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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Resenha nº 154 - Jude, O Obscuro, de Thomas Hardy


Resultado de imagem para livro jude o obscuroTítulo original: Jude The Obscure
Título em português: Jude, O Obscuro
Autor: Thomas Hardy
Tradutor: Caetano Galindo
Edição: s/n
Editora: Cia das Letras/TAG Experiências Literárias
Copyright: 2019
ISBN: 978-85-359-3209-6
Gênero: Romance
Origem: Literatura Inglesa
Alguns dados bibliográficos do autor: The Poor Man and the Lady (1866); Remédios Desesperados (Desperate Remedies) (1871); Sob a Árvore Verdejante (Under the Greenwood Tree ) (1872); Um Par de Olhos Azuis (A Pair of Blue Eyes) (1873); Longe da Multidão Estulta (Far from the Madding Crowd) (1874); A Volta do Nativo (The Return of the Native) (1878); The Trumpet Major (1880); Dois numa Torre (Two on a Tower) (1882); O Prefeito de Casterbridge: A Vida e a Morte de um Homem de Caráter (The Mayor of Casterbridge: The Life and Death of a Man of Character ) (1886); The Woodlanders (1887); Wessex Tales (1888); Tess of the d'Ubervilles (1891); Judas, O Obscuro (Jude the Obscure ) (1895); Wessex Poems and other Verses (1898) ; Os Dinastas (The Dynasts) (1903 - 1908); Late Lyrics and Ealier (1922); The Famous Tragedy of the Queen of Cornwall at Tintagel in Lyonnesse (1923)

Comecei a ficar curioso sobre o livro, de autor do qual nada sabia, a partir da indicação da atriz brasileira Fernanda Montenegro. Ela foi a curadora da TAG, para a indicação de Jude, O Obscuro. Mesmo assim, foi o livro que levei mais tempo para ler, e isto não pode ser creditado às dificuldades porventura apresentadas pelo volume. É que, em meio a uma reforma na minha residência, as providências necessárias me roubaram foco, tempo e disposição para ler. Se o leitor se der ao trabalho de verificar, desde setembro do ano passado não publiquei nada no meu blogue. Agora, retorno. Jude, O Obscuro é um clássico fascinante. A obra foi escrita sob as influências da Era Vitoriana inglesa; e Hardy usa todo este mundo vitoriano para se insurgir contra ele. Claro se supor, tal posicionamento lhe rendeu ataques terríveis. De todas as personagens que povoam o livro, aquela de que mais gostei foi Sue Bridehead.

Thomas Hardy nasceu em Higher Bockhampton, Dorset, em 02/06/1940. Faleceu em Max Gate, Dorchester, em 11/01/1928. Novelista, contista, romancista e poeta, notabilizou-se pelo pessimismo radical dos seus romances. Estudou arquitetura e ocupou-se com restauração de imóveis antigos, sobretudo igrejas, concomitantemente à escrita de poemas que publicaria somente ao final da vida.
Casou-se com Emma Lavinia Gifford, em 1874. Após a morte de sua esposa, uniu-se em segundas núpcias a Florence Emily Dugdale.

Depreciado por grande parte da crítica vitoriana, pois que ele era um escritor que não se enquadrava nos moldes morais e valores culturais vitorianos, Thomas Hardy adentra o século XX conquistando, pouco a pouco, a fama de escritor clássico. De fato, seus livros são consumidos até hoje por um público que não lhe é contemporâneo – e isto se constitui numa das características de um clássico, o valor de uma obra que transcende seu tempo.

Creio que aqui se faz necessário uma pequena contextualização sobre a Era Vitoriana, para se compreender melhor o que se passa no romance Jude, O Obscuro e, principalmente, da maneira pela qual se passam os fatos:

O período vitoriano ocorreu sob o governo da rainha Vitória, no Reino Unido, entre os anos 1838-1901, meados do século XIX. Durante estes anos, vigorou no Reino uma época de paz (conhecida como Pax Britannica) e de relativa prosperidade para o povo britânico. Lucros advindos da expansão do Império Britânico e o surgimento da Revolução Industrial foram dois ingredientes que caracterizaram os anos vitorianos.

A classe social mais beneficiada pelas características deste período talvez tenha sido a classe média inglesa. Aqueles empresários que apostaram na revolução que as máquinas causariam se deram bem. Educada com valores rígidos e até mesmo reacionários, a ascenção desta classe média, reforçada pelo bem-estar gerado pela riqueza, poderio, disseminou seu reacionarismo, dando origem a uma sociedade repressora. Nesta mesma época, foram forjados três grandes nomes do pensamento moderno: Sigmund Freud (psicanálise), Charles Darwin (naturalista) e Karl Marx (filósofo, sociólogo e historiador).

No caso específico da literatura – o que nos interessa diretamente – houve duas tendências presentes nos romances do período: de um lado, histórias que falassem dos gostos e hábitos da burguesia florescente e de outro, narrativas com temas da ficção científica. São autores da era vitoriana nomes como Jane Austen, Oscar Wilde, George Eliot, Charles Dickens, Mary Shelley (autora de Frankenstein), as irmãs Charlotte, Emily e Anne Brontë, além do próprio Thomas Hardy e mesmo Sir Arthur Conan Doyle, autor de Sherlock Holmes.

Sobre o período, Charles Dickens disse (a citação ajuda a contextualizar):
“Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice. Foi a época da fé, foi a época da incredulidade. Foi a estação da luz, foi a estação das trevas. Foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero. Tínhamos tudo diante de nós, não havia nada antes de nós. Todos íamos direto para o céu, todos íamos direto para o outro lado.”

Hardy tem um estilo objetivo, sem floreios e bordados, valendo-se de uma narrativa que não descreve muito. Criou locais fictícios onde localizar suas narrativas, como Wessex, a cidade de Christminster, Marygreen, etc. Há mesmo, no livro objeto desta resenha, uma lista de correspondência entre cidades reais e fictícias, baseando-se nas coincidências.

“O mestre-escola estava indo embora do vilarejo, e todos pareciam lamentar. O moleiro de Cresscombe lhe emprestou o cavalo e a inclinada carrocinha branca para levar suas posses à cidade para onde rumava, a cerca de trinta quilômetros dali, sendo que as dimensões de tal veículo se provaram mais do que suficientes para os bens do professor que partia. Pois a casa da escola havia sido em parte mobiliada pela direção, e o único artigo mais volumoso que o mestre possuía, além de seu baú de livros, era o piano de armário que comprara em um leilão durante o ano em que pensou em aprender música instrumental. Mas, arrefecido o entusiasmo, ele jamais desenvolveu habilidade alguma para tocar o instrumento, e desde então aquela compra se transformou em um perpétuo problema para ele quando precisava se mudar.” (página 15)

Deste início se tira algo. O protagonista – pois é do próprio Jude Fawley de que o texto fala – está se mudando com todos os seus poucos pertences para a cidade de Christminster. Sua bagagem maior são seus sonhos. Deseja ser reconhecido como um erudito, ordenar-se pastor. Para isto, dedicou grande parte de seus esforços; enquanto trabalhava como entalhador, estudava com afinco livros usados de latim e de grego. Sonhara com um curso na Universidade local. Procura seguir as passadas de sua grande inspiração, Mr. Phillotson, que tinha exercido igualmente o cargo de professor e se mudara também para Christminster, a meca da cultura.

Arabella e Jude se casam, mas não é propriamente o que se poderia chamar de casamento por amor. São os dois praticamente “empurrados para um relacionamento” pelos julgamentos e valores vitorianos, conforme se pode apreender destas duas passagens:
“Ele caminhava como se tivesse se sentindo um homem diferente do Jude de ontem. De que lhe valiam seus livros? Quais eram suas intenções, até ali obedecidas de modo tão estrito, de não perder um único minuto de seu tempo a cada dia? Perder! Essa definição dependia de seu ponto de vista: ele estava simplesmente vivendo pela primeira vez: não perdendo a vida. Era melhor amar uma mulher do que ser bacharel ou sacerdote; sim, melhor do que ser papa!” (página 49/50)

“Quem não arrisca...! Além disso, você confirma que ele [Jude] é honrado antes de começar. Com esse aí você não corre muito risco. Quem me dera a chance fosse minha! Muitas meninas fazem assim, ou você acha que elas iam conseguir se casar?” (página 52)

Algum tempo depois, Jude descobre Sue Bridehead – de longe, para mim, a personagem mais interessante do livro. Sue é prima de Jude Fawley e as encrencas se anunciam:
“Fingia pensar nela como uma parenta, pois que havia motivos arrasadores que o impediriam e o proibiriam de pensar nela de outra maneira.
O primeiro motivo era o fato de ser casado e de que isso seria errado. O segundo era o de serem primos. Não ficava bem que os primos se apaixonassem, nem quando as circunstâncias pareciam favoráveis ao sentimento. O terceiro: mesmo que ele estivesse livre, numa família como a sua, em que o casamento normalmente significava uma trágica tristeza, o casamento com alguém de seu sangue duplicaria as condições adversas e uma trágica tristeza podia ser intensificada num trágico terror.” (página 90)

Sue Bridehead ora deseja afirmar sua independência e seu direito à individualidade, ora se deixa levar pelos valores morais vigentes. É esta dualidade que, a princípio, soa como falta de caráter ou falta de firmeza em seus propósitos que a torna tão interessante. Não percamos de vista estarmos falando de uma sociedade vitoriana com fortíssimo poder de coação. Claro que havia escapadelas conjugais, mas elas eram mantidas em absoluto segredo... ou viravam escândalos, manchas morais não perdoadas pela sociedade.

Jude não consegue seu ingresso na faculdade, algo tão desejado por ele. Perde seu cargo de professor, perde a possibilidade de se tornar um pastor, como Mr. Phillotson por causa da sua relação com Sue e por sua origem pobre. Numa sociedade vitoriana, somente duas origens têm direitos reconhecidos: os de origem nobre (vinculados à corte) e os que têm dinheiro e poder.

Em um trecho, reproduzindo a fala de Jude, ficam extremamente claros os valores sociais vitorianos:
“Jude a esta altura já voltara a si. ‘Que opinião ele deve ter sobre a vida, meu ou não meu, que seja!’, ele disse. Tenho que dizer que, se estivesse em situação mais favorável, não pararia nem um segundo para pensar em quem era seu pai. Eu o assumiria e o criaria. A miserável questão da paternidade – ela representa o quê, afinal? Que diferença faz, quando se pensa a respeito, se uma criança é sua por um laço de sangue ou não? Todos os pequeninos do nosso tempo são coletivamente filhos dos adultos deste momento e merecem ser cuidados por todos. Aquela excessiva consideração que os pais têm por seus filhos e o desamor que têm pelos outros, são, como sentimento de classe, o patriotismo, o salve-se-quem-puder-ismo, e outras virtudes, no fundo, um pérfido elitismo.” (página 263)

Outro personagem que nos emociona é o Anciãozinho, filho de Jude e Arabella, mas sobre este, leitor, não comentarei para não cometer um spoiler imperdoável. Apenas direi que sobre ele desaba todo o peso de uma sociedade hipócrita, insensível e superficial.

O narrador-observador de Thomas Hardy, cuja voz em terceira pessoa soa isenta o suficiente para analisar as relações humanas é bastante objetiva. Disseca a hipocrisia da sociedade, questiona seus valores e por isso, Hardy – imagino – deve ter sofrido as penas do inferno. Aliás, para seu livro de estreia, ele foi aconselhado a amenizar o tom de crítica social, ou não seria publicado.

A recepção de Jude, O Obscuro foi inamistosa. Tanto assim, que Thomas fez dele seu último romance; a partir daí, dedicou-se a compor poemas, formato literário mais propício à voz do eu-poético e ao autorrecolhimento.

Grande, grande livro. Fernanda Montenegro, curadora da TAG para esta edição, desejo agradecer-lhe a importante indicação. Ainda mais que, em território brasileiro, esta obra já estava esgotada tempo demais. Merecíamos ter acesso a ela.

Por último, mas não menos importante, como este texto de Thomas Hardy soa moderno! Em nenhum momento senti estar lendo, do ponto de vista dos elementos estilísticos, um livro escrito em 1895. Ao criticar aquela sociedade vitoriana, Jude, O Obscuro estende suas pertinentes observações à sociedade contemporânea, até certo ponto. Muitos daqueles valores hipócritas, preconceituosos, só a pouco e pouco têm se amenizado. Pois continuam, estão aí mesmo, o desrespeito à mulher, ao diferente, o desprestígio do indivíduo de origem pobre, que levou um ministro a defender a alta do dólar para que empregadas domésticas não pudessem mais ir à Disneylândia?! É, sem dúvida, um clássico da literatura mundial que merece ser lido e relido, pois ainda tem muito a dizer ao nosso tempo – por isso mesmo é um clássico, e terá um lugar garantido na minha estante.