Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Resenha nº 144 - A Biologia da Crença, de Bruce H. Lipton


Título original: The Biology of Belief
Título em português: A Biologia da Crença
Autor: Bruce H. Lipton
Editora: Butterfley
Tradutora: Yma Vick
Copyright: 2007
ISBN: 978-85-88477-67-4
Gênero: Divulgação científica
Origem: Estados Unidos da América
Bibliografia do autor: The Biology of Belief, 2005 – Filmes: Heal – Himself, 2017; The Business of  Desease – Himself, 2014; Awake in The Dream – Scientist and Messenger, 2013; Seeds of Death: Unveiling The Lies of GMOs, 2012; Vitality – Himself, 2012; The Great Lesson – Himself, 2012; Cancer is Curable NOW – Himself, 2011; Beyond Me – Himself, 2010.

Bruce Harold Lipton nasceu em 21/10/1944, em Mount Kisco, New York. É um biólogo desenvolvimentista americano, mais conhecido por trabalhar com a ideia de que a expressão gênica pode ser influenciada, por via epigenética, por fatores ambientais. Autor do best-seller A Biologia da Crença, é um ex-pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford. Lipton é PhD em biologia do desenvolvimento pela Universidade de Virgínia, em 1971. Foi o ganhador do Prêmio Goi Peace, em 2009, “em reconhecimento ao seu trabalho pioneiro no campo da Nova Biologia”. 

Bruce disse que em algum momento dos anos 80 abandonou seu posicionamento ateísta, convencido de que a maneira como as células funcionavam demonstrava a existência de Deus.

Este foi um dos livros que levei para ler na praia, agora em janeiro de 2019. Já o havia comprado há muito tempo e ele aguardava, sossegadamente, na minha prateleira de leituras a serem feitas. Ao começar a leitura, a inquietação começou. Bruce H. Lipton é um profissional bastante polêmico – alguns o consideram um charlatão. Segue a linha dos cientistas vinculados às teses quânticas, que vêm apregoando que as coisas que aprendemos não são bem como aprendemos. Termos como Teoria das Cordas, Multiversos, Epigenética ficaram dando voltas na minha cabeça, enquanto eu percebia que, a serem verdades as afirmativas de Lipton, eu teria de realizar um duro trabalho de desconstrução do que aprendera nos meus anos de aprendizagem. O tom não é novo para mim, pois já tive contato com ideias “malucas” de Amit Goswami, um cientista quântico indiano e já lera alguma coisa do famoso O Ponto de Mutação, de Fritjof Capra.

Bruce Lipton já começa seu livro quebrando protocolos para uma obra que se quer de divulgação científica:
“Muito tempo se passou entre minha primeira inspiração científica e a criação deste livro. Durante esse período de transformação pessoal, fui guiado e abençoado por verdadeiras musas encarnadas e desencarnadas: as ‘musas inspiradoras das artes’. Sei que devo muito a algumas delas em especial, pois ajudaram a transformar esse trabalho em realidade.
“As musas da literatura”: a intenção de escrever um livro sobre a nova biologia surgiu em 1985, mas o processo só teve início realmente em 2003, quando conheci Patricia A. King. Patrícia é uma escritora freelancer, que mora em São Francisco, na Califórnia, já foi repórter da revista Newsweek, na qual trabalhou como editora-chefe durante dez anos. Jamais esquecerei de nossa primeira reunião. Despejei sobre ela uma série de teorias sobre a nova ciência, páginas e mais páginas de manuscritos, artigos de jornal que eu havia escrito, caixas contendo fitas de vídeo com palestras e vários impressos sobre o assunto.” (página 7)
Como assim: inspiração, musas, encarnadas, desencarnadas, abençoado? Podem ser palavras-chaves de trabalho não acadêmico sobre literatura, artes em geral, mas jamais poderiam estar na apresentação de um livro sobre biologia – assunto materialista, sem qualquer concessão a inspirações, bênçãos, musas ou teorias reencarnacionistas. Que saladas de frutas o Dr. Lipton estaria nos ofertando?!

A escrita é fascinante. Texto ágil, bem-humorado, tão leve quanto possível. Relatando a gênese deste A Biologia da Crença, o Dr. Bruce diz que teve o que ele chama de epifania científica que abalou todas as minhas crenças a respeito da estrutura da vida diante do mar azul do Caribe, quando ele foi lecionar na universidade de lá:
“Tudo começou quando eu estava pesquisando os mecanismos que controlam a fisiologia e o comportamento das células. De repente, percebi que a vida de uma célula é controlada pelo ambiente físico e energético em que ela se encontra e não pelos genes. Os genes são meros modelos moleculares utilizados na construção das células, dos tecidos e órgãos. O ambiente funciona como uma espécie de “empreiteiro”, que interpreta e monta as estruturas e é responsável pelas características da vida das células. Mas é a “consciência” celular que controla os mecanismos da vida, e não os genes”. (página 16)
Pronto, bagunça feita na minha cabeça; “cesse tudo o que a antiga musa canta, que outro valor, mais alto, se alevanta”. Espera aí, mais devagar para eu compreender: então, não são os genes os únicos responsáveis pelos mecanismos de controle da vida, mas esta tal “consciência celular” é que o são? Ou seja, o ambiente ao meu redor tem fundamental influência nos mecanismos que controlam a minha vida? Lamarck tinha razão, com sua lei dos usos e desusos e a tese dos caracteres adquiridos? A tese de Carl Gustav Jung, do Inconsciente Coletivo, tem maior alcance do que eu poderia supor? Augusto Comte, com sua premissa de que “o homem é produto do meio” mereceria ser revista?

Confesso, leitor amigo, meu cérebro deu um nó. E a aparente doidice deste cientista continua um pouco depois, quando ele conclui:
“Fiquei extasiado com a ideia de poder alterar meu destino modificando minhas crenças. O simples fato de perceber que este novo ramo da ciência poderia me fazer passar de mera “vítima” a “cocriador” trouxe-me grande alívio.” (página 18)
Lipton nos conta, nesta época ele era completamente ateu, seguindo a corrente mais tradicional dos cientistas. Citando o lema da profissão desde a época de Charles Darwin, diz: “Deus? Não precisamos de um Deus”. O acaso e não qualquer intervenção divina é o verdadeiro responsável pela vida na Terra. E, sempre segundo Bruce Lipton, os cientistas acreditaram tanto na ideia darwiniana de que as características individuais são passadas aos descendentes pelos genes, que se lançaram numa busca frenética pela decifração do genoma humano.

Mapa genético humano concluído, resultou na decepção – ou, numa verificação incômoda. A complexidade e a diversidade dos seres não podiam ser explicadas pela cadeia de genes, muito simples diante da grandeza e riqueza da vida:
“O verme primitivo Caenorhabditis serve de modelo perfeito para o estudo do papel dos genes no desenvolvimento e no comportamento dos seres. É um organismo que cresce e se desenvolve com muita rapidez, tem um corpo de padrão preciso composto de exatamente 969 células e um cérebro muito simples de 302 células. No entanto, apresenta um repertório único de comportamento e é bastante dócil para o trabalho em laboratório. Tem aproximadamente 24 mi genes (Blaxter, 2003). O corpo humano, composto de mais de 50 trilhões de células, contém apenas 1500 genes a mais que este microscópico e humilde ser.
A mosca-das-frutas, outro espécime preferido dos cientistas para este tipo de estudo, possui 15 mil genes (Blaxter, 2003; Celniker et al., 2002). Portanto, esta pequena mosca, de organismo muito mais complexo, tem nove mil genes a menos que o primeiro verme Caenorhabditis. E quando se trata de comparar homens e ratos a situação é ainda mais crítica. Teremos de passar a tratá-los  com mais dignidade, pois os resultados dos projetos genoma paralelos revelam que humanos e roedores têm aproximadamente o mesmo número de genes!” (páginas 78/79)
Sob o título jocoso A Nova Física: Como Plantar Firmemente Os Pés no Ar, Lipton nos traz uma complexa relação entre biologia e física (quântica).
“Se fosse possível observar a composição de um átomo por meio de um microscópio, o que veríamos? Imagine um vórtice de energia girando e se movendo na areia do deserto. Agora remova a areia. O que sobra é apenas um tornado invisível. Um átomo nada mais é que um conjunto desses vórtices microscópicos. Se observado de longe, parece uma esfera embaçada. À medida que aproximamos o foco, a imagem se torna cada vez mais indefinida até desaparecer totalmente. Na prática, o átomo é invisível. Quando se observa sua estrutura, o que se vê é apenas vácuo. Não há matéria física. Surpreso?” (página 119)
E se não há matéria física, de que biologia estamos falando? Somos feitos de átomos tanto quanto qualquer ser vivo ou mais ainda, tudo o que existe. Mas, se a matéria é uma ilusão, como pregam várias religiões, precisamos ir mais fundo, além das moléculas. Problemas de comunicação (interação) subatômica podem gerar complicações celulares e, por conseguinte, resultar em órgãos doentes e em seres com problemas.

A Biologia da Crença leva esta característica holística às últimas consequências, ao citar a Teoria de Gaia, de James Lovelock. Segundo esta hipótese, a Terra é um organismo vivo e interativo, em que o equilíbrio macro é feito pelo equilíbrio micro. Ou seja, seríamos todos os seres como células compondo o organismo maior – a Terra:
“Estudos recentes do Conselho Britânico de Pesquisas do Meio Ambiente [Britain’s Natural Research Council] confirmam essa possibilidade (Thomas et al., 2004; Stevens et al., 2004). Embora já tenha havido cinco extinções em massa na história de nosso planeta, todas parecem ter sido causadas por eventos extraterrestres, como um cometa que se chocou contra ele. Um dos novos estudos conclui que o ‘o mundo natural está passando pela sexta extinção’ (Lovell, 2004). Mas desta vez o motivo não vem de fora. Segundo Jeremy Thomas, um dos autores desse estudo, “ esta extinção está sendo causada por um organismo animal: o homem.” (página 58)
Seguindo esta linha de raciocínio, a de que o meio ambiente exerce forte influência sobre o mecanismo de nossas vidas, Bruce Lipton defende a paternidade responsável, dizendo que o homem, tanto quanto a mulher, é fundamentalmente responsável pela vida que gera. E mais, dá um verdadeiro nocaute na concepção de que criamos nossos filhos de modo igual. Na verdade – nos diz ele – estando o mundo em constante evolução, criamos nossos filhos, cada um de uma maneira um pouco diferente, em reação ao mundo diferente.

Ele cita estudos em que crianças criadas em orfanatos, bem alimentadas e fisicamente bem cuidadas, apresentam problemas ainda assim, pela falta da afetividade. Isto é real, a falta de amor resulta em dificuldades orgânicas.

Como disse no início, este A Biologia da Crença é um livro interessante de se ler. Pelo menos, isso. Você pode não acreditar em nada do que este doutor Lipton está dizendo. Pode chamá-lo de charlatão, é bem fácil fazer isto. No entanto, a força dos seus argumentos, a propriedade de suas ponderações, o domínio do assunto, apoiado em pesquisa de outros cientistas que, isoladamente chegaram a conclusões intrigantes me fizeram pensar.

Buce H. Lipton não é uma voz solitária. Há vários cientistas que trabalham, hoje, numa linha mais holística. Velhos conceitos estão sendo sacudidos e revisitados; acreditava-se, há algum tempo, que a física quântica viria invalidar por completo e velha física mecânica ou newtoniana. Nada mais apressado.

A física mecânica continua válida para macro estruturas, os planetas continuam girando em suas órbitas previstas. Entretanto, a grande revolução ainda não totalmente compreendida está exatamente nas micro estruturas; aí é o reino da física quântica.

Aprendendo sempre, algo que eu já havia me perguntado sem direcionar pesquisa, é se pessoas com transplantes de coração sofreriam algum tipo de mudança comportamental. A resposta é sim, de acordo com estudos apresentados por Lipton. Ele cita o caso de Claire Sylvia, da Nova Inglaterra. Ela recebeu um coração novo e depois de algum tempo, apresentou mudanças: começou a gostar de nuggets, cerveja, frango e motocicletas, exatamente como o dono anterior do órgão transplantado. Isto permite a Lipton reforçar sua tese de “memória celular”.

Desta forma, caminhar para uma visão espiritualista, como o fez Bruce Harold Lipton é uma forte possibilidade. Vejamos como explica esta “espiritualidade a partir da ciência”:
“Você e eu somos ‘residentes da Terra’ e recebemos informações de uma grande central de controle técnico-espiritual. As experiências que adquirimos durante a vida são enviadas a essa central, nosso espírito. Portanto, a maneira como você vive influencia diretamente as características de seu “eu”. Essa interação corresponde ao conceito de carma. Quando compreendemos isso, passamos a prestar mais atenção à maneira que vivemos neste planeta, pois as consequências de nossos atos se prolongam além da existência de nosso corpo. Tudo o que fazemos tem consequências que podem nos afetar hoje ou mesmo a uma versão futura do nosso ser.” (página 232)
A consciência holística, ou seja, a de que fazemos parte de um grande conjunto, dentro da complexidade da vida – complexidade esta que vem cada vez mais aumentando, à medida que sabemos mais – vai se estabelecendo aos poucos.

Estou entre aqueles que considera este livro como muito importante. Você poderá dizer, “ah, é porque você é espiritualista, acredita nessa coisa da preponderância do espírito sobre a matéria”. É verdade, você estará com a razão. Espiritualidade é algo muito forte em minha formação e não poderia jogá-la fora. A Biologia da Crença traz reforços importantes à minha forma de sentir/ser.

Recentes estudos científicos afirmam que aquele paciente que acredita em alguma forma de espiritualidade se recupera mais depressa e melhor do que aquele que não acredita em nada. Os cientistas dão seu parecer, o cérebro humano é programado para crer em algo.

Ou, talvez, estejamos à beira de descobrir, há mesmo uma complexidade tão grande que, para existirmos, somos seres além da matéria. A Teoria das Cordas e a existência de multiversos nos trazem maravilhosos questionamentos, intensos desafios à nossa inteligência.

Está dada a partida. Leia, meu caro leitor, este A Biologia da Crença. Seja livre para considerar tudo o que está escrito como obra de ficção, esforço intelectual de um homem para apreender a Vida em sua complexa realidade, ou uma síntese para a qual a ciência deve caminhar. O livro é instigante.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Resenha nº 143 - Matéria Escura, de Blake Crouch


Matéria Escura
Título original: Dark Matter

Título em português: Matéria Escura
Autor: Blake Crouch
Tradutor: Alexandre Raposo
Editora: Intrínseca
1ª Edição
Copyright: 2016
ISBN: 978-85-510-0122-6
Gênero: Ficção Científica americana
150 páginas – capa dura
Bibliografia do autor: Desert Places (2004); Locked Doors (2005) ; Abandon (2009) ; Famous (2010) ; Snowbound (2010) ; Break You (2011) ; Run (2011) ; Pines (2012) ; Wayward (2013) ; Good Behavior (2013) ; The Last Town (2014) ; Dark Matter (2016).

Pouca coisa conseguimos apurar sobre Blake Crouch. Ele nasceu em 1978, em Statesville, Carolina do Norte, EUA. Do próprio livro, nos vem a informação de que “Blake Crouch é roteirista e autor de diversos best-sellers internacionais. Sua triologia Wayward Pines foi adaptada para uma série de TV exibida pela Fox. Seus livros já foram traduzidos para trinta idiomas e venderam mais de um milhão de exemplares. Mora no estado americano do Colorado, com a família. Matéria escura é o seu primeiro romance publicado pela intrínseca.”

Livro super badalado, exposto em gôndolas de livrarias, sua bela capa de cor bem chamativa nos convidava à leitura. Mas, como normalmente faço, não compro livro no lançamento; primeiro, pesquiso, garimpo dados sobre ele. Matéria Escura é uma ficção científica. E me surpreendi com o nome da editora Intrínseca estampado na capa: é que já estou acostumado a ver o selo da Aleph em obras do tipo. Afinal, ela é a especialista em ficções científicas no Brasil. Basta ver os livros pertencentes ao universo Star Wars, as obras de Philip K. Dick. Mas não este Matéria Escura. Adquiri-o e o levei para minha viagem à praia. Livraço! História atraente, bem desenvolvida, embora o final soe – e aqui concordo com uma boa parte das resenhas lidas pela internet afora – meio apressado. Mas nada que perca a leitura.

Aqui vai a primeira dificuldade: conceituar o que seja essa tal matéria escura. Ela é um tipo de matéria diferente, que não reage com a comum, e bem pouco consigo mesma (só reage no quesito força gravitacional). Sua existência, portanto, só pode ser inferida a partir de efeitos gravitacionais sobre a matéria visível, como estrelas, galáxias e aglomerado de galáxias.

Trocando em miúdos: algo afeta a gravitação das estrelas e seus aglomerados, não dá para ver o que é, mas as equações apontam para alguma matéria estranha. Esta é a matéria escura. Estimam os senhores astrofísicos que toda a matéria escura do universo perfaz 84,5% de tudo o que existe. E não compliquemos mais.

Jason Dessen é um professor universitário de física quântica básica. É meio saudosista, uma vez que gosta de escutar música em aparelhos analógicos e tem gosto sofisticado, pois curte Thelonious Monk, um compositor e pianista de jazz dos mais importantes.

Jason é casado com Daniela, que dá aulas de pintura, é mãe de Charlie, um adolescente comum. Aliás, comum é uma palavra que pode ser aplicada à família Dessen, se não fossem as coisas incomuns sob esta camada de normalidade. Um professor universitário e uma artista plástica, que exercem seu trabalhos sem maiores pretensões.

Mas nem sempre fora assim. Num trecho meditativo, Jason observa o filho Charlie e nos diz que:
“É estranho ter um filho adolescente. Uma coisa é criar um menininho, e outra, completamente diferente, é uma pessoa quase adulta esperar que você a ensine a viver. Sinto que tenho pouco a oferecer. Sei que alguns pais enxergam o mundo com clareza e confiança, que sabem exatamente o que dizer aos filhos, mas não sou um deles. Quanto mais envelheço, mais entendo as coisas. Amo meu filho. Charlie é tudo para mim. No entanto, não consigo fugir à sensação de que estou em falta com ele. Lançando-o aos lobos sem nenhum recurso além das migalhas de minha perspectiva incerta.
Abro o armário ao lado da pia e começo a procurar um pacote de fettucine.
— Seu pai podia ter ganhado o Nobel – diz Daniela a Charlie.
Dou uma risada.
— Isso é um exagero.
— Não deixe que ele engane você, Charlie. Seu pai é um gênio.— São seus olhos – respondo. – E o vinho.
— É verdade. Você sabe que é. A ciência não avança mais por sua culpa, porque você ama sua família.
Só me resta sorrir. Quando Daniela bebe, três coisas acontecem: seu sotaque original aflora, ela se torna agressivamente gentil e tudo que fala atende à hipérbole.
— Seu pai me disse uma vez... nunca vou esquecer... que a pesquisa científica consome a vida de uma pessoa... Ele disse...” (páginas 11/12)
Observe, caro leitor, como um bom escritor cedo fornece pistas para o conflito que vai acontecer lá na frente, ainda bem distante. Num simples diálogo familiar, temos pistas importantes. Jason, professor universitário, na visão de sua esposa, está estragando sua vida (ele é um gênio, poderia fazer a ciência evoluir) se tivesse feito outra opção (ele ama a família dele, a pesquisa científica consome a vida de uma pessoa).

O tema aqui é terrivelmente incomodante: somos felizes com a vida que temos? Se escolhêssemos outras opções,  não seríamos mais felizes? É exatamente esta questão seminal que faz Matéria Escura ser o excelente livro que é. A roupagem de ficção científica reveste esta questão posta. Quantas vezes, caro leitor, chegamos à maturidade, contemplamos nossa vida, nossos feitos. E do alto das nossas experiências, concluímos que não é que a vida que temos seja ruim, mas a maturidade, o acúmulo de sentires e de saberes nos fazem perceber, nossas escolhas poderiam sim, ter sido outras. E aí, diante da possível angústia que nos ameaça, disparamos o mecanismo de defesa e dizemos para nós mesmos, ok, deixe estar, estou bem assim.

Matéria Escura constitui-se, no entanto, como ficção científica.

Jason Dessen está na festa em homenagem a seu amigo, Ryan Holder; ele acabou de ganhar o prêmio Pavia, por suas contribuições ao desenvolvimento da ciência. De novo, para não deixar dúvidas, o narrador abre espaço para o diálogo acontecido entre Ryan e Jason:
“Detecto uma faísca de aborrecimento na voz dele, talvez raiva, e está aumentando, como se ele estivesse se irritando com alguma coisa.
Tento quebrar a tensão forçando o humor.
— Está chateado comigo, Ryan? Parece até que você acha que o decepcionei.
— Olha, eu dei aula no MIT, em Harvard, na John Hopkins, nas melhores universidades do planeta. Conheci os filhos da puta mais inteligentes por aí, e, Jason, você teria mudado o mundo se tivesse optado por esse caminho. Se tivesse ido em frente. Mas não: está ensinando física elementar para futuros médicos e advogados de patentes.” (página 16)
Pronto. Dedo na ferida.

E Daniela também fez suas opções. Tinha uma carreira promissora, já expusera numa importante galeria. A relação com Jason aconteceu, ela ficou grávida de Charlie e optou por ser uma professora de curso fundamental, ensinando artes.

A festa de Ryan é fundamental, o ponto impulsionador para esta história seminal. Ao sair de lá, Jason é sequestrado, levado para um lugar secreto.  Tiram-lhe toda a roupa, aplicam-lhe alguma droga desconhecida para ele. Quando ele acorda, está num outro universo, no qual ele é tratado como um cientista genial – alguém que contribuiu para importantíssimas aquisições científicas.

Aqui, Matéria Escura vai introduzir outro fenômeno da física quântica, a ideia de multiversos, ou a famosa Teoria das Cordas. Segundo esta proposição, o universo não é único. Pense num instrumento musical, de cordas. Quando se toca uma corda (no violão, por exemplo), outras notas vibram por simpatia. Esta vibração por simpatia é chamada, na teoria musical, de campo harmônico.

À semelhança do campo harmônico, quando o universo vibra faz vibrar outras frequências, criando outras realidades adjacentes. Ao explorar ficcionalmente esta possibilidade, Blake Crouch imagina então os multiversos, cada qual vibrando em frequências diferentes e abrindo construções de vidas diferentes, embora interligadas.

É assim que Jason Dessen inventou uma máquina (uma caixa de um material super-resistente)  capaz de transportar pessoas por estes multiversos, ofertando imensas possibilidades ao viajante. E porque o cérebro humano não poderia acolher experiência de tal envergadura, ele solicita a elaboração, ao seu amigo Ryan, de um composto químico, capaz de causar acomodação aos efeitos da viagem (naquela dimensão Ryan não ganhou o prêmio Pavia).

Eis como o narrador instituído por Crouch explica esta questão complexa da matéria escura e do multiverso, de modo bem didático:
“—Mas essas outras realidades não existem concretamente.
— Na verdade, elas são tão reais quanto a que estamos vivendo agora – diz Jason.
— Como isso seria possível?
— É um mistério. Mas existem evidências. A maioria dos astrofísicos acredita que a força que mantém as estrelas e as galáxias unidas, aquilo que faz todo o universo funcionar, vem de uma substância teórica que não se pode medir nem observar diretamente. O que eles chamam de matéria escura. E essa matéria escura compõe a maior parte do Universo conhecido.
— Mas o que é exatamente essa matéria escura?
— Ninguém sabe ao certo. Há tempos os físicos tentam formular novas teorias que expliquem o que é e como se originou. O que se sabe é que ela tem gravidade, assim como a matéria comum, mas que deve ser feita de alguma coisa que ainda desconhecemos completamente.
— Uma nova forma de matéria.
— Exato. Alguns teóricos das cordas veem nisso um indício da existência do multiverso.” (páginas 119/120)
Jason, então, é um cientista brilhante, comprovando suas pesquisas, viajando pelos multiversos – onde a realidade em cada qual deles é diferente. Ficcionalmente, o autor leva às últimas consequências esta busca por outras escolhas.

Entretanto, o viajante dos multiversos volta ao ponto inicial de suas possibilidades: procura freneticamente por Daniela e por Charlie nestes universos disponíveis. Este seria o drama do ser humano: uma vez tocado pelas experiências significativas que tornaram sua vida exatamente daquele jeito, talvez não seja mesmo possível trocá-las por outras: elas dotariam a vida do viajante do significado mais importante. Ou seja, eu me construo como pessoa na interação com os outros.

Não, mas o livro não dá trégua, não há paz possível: para Jason, a completa valorização, sua vida entendida na mais intrínseca verdade seria aquela mesma, com Daniela, com Charlie – a sua prosaica vidinha – profundamente valorizada pelas (re)visões provocadas pelas viagens nos multiversos.

Recomendo e muito a leitura deste Matéria Escura. Livro que coloca questões primordiais para o ser humano. Certamente, você não precisará entender os conceitos de multiversos, de matéria escura, da teoria das cordas e até de uma conclusão com cara de coisa absolutamente maluca: o universo, os multiversos são criações da mente humana. Era por isso que Jason usava a droga, capaz de fazer o cérebro “delirar” e criar realidades interdimensionais. E sim, uma vertente da física quântica trabalha com esta ideia “maluca”.

Matéria Escura me encantou e me incomodou. Tem me incomodado. Um dos efeitos colaterais deste incômodo é um olhar mais arguto sobre minha própria vida e uma dúvida na cabeça: estarei valorizando devidamente minhas escolhas? Acho que não...

domingo, 20 de janeiro de 2019

Resenha nº 142 - Harry Potter e A Câmara Secreta, de J. K. Rowling


Resultado de imagem para livro Harry Potter e A Câmara SecretaTítulo Original: Harry Potter and The Chamber Of Secrets
Título em português: Harry Potter e A Câmara Secreta
Autora: J. K. Rowling
Tradutor: Lia Wyler
Editora: Rocco
Copyright: 1998
ISBN: 85-325-1166-X
Gênero literário: romance de fantasia
Bibliografia da autora (incompleta) – Série Harry Potter: Harry Potter e A Pedra Filosofal, 1997; Harry Potter e A Câmara Secreta, 1998; Harry Potter e O Prisioneiro de Azkaban, 1999; Harry Potter e O Cálice de Fogo, 2000; Harry Potter e A Ordem da Fênix, 2003; Harry Potter e O Enigma do Príncipe, 2005; Harry Potter e As Relíquias da Morte, 2007. Obras relacionadas à série Harry Potter: Animais Fantásticos e Onde Habitam (roteiro do filme), 2001; Quadribol Através dos Séculos, 2001; Os Contos de Beedle, O Bardo, 2008; Harry Potter e A Criança Amaldiçoada (roteiro escrito por Jack Thorne), 2016; Short Stories from Hogwarts of Power, Politics, and Pesky Poltergeists, 2016; Short Stories from Hogwarts od Heroism, Hardship and Dangerous Hobbies, 2016; Hogwarts: An Incomplete and Unreliable Guide, 2016; Animais Fantásticos e Onde Habitam (roteiro do filme), 2016. Contos: A Prequela de Harry Potter, 2008; Dumbledore’s Army Reunites at Quiddditch World Cup Final, 2014. Adultos: Morte Súbita, 2012. Série Cormoran Strike: O Chamado do Cuco (como Robert Galbraith), 2013; O Bicho-da-Seda (como Robert Galbraith), 2014; Vocação Para O Mal (como Robert Galbraith), 2015; Lethal White (como Robert Galbraith), a ser lançado.

Como viajei para a praia – lugar ótimo para se ler livros mais leves – incluí na minha bagagem alguns livros. Escolhi este Harry Potter e A Câmara Secreta porque já estava programada a leitura deste segundo volume da saga bruxa de J. K. Rowling e por ser uma leitura mais solta. Harry não decepciona: novas aventuras, o ano letivo vai começar em Hogwarts e novos desafios para o protagonista. Tenho facilidade em desligar a tecla “adulto” e ligar a outra, “criança”. Acho até que deveria fazer isto mais vezes. Hermione Granger, os irmãos Weasley, Drago Malfoy, Edwiges, os parentes trouxas de Potter... pouco a pouco, voei para o mundo da fantasia e deixei-me alojar lá por alguns momentos por dia.

Este Harry Potter e A Câmara Secreta começa com uma proposição diferente: Dobby, um elfo doméstico, vem trazer um aviso para o nosso amigo. Aparece, sem mais esta nem aquela, no quarto de Harry, exatamente em sua cama:
“Harry conseguiu não gritar, mas foi por pouco. A criaturinha em sua cama tinha orelhas grandes como as de um morcego e olhos esbugalhados e verdes do tamanho de bolas de tênis. Harry percebeu na mesma hora que era aquilo que o andara observando na sebe do jardim àquela manhã.
Enquanto se entreolhavam, Harry ouviu a voz de Duda no hall.
— Posso guardar os seus casacos, Sr. e Sra. Mason?
A criatura escorregou da cama e fez uma reverência tão exagerada que seu nariz, comprido e fino, encostou no tapete. Harry reparou que ela vestia uma coisa parecida com uma fronha velha, com fendas para enfiar as pernas e os braços.” (página 17)
O aviso, de que era portador, é misterioso e ao mesmo tempo assustador: Harry Potter deve ficar em casa. Não deve retomar as atividades em Hogwarts, sob pena de algo mortal poder acontecer com ele. O elfo doméstico é um tanto meloso com o aprendiz de feiticeiro, pela admiração de estar tratando diretamente com alguém que escapou de Você-Sabe-Quem e por Harry tratá-lo com atenção. Segundo se pode deduzir, elfos domésticos não gozam de bom tratamento de seus amos... nem neste mundo, nem no outro.

Este será um problema de difícil solução, pois se ele não retornar para Hogwarts, perderá a matrícula e o ano letivo, tão duramente começado no livro anterior. Por nada deste mundo Harry fará isto: o mundo dos trouxas não é o seu mundo, não tem afinidade com aqueles trouxas da família Dursley.

No afã de conseguir a promessa solene de Harry Potter, de que não retornará à escola, Dobby lança mão de uma mágica, fazendo o célebre pudim da Sra. Petúnia Dursley flutuar sobre o armário da cozinha. Como não consegue seu intento, encerra o fenômeno de levitação, o que vale ao bruxo duas consequências, ambas nada agradáveis: a admoestação do Tio Valter, que estava com visitas importantes, e pior que isto, uma advertência de Hogwarts:
“Prezado Senhor Potter,
Fomos informados que um feitiço de levitação foi usado esta noite em seu local de residência às 9:12h.
Como o senhor sabe, bruxos de menor idade não têm permissão para fazer feitiços fora da escola e, a continuar esta prática, o senhor poderá ser expulso da referida escola (Decreto para restrição racional da prática de bruxaria para menores, 1875, parágrafo C),
Gostaríamos também de lembrar-lhe que qualquer atividade mágica que possa chamar a atenção da comunidade não mágica (trouxa) é uma infração grave, conforme seção 13 do Estatuto de Sigilo da Confederação Internacional de Bruxos.
Boas férias!”  e segue-se assinatura de Mafalda Hopkirk, do Ministério da Magia. (página 24)
As coisas se complicam mais porque o Tio Válter não perdoa seu sobrinho bruxo por ter atrapalhado uma importante reunião da qual poderia tirar muito proveito financeiro. Além disso, por ação de Dobby, Harry não recebe as cartas dos amigos, que lhe foram enviadas. Tudo parece convergir para que ele realmente não consiga chegar a Hogwarts a tempo para o começo das aulas.

Os irmãos Weasley, entretanto, são tão bons amigos quanto bruxos atrapalhados e roubam o carro voador do pai e, com ele, vão chegar à janela de Harry, para saber por que o amigo não lhes respondia as cartas. Eles arrebentam a grade de segurança da janela do aposento, ajudam na evasão de Harry e o levam para a casa deles.

Peripécias mil vão acontecendo, como a utilização de um pó mágico para chegarem mais depressa ao Beco Diagonal, para comprar os materiais escolares. Harry se distancia da família Weasley e vai cair numa seção de má fama, onde se vendem coisas de magia negra. É resgatado por Hagrid. Não consegue se aprontar a tempo, acaba perdendo o trem para Hogwarts, quando os irmãos Weasley têm a “brilhante” ideia de irem no carro voador do pai, acompanhando lá do alto a linha do trem. O carro enguiça e cai sobre um salgueiro lutador, uma árvore maluca, para lá de animada, que recebe os intrusos a golpes de seus galhos.

Os meninos escapam por pouco de serem expulsos da escola. 
   
Mas o foco desta história é a tal Câmara Secreta – um lugar secreto, em algum ponto do subsolo de Hogwarts, que guarda segredos capazes de desestabilizar toda Hogwarts. Lá existem mistérios. É o lar de um monstro horrendo, um basilisco, de acordo com anotações em uma página de um livro muito antigo, encontradas por Harry:
“Das muitas feras e monstros medonhos que vagam pela nossa terra não nenhum mais curioso ou mortal do que o basilisco, também conhecido como o rei das serpentes. Esta cobra, que pode alcançar um tamanho gigantesco e viver centenas de anos, nasce de um ovo de galinha, chocado por uma rã. Seus métodos de matar são os mais espantosos, pois além das presas letais e venenosas, o basilisco tem um olhar mortífero, e todos que são fixados por seus olhos sofrem morte instantânea. As aranhas fogem do basilisco, pois é seu inimigo mortal, e o basilisco foge apenas do canto do galo, que lhe é fatal.” (página 245)
Seria esse tal de basilisco o responsável pelos últimos acontecimentos estranhos em Hogwarts? Alguns alunos são encontrados em estado de suspensão de vida. Quem seria o responsável pela abertura da Câmara Secreta, e a consequente libertação do monstro? 
  
O ponto mais alto desta trama, entretanto, está por vir. Harry Potter decide entrar na Câmara Secreta e desvendar de vez o que acontece lá. Isso era tudo o que Dobby desejava evitar: a luta final do bruxo contra um adversário de peso que, se subjugar Harry, estará livre para destruir Hogwarts e executar seus alunos.

Harry Potter, entretanto, conta com a ajuda de ninguém menos que Alvo Dumbledore, o maior feiticeiro que já existiu.

Recomendo a leitura deste Harry Potter e A Câmara Secreta, embora – na minha opinião – seja um livro que esteja abaixo do primeiro da série, Harry Potter e A Pedra Filosofal (resenhado neste blogue). Mesmo assim, é uma diversão e tanto.

J. K. Rowling tem o grande mérito de estar de olho no desenvolvimento psíquico de seu público e, por isso, vai adaptando a trama, vai sofisticando o enredo à medida que seu público amadurece. Quer dizer, cada livro vai progressivamente ficando com enredo mais trabalhado. É ler para ver.

domingo, 13 de janeiro de 2019

Retomando as atividades... é 2019!


Biblioteca de Alexandria
(imagem reproduzida)

Caros leitores deste blogue, a partir de agora, retomamos as resenhas de livros. Desejo ler pelo menos, a mesma quantidade de livros lidos no ano passado – 29 ao todo. Acreditamos podermos até mesmo extrapolar esse limite, pois se lermos ao menos três obras por mês, atingiremos trinta e seis.
A vida moderna é cheia de obrigações, apelos para dirigirmos nossas atenções e disposições para outra coisas; ler briga com assistir televisão, dedicar tempo às mídias sociais pelo smartphone, etc.
Entretanto, a paixão pelos livros nos faz concentrar nossos esforços aos livros. Até o final deste mês, desejo publicar uma lista mínima de livros a ler durante o ano. Assumo que este limite mínimo é o de 29 livros.
Portanto, não percamos tempo. Bem-vindos a este ano de 2019!