ao ler estes três volumes – O Físico, Xamã e A Escolha da Dra. Cole – fica bem evidente que leitores menos atentos podem julgar um livro menos bom do que outro de uma maneira bastante vaga, como uma percepção imprecisa, de superfície. Constantemente, tenho lido comentários a respeito desta saga da seguinte forma: O Físico seria excelente, Xamã está um pouco abaixo e A Escolha da Dra. Cole é um romance fraco. Não concordo e vou dar razões.
Noah Gordon é um autor maduro e domina perfeitamente sua arte de escritor. Constrói personagens muito bons, ricos, complexos. Se a estrutura dos romances é boa, se os personagens são bem-criados, qual seria o problema que levaria as pessoas a opiniões tão desabonadoras ao último volume?
Arrisco-me a dizer que isto se deve à relação personagem-contextualização. Explicando-me: em O Físico, Robert Jeremy Cole atua no século XI – tudo muito difícil, condições anti-higiênicas de uma Europa precária; o protagonista tem de viajar para a Pérsia, para aprender medicina com o sábio Avicena, um ícone do conhecimento, à época. Esta procura incessante, localizada numa época em que tudo parece conspirar contra os anseios do então jovem Robert conferem à obra um caráter quase épico – ele é o herói das aventuras.
Em Xamã, o contexto já é outro, a formação dos Estados Unidos. Rob J. Cole tem de lidar com situação adversa também, mas as dificuldades enfrentadas são mais amenas do que aquelas da Idade Média. A medicina já está mais avançada; a participação do protagonista na Guerra de Secessão Americana é momentânea, pois Rob é pacifista de carteirinha.
A Escolha da Dra. Cole, embora seja enquadrado num outro conflito grande – o do embate entre os pró-aborto e os contra ele, não tem a mesma amplitude dramática em comparação com os cenários dos volumes anteriores. É, sim, uma questão de escolha do autor, mas é também uma coerência ao seu próprio projeto literário.
Noah Gordon não se propõe a livros de aventuras. Ele manipula bem o enredo, disto não tenho dúvidas. Entretanto, para contar a história da medicina, começando pela idade média, passando pelos EUA em formação e terminando no mesmo Estados Unidos dos finais do século XX, e pretendendo não se afastar muito dos fatos históricos de base – o que se pode deduzir da intensa pesquisa histórica feita pelo autor – temos como resultado intensidades diferentes. Indiscutivelmente, a medicina do século XX é mais fácil de exercer do que na idade média.
Recomendo, portanto, a trilogia toda. São todos ótimos livros e nos dão um panorama bom do que ela se propõe traçar. A nota para este último volume, claramente influenciada pela questão subjetiva de me afinar mais com O Físico (gosto se discute, sim), é igual à dada ao Xamã: 9,7.