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segunda-feira, 20 de maio de 2019

Resenha Nº 149 - O Olho Mais Azul, de Toni Morrison


Resultado de imagem para livro o olho mais azulTítulo original: The Bluest Eye
Autora: Toni Morrison
Tradutor: Manoel Paulo Ferreira
Edição: s/n
Editora: TAG/Cia das Letras
Copyright: 1970
ISBN: 978-85-359-3196-9
Gênero Literário: Romance
Origem: Literatura Americana
Bibliografia: O Olho Mais Azul, 1970; Sula, 1974; Song of Solomon, 1977; Tar Baby, 1981; Amada, 1987; Jazz, 1992; Amor, 2003; A Mercy, 2008; God Help The Child, 2015. Prêmio Nobel de Literatura de 2013.

O friozinho soprava por baixo das portas fechadas e pelas gretas mínimas das janelas. O sítio estava num recanto isolado e não havia internet para me incomodar. Apenas o som da televisão de tubo chegava de longe aos meus ouvidos, mas televisão, sinto muito dizer, não me apetece tanto. Aí dei razão para a letra do Djavan: um dia frio, um bom dia para ler um livro. A coisa que menos eu queria era sair de dentro das cobertas. Conheci Toni Morrison há algum tempo, quando pesquisava na rede mundial algumas informações sobre outro livro, nada a ver com Toni e dei com o nome dela. Toni Morrison. Escritora negra norte-americana. Este O Olho Mais Azul foi o primeiro romance dela. Certamente, não é o livro da minha vida, acredito que Amada seja melhor, mas este é um bom livro. Leitura agradável, não é; denso, fala das agruras de se ser negro numa sociedade segregadora. É leitura para reflexão, incomoda.

Toni Morrison (o nome verdadeiro é Chloe Antony Woford) nasceu 18/02/1931, em Lorain, Ohio, Estados Unidos. É a segunda dos quatro filhos de uma família de classe média baixa, profundamente afetada pela Grande Depressão. Morrison sempre fora uma leitora ávida e seus escritores prediletos eram Jane Austen e Liev Tólstoi. Do pai herdou o talento para contar histórias. Sempre as ouvia, envolvendo as questões entre negros e brancos. Consta que ela se converteu ao catolicismo aos 12 anos de idade; recebeu então o nome de batismo Anthony, que deu origem à sua designação literária, Toni.

Em 1958, Toni Morrison se casou com o arquiteto jamaicano Harold Morrison que também lecionava, como ela, na Universidade de Howard. Ela concluiu seu mestrado em inglês com a tese sobre o suicídio nos livros de William Faulkner e Virginia Wolf. Toni Morrison ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 1993.

Apesar de abordar aspectos feministas em seus livros, ela não se considera como tal, tendo dito, certa feita, “não concordo com o patriarcado e não acho que ele deva ser substituído pelo matriarcado. É uma questão de acesso igualitário, de abrir portas para todo os tipos de coisa.” Os críticos costumam apontar, entretanto, aspectos de um feminismo pós-moderno em suas obras.

Seu trabalho mais famoso é Beloved (Amada); quando foi anunciado que a obra não ganhara nenhum prêmio, 48 críticos literários e escritores negros protestaram.
“Esta é a casa. É verde e branca. Tem uma porta vermelha. É muito bonita. Esta é a família. A mãe, o pai, Dick e Jane moram na casa branca e verde. Eles são muito felizes. Veja a Jane. Ela está de vestido vermelho. Ela quer brincar. Quem vai brincar com Jane? Veja o gato. Está miando. Venha brincar. Venha brincar com a Jane.  O gatinho não quer brincar. Veja a mãe. A mãe é muito boazinha. Mãe, quer brincar com a Jane? A mãe ri. Ria, mãe, ria. Veja o pai. Ele é grande e forte. Pai, quer brincar com a Jane? O pai está sorrindo. Sorria, pai, sorria. Veja o cachorro. Au-au, faz o cachorro. Quer brincar com a Jane? Veja o cachorro correr. Corra, cachorro, corra. Olhe, olhe. Aí vem um amigo. O amigo vai brincar com a Jane. Eles vão jogar um jogo gostoso. Brinque, Jane, brinque.” (página 13)
Assim é o parágrafo inicial deste O Olho Mais Azul. As irmãs Frieda e Claudia recebem a adolescente Pecola Breedlove em casa:
“Ela dormia na cama conosco. Frieda na beirada, porque é corajosa – nunca lhe ocorre que, se a mão dela ficar pendurada na beirada da cama, ‘alguma coisa’ vai sair rastejando lá debaixo e arrancar os dedos dela com uma mordida. Durmo junto da parede porque esse pensamento me ocorreu. Portanto, Pecola teve que dormir no meio.
Mamãe tinha dito, dois dias antes, que estava chegando um ‘caso’ – uma menina que não tinha para onde ir. O condado a havia colocado em nossa casa por alguns dias, até decidir o que fazer cm ela ou, mais precisamente, até que a família se reconciliasse. Deveríamos ser simpáticas com ela e não brigar. Mamãe não sabia ‘o que dá nas pessoas’, mas o Breedlove, aquele cachorrão, tinha incendiado a própria casa, dado uma surra na mulher e o resultado foi que ficou todo mundo na rua.” (página 26)
Aí ficamos sabendo que ‘ficar na rua’ era o pior que poderia acontecer a alguém, naquele condado. Era muito diferente de ‘ser posto para fora’. Conforme nos explicita a narradora, ‘estar na rua’ era algo degradante, um fato físico e irrevogável, “definindo e completando nossa condição metafísica”. Já ser posta para fora, a pessoa pode ir para outro lugar, o peso é menor e não definitivo.

Pecola Breedlove é descrita como uma garota muito feia, não por ser negra, mas por ser da família Breedlove, como o pai, Cholly e a mãe, Sra. Breedlove, Sammy, que estava com outra família. Cholly estava preso.
“Nos poucos dias que Pecola passou conosco, nós nos divertimos. Frieda e eu paramos de brigar uma com a outra e nos concentramos na hóspede, fazendo força para que não se sentisse na rua.” (página 28)
Pecola tinha um desejo secreto: desejava ter olhos azuis:
“Toda noite, sem falta, ela rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente. Embora um tanto desatinada, não tinha perdido a esperança. Levaria muito, muito tempo para que uma coisa maravilhosa como aquela acontecesse.” (página 56)
É que, na cabeça de Pecola, tudo se arranjaria para ela quando tivesse olhos azuis. Eram uma marca física de beleza máxima e teria o dom de mudar sua triste realidade.

A relação dos pais era um tanto complicada, pois Cholly, seu pai, sempre chegava bêbado em casa, se atirava sobre a cama e dormia. Sua mãe tentava obter alguma reação dele e não conseguia; por isso, terminou sendo uma mulher pessimista e azeda, como fica claro nesta passagem em que – digamos – ela tem uma relação muito especial com Jesus:
“E uma vez, quando um gesto de bêbado atirou Cholly contra o fogareiro em brasa, ela gritou: ‘Pega ele, Jesus! Pega ele!’. Se Cholly tivesse parado de beber, ela jamais teria perdoado Jesus. Precisava desesperadamente dos pecados de Cholly. Quanto mais ele afundasse, quanto mais selvagem e irresponsável se tornasse, mais esplêndidas se tornavam ela e sua tarefa. Em nome de Jesus.” (página 52)
O livro conta com várias referências a filmes americanos. Por exemplo, o nome de Pecola fora tirado do filme Imitação da Vida, em que “a moça mulata odeia a mãe porque ela é preta e feia, mas depois chora no enterro”. O filme tem no elenco Sandra Dee, Lana Turner, Juanita Moore, Susan Kohner e John Gavin.

Esta questão do racismo está presente no livro todo, como deixa claro a passagem seguinte:
“Meninos brancos; a mãe não gostava que ele brincasse com pretinhos. Ela lhe havia explicado a diferença entre mulatos e pretos. Era fácil identificá-los. Os mulatos eram limpos  e silenciosos; os pretos eram sujos e barulhentos. Ele pertencia ao primeiro grupo: usava camisas brancas e calças azuis; cortava o cabelo o mais rente possível para evitar qualquer sugestão de carapinha e a risca era desenhada pelo barbeiro. No inverno a mãe passava loção Jergens no rosto dele para que a pele não ficasse cinzenta. Embora fosse clara, a pele podia ficar cinzenta. A linha entre mulato e preto nem sempre era nítida; sinais sutis e reveladores ameaçavam erodi-la e era preciso estar constantemente atento.” (página 96)
Em sua adolescência, Pecola sonhara ser bela, branca e loura como Shirley Temple, atriz-mirim, considerada um prodígio, estrela de filmes como Anjo Azul e A Pequena Órfã. Quanto mais se fortalece este seu desejo, mais o entorno social lhe lembra sua condição de negra e feia.

Pecola procura, então, certo Soaphead Church, uma espécie de curandeiro do lugar. Eis a descrição da cena e do que ela lhe pede:
“Soaphead Church a mandou entrar.
“O que é que eu posso fazer por você, minha criança?”
Ela ficou ali parada, com as mãos cruzadas sobre o estômago, uma barriguinha um pouco saliente. “Talvez. Talvez o senhor possa me ajudar.”
“Ajudar como? Diga, não tenha medo.”
“Os meus olhos.”
“O que é que tem os seus olhos?”
“Eu quero que eles sejam azuis.”
Soaphead franziu os lábios e tocou com a língua uma obturação de ouro. Aquele era o pedido mais fantástico e, ao mesmo tempo, mais lógico que já lhe tinham feito. Ali estava uma menina feia pedindo beleza.” (página 181)
Mal sabe Pecola que a obtenção dos olhos azuis, tão desejados, não será suficiente para lhe dar a vida tão sonhada.

O Olho Mais Azul é o primeiro romance de Toni Morrison. Embora tenha gostado dele no geral, não gostei – e isto é inteiramente pessoal – do investimento que a autora faz na figura de Cholly, o pai de Pecola. A caracterização deste personagem gasta várias páginas. Explico-me melhor: em literatura, se os personagens são os principais, justifica-se o autor investir muito na caracterização dele. Agora, se o personagem é secundário, a carga de informações sobre ele não deve ser tão grande.

Não é o caso, mas, se na vida, há pessoas que entram e saem da nossa vida, apenas tocando nosso caminho, numa obra literária tal situação deve ser evitada por uma questão de economia de meios. Somente entram personagens que têm alguma função na história.

Exceto este senão, o livro é muito bom. Uma frase que fecha o romance mereceria estar numa moldura:
“O amor nunca é melhor do que o amante. Quem é mau, ama com maldade, o violento ama com violência, o fraco ama com fraqueza, gente estúpida ama com estupidez, e o amor de um homem livre nunca é seguro. Não há dádiva para o ser amado. Só o amante possui a dádiva do amor. O ser amado é espoliado, neutralizado, congelado no fulgor do olho interior do amante.” (página 212)
Não concordo cem por cento com tais dizeres. É coerente com a história de vida da personagem, com o tema do livro. E é bonito, produz reflexão.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Resenha Nº 148 - A Velocidade da Luz, de Javier Cercas


Resultado de imagem para livro a velocidade da luzTítulo original: La Velocidad de la Luz
Autor: Javier Cercas
Tradutor: Sérgio Molina
Edição: 2ª
Editora: Editora Azul/TAG Livros
Copyright: 2018
ISBN: 978-85-2506-751-7
Gênero: Romance
Origem: Espanha
Bibliografia do autor (incompleta): El Móvil, 1987; El Inquilino, 1989: El Vientre de La Ballena, 1997; Soldados de Salamina, 2001; La Velocidad de La Luz, 2005; Anatomia de Un Instante, 2009; Las Leyes de La Frontera, 2012; El Impostor, 2014.
Imagem: SKOOB




Este é um livro que tem a ensinar a quem deseja, um dia, escrever. Várias referências metaliterárias aparecem no texto. Javier Cercas tem uma habilidade enorme em misturar dados da realidade e dados ficcionais, produzindo um todo coerente. Rodney, o protagonista da história, carrega seus fantasmas por ter combatido no Vietnã, é um sujeito taciturno e esquisitão. Na verdade, A Velocidade da Luz é sobre um livro que é escrito pelo narrador sobre a vida do amigo Rodney Falk. O narrador arranja um emprego, por intermédio do amigo Marcelo Cuartero, numa cidadezinha dos Estados Unidos, chamada Urbana. Ler este livro foi muito bom. Escrito com inteligência e prazer, é assim uma prova de fogo do escritor Javier Cercas. Sim, pois ele havia escrito o famoso Soldados de Salamina – considerado por muita gente como a sua obra-prima. Ora, não é todo dia que qualquer autor, após produzir um romance de referência (apontado como o melhor livro escrito em língua espanhola do século XX), consegue escrever outro, com excelência. Sem dúvida, este A Velocidade da Luz é um ótimo livro. Não posso fazer comparações, pois não li ainda o Soldados de Salamina. Mas tenho vontade de ler mais coisas deste ótimo escritor. Meu exemplar da obra anterior aguarda sua vez, na prateleira da minha estante.

Javier Cercas Menas nasceu em 1962 em Cáceres, Espanha. Acumula nada menos que 23 prêmios literários. Atua como escritor e tradutor. Um aspecto muito frequente em sua obra é a reflexão sobre o passado espanhol e do mundo ocidental e suas relações com o presente. Seu último livro, El Monarca das Sombras (O Monarca das Sombras, em português), foi publicado em 2017 e versa sobre a guerra civil espanhola.

O presente romance se inicia da seguinte forma:
“Hoje eu levo uma vida falsa, uma vida apócrifa, e clandestina, e invisível, porém mais verdadeira que uma vida de verdade. Mas eu ainda era eu quando conheci Rodney Falk. Isso foi há muito tempo e foi em Urbana, uma cidade do Meio-Oeste americano onde passei dois anos no final dos 80. A verdade é que, sempre que me pergunto por que fui parar justo lá, digo a mim mesmo que fui parar justo lá como poderia ter ido parar um qualquer outro lugar. Vou contar por que, em vez de ir parar em qualquer outro lugar, fui parar justo lá.” (página 15)
Marcelo Cuartero é um professor universitário, a respeito de quem diz o protagonista deste livro, “a cujas aulas deslumbrantes eu tinha assistido com fervor, embora fosse um aluno medíocre”.

É Cuartero quem fala de uma vaga para professor de literatura espanhola, numa cidadezinha perdida no Meio-Oeste americano, chamada Urbana. Tipicamente, uma cidade de interior, dominada pelo campus universitário. Pouco se sabia daquela localidade, a não ser que tinha sido cenário para o filme Quanto Mais Quente Melhor, com Tony Curtis e Jack Lemmon.

Eis como o protagonista caracteriza seus companheiros professores universitários:
“Eu me lembro muito bem desse jantar, entre outras razões porque algumas das coisas lá ocorridas, receio, dão o tom exato do que devem ter sido minhas primeiras semanas em Urbana. Os três colegas que compareceram tinham mais ou menos a minha idade; eram dois homens e uma mulher. Os dois homens dirigiam uma revista semestral chamada Línea Plural: um deles era um venezuelano chamado Felipe Vieri, um sujeito muito lido, irônico, um pouco esnobe, vestido com um apuro não isento de afetação; o outro se chamava Frank Solaún, era um americano de origem cubana, corpulento e animado, de sorriso brilhante e cabelo empastado com gel. Quanto à mulher, seu nome era Laura Burns, e, como eu soube mais tarde pelo próprio Borgheson, pertencia a uma família riquíssima e aristocrática de San Juan de Porto Rico (seu pai era dono do maior jornal do país), mas o que mais me chamou a atenção nela naquela noite, além de seu inequívoco físico de gringa – alta, robusta, loura, de pele branquíssima –, foi sua intimidadora propensão ao sarcasmo, a duras penas refreada pelo respeito que a presença de Bogheson lhe inspirava.” (página 21)
Entretanto, é na figura de Rodney Falk que a narrativa de Javier Cercas vai se centrar. Sempre em seu estilo fluente, fácil de ler, o autor nos adianta alguma coisa deste personagem tão importante para o romance:
“Mas não foi em nenhuma daquelas festas multitudinárias que eu conheci Rodney Falk, e sim na sala que dividimos durante um semestre no quarto andar do Foreign Languages Building. Nunca vou saber se me deram essa sala por acaso ou porque ninguém queria dividi-la com Rodney (tendo mais à segunda alternativa), mas o que sei é que, se não fosse por isso, o mais provável é que Rodney e eu nunca tivéssemos feito amizade, e tudo teria sido diferente, e minha vida não seria o que é, e a lembrança de Rodney teria sumido da minha memória como depois de alguns anos sumiu a de todas as outras pessoas que conheci em Urbana.” (página 25)
Javier Cercas é um escritor de muitos recursos narrativos e vai revelando a complexidade da personalidade de Rodney Falk aos poucos. Ele tinha lutado no Vietnã – uma batalha em que os EUA se meteram e na qual sofreram acachapantes derrotas.

Para contextualizar, podemos dizer que o Vietnã havia sido colônia francesa e que, ao final da Guerra da Indochina (1946-1954) fora dividido em dois países: o Vietnã do Norte, comandado por Ho Chi Minh, de orientação comunista pró-União Soviética e o Vietnã do Sul, uma ditadura militar que passou a ser aliada dos EUA.

Em 1959, os vietcongues (guerrilheiros comunistas apoiados por Ho Chi Minh e pela então União Soviética) atacaram uma base norte-americana no Vietnã do Sul. Isso foi suficiente para os americanos declararem guerra. O que se seguiu foi um verdadeiro mar de sangue, com os EUA fazendo uso de armas modernas contra um inimigo que, se estava completamente defasado em termos de armamentos, conhecia profundamente seu próprio território e possuía extrema eficiência em táticas de guerrilha. Em 1960 já era claro o fiasco americano.

Em 1973, o governo dos EUA, pressionado pela opinião pública e pelo morticínio intenso de seus soldados, aceita o Acordo de Paris, que prevê o cessar-fogo. A América retira todos os seus soldados e abandona o território vietnamita em 1974.

Este resumo contextualizatório da Guerra do Vietnã se torna necessário, para o leitor entender melhor o porquê das características do personagem Rodney Falk. Tendo feito parte de um grupo de fuzileiros americanos, teve suas amargas experiências. É que tal grupo, certa feita, confunde um conjunto de cidadãos do Vietnã do Norte com um grupo guerrilheiro e abre fogo cerrado contra ele. Para descobrir, depois, que o “inimigo” era composto de mulheres, crianças e velhos indefesos.

E, como de um momento para outro, Rodney Falk pede demissão do seu cargo de professor na Universidade e some, sem deixar qualquer notícia, o protagonista vai à casa dele, numa cidade próxima a Urbana, na tentativa de encontrá-lo. Encontra o pai de Rodney e recebe dele um completo dossiê sobre o amigo, composto de cartas à família em que tal incidente com o grupo de cidadãos vietnamitas é narrado.

O livro A Velocidade da Luz é contado a partir de um narrador-personagem, em primeira pessoa. Esta escolha técnica deve ter sido bastante consciente, pois produz um efeito muito interessante no livro. É que, como ocorre nestes casos de narradores-personagens, as verdades são sempre relativas, subjetivas. Como é um narrador afetado pelos acontecimentos que ele próprio descreve, como ele analisa os fatos sempre a partir do “eu”, a maior parte do que é narrado fica por conta da subjetividade, da interpretação pessoal. Portanto, este é o famoso “narrador não confiável”, do mesmo miolo que constitui o Bentinho de Dom Casmurro, do nosso Machado de Assis. Ainda mais que, no caso de Javier Cercas, o protagonista é escritor, quer escrever um livro cujo personagem central é Rodney Falk. Os fatos aconteceram mesmo, ou foram pura ficção romanesca do narrador-escritor?

Outras tantas coisas vão acontecer no romance, caro leitor, mas não desejo dar spoilers, como sempre. Eu não me importo com eles, se tenho interesse em ler um livro, pouco se me dá que alguém me conte o final ou os principais lances narrativos. Leio alguns livros, de que gosto muito, várias vezes – na minha estante há livros lidos quatro, cinco vezes – pelo simples fato de gostar da história, da forma como um autor faz o seu trabalho. Enfim, diz o sábio ditado popular, “de sábios, de médicos e de loucos, todos temos um pouco”. No meu caso, predomina a porção do “louco”. Entretanto, a maioria das pessoas não gosta de spoilers e eu lhes dou razão.

Vários dados biográficos são encontrados na composição dos personagens e nos fatos narrados no livro, para quem quiser fazer o trabalho de Sherlock Holmes (aliás, não seria nada mal resenhar aqui um livro deste muito caríssimo Sherlock).

Por exemplo, é dito na obra A Velocidade da Luz que o primeiro livro do escritor-narrador não fez sucesso. Que depois de muito tempo, ele consegue publicar um livro que se torna um best-seller. Temos o protagonista indo para os Estados Unidos.

Não por acaso, Javier Cercas deixou a Espanha e foi viver por um tempo na América. Realmente, seu sucesso e reconhecimento só chega com Soldados de Salamina, após outras publicações. Defendo que, de um jeito ou de outro, acabamos pondo algo de nós em narrativas que escrevemos. Por que deveria ser diferente?

Aproveitar nossas próprias experiências é sábio. Ademais, como identificar ou mesmo extirpar dados nossos guardados lá na caixinha preta do nosso inconsciente? Parece que o ato de contar uma história, de verter uma narrativa para o papel – ou, em tempos modernos – para o arquivo digital estabelece uma ligação direta com tal caixinha preta.

Escrever é assim: um prazer, um trabalho (às vezes muito árduo), uma revelação. Tantas vezes o leitor descobre relações insuspeitadas pelos escritores, nos livros destes... E ao autor, interessado ou incomodado, conforme o caso, só resta dizer um “não tinha pensado nisso”.

O próprio Umberto Eco – grande escritor e estudioso da semiótica – conta seu caso deste tipo. Diz ele, um crítico de O Nome da Rosa (que romance, meus caros leitores! Viciante!), sua obra mais conhecida, apontou certa vez uma passagem que lembrava em tudo outro texto antigo. Na hora, Umberto disse que não havia relação, que ele não havia consultado tal texto.

Depois de algum tempo, pesquisando outra coisa em sua biblioteca pessoal – sonho dos sonhos, mais de 30 mil volumes – deu com um livro fora do alinhamento. Tomou-o nas mãos. Estava marcado em determinado ponto. Releu o texto. Lá estava, inteirinha, a passagem aludida pelo crítico. Sim, ele, Umberto Eco, havia gravado o texto antigo e, de modo inconsciente, fizera uma alusão a ele, ao construir a trama da sua obra mais conhecida.

A Velocidade da Luz é um livro repleto de comentários sobre o ato de escrever, as preocupações de um escritor. E não é forçado, uma vez que o protagonista se vê às voltas com um dossiê que traz não só relatos de guerra, mas, principalmente, sentimentos de um soldado participante de uma batalha que lhe fora vendida como um ato de honra contra um inimigo comunista e o que ele confronta, na realidade, são pessoas que dão o seu sangue e sua vida para expulsar o invasor. Eterna luta de David contra Golias; no fundo, no fundo, o livro é também um libelo contra as loucuras dos conflitos armados, da insanidade humana que vê inimigos onde eles não existem.

Não seria esta a mensagem dada pela descrição do fuzilamento do grupo de civis vietnamitas, homens velhos, mulheres e crianças? O sórdido acordo firmado entre os participantes do evento, no sentido de todos se calarem quanto ao ocorrido é o que desequilibra o personagem Rodney Falk. Afinal, calar consciência, nem todo mundo consegue. Aqueles que são mais sensíveis sofrem mais.

Mas paremos por aqui, amigo leitor. No entusiasmo da resenha, quase levei você a um spoiler. Leia este A Velocidade da Luz. Livrão, somente isto. Livrão.