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sexta-feira, 28 de julho de 2023

Resenha nº 207 - O Senhor das Horas, de Autran Dourado







Título: O Senho das Horas

Autor: Autran Dourado

Editora: Rocco

Copyright: 2006

ISBN: 85-325-2124-8

Gênero literário: conto

Origem: literatura brasileira

 

Waldomiro Freitas Autran Dourado é natural de Patos de Minas, MG. Passou sua infância nas cidades mineiras de Monte Santo de Minas e São Sebastião do Paraíso. Aos 17 anos, mudou-se com a família para Belo Horizonte, onde estudou Direito – ao mesmo tempo em que trabalhava como taquígrafo e jornalista. Posteriormente, mudou-se para o Rio de Janeiro.

Autran Dourado – como ficou conhecido do seu público – foi secretário de imprensa do governo Juscelino Kubitschek. Em 1961, o autor se destaca com sua obra A Barca dos Homens, levando o prêmio de melhor romance, outorgado pela União Brasileira de Escritores.

Prolífico, escreveu os romances: Teia (1947), Sombra e Exílio (1950), Tempo de Amar (1952), A Barca dos Homens (1961), Uma Vida em Segredo (1964), Ópera dos Mortos (1967), O Risco do Bordado (1970), Os Sinos da Agonia (1974), Novelário de Donga Novais (1976), Novelas de Aprendizado (1980), A Serviço de Del-Rei (1984), Lucas Procópio (1985), Um Artista Aprendiz (1989), Monte da Alegria (1990), Um Cavalheiro de Antigamente (1992), Ópera dos Fantoches (1994) e Confissões de Narciso (1997).

Seus contos foram: Três Histórias na Praia (1955), Nove Histórias em Grupos de Três (1957), Solidão Solitude (1972), Violetas e Caracóis (1987), Melhores Contos (2001), O Senhor das Horas (2006), Armas & Corações (1978), as Imaginações Pecaminosas (1981).

Além de sua obra ficcional, Dourado produziu ensaios: A glória do Ofício. Nove histórias em Grupos de Três (1957), Uma Poética de Romance (1973), Uma Poética de Romance: Matéria de Carpintaria (1976), O Meu Mestre Imaginário (1982), Breve Manual de Estilo e Romance (2003).

Prêmios recebidos por ele: prêmio Goethe, Jabuti (1982), Camões (2000), Machado de Assis (2008).

Autran Dourado nasceu em 18/01/1926 e faleceu 30/09/2012.

Descobri o nosso escritor quando li Os Sinos da Agonia, obra indicada para o vestibular da UFMG (eu já cursava a faculdade, mas fui atraído pelo título e não me arrependi); ali começava uma “fãzice” que perdura até os dias de hoje.

Este O Senhor das Horas, em edição da Rocco, é um dos volumes que ainda não tinha lido. Trata-se de um livro de seis contos, ambientados na cidade fictícia de Duas Pontes. Duas Pontes é a ambientação, aliás, de várias obras deste escritor mineiro, já comparado a William Faulkner, tanto pela constância na ambientação imaginária, quanto pelo estilo trabalhado.

Autran acredita que cada história criada deve ter seu meu melhor estilo de expressão. Não é diferente com os seis trabalhos que compõem este livro. Os títulos são O senhor das horas, Memórias de um Chevrolet, Morte Gloriosa, José Balsemão, Uma anedota de velório e O herói de Duas Pontes.

O senhor das horas fala a respeito do coronel Domingos Monteiro, um dos importantes da localidade de Duas Pontes:

“Ele não era como um daqueles coronéis do interior, grossos, incultos e mandões. Um homem fino, de boa leitura, fez seus versos, estudou em São Paulo, não chegando a concluir o curso de direito, ficou no terceiro ano porque, filho único, com a morte do pai, foi chamado pela mãe para tomar conta da fazenda e do armazém de beneficiar café. Frequentava as rodas literárias, chegou mesmo a publicar uns poucos versos dos muitos que tinha escrito. A ideia de voltar para Duas Pontes era só para as férias, quando frequentava os poucos letrados da cidade.” (página 12)

Memórias de um Chevrolet nos conta a história de Júlio Macedônio, alto figurão local, que adquire um automóvel Chevrolet novinho em folha para o filho, Vitor Macedônio. Acontece que o filho não tem vocação para dirigir e o leitor pode imaginar os desdobramentos narrados sempre de um ponto de vista irônico:

“Agora o carro corria pela estrada, eu no banco traseiro, vovô e Zico no bando da frente. De vez em quando, já iniciando o seu aprendizado, vovô perguntava a serventia desse e daquele botão, desse ou daquele pedal ou alavanca. O carro ia pra nós hoje devagar, mas naquele tempo era veloz, e vovô disse não tem nada como a velocidade e o progresso. O gênio americano ainda assombrará o mundo.

Eu que já tinha lido o meu Júlio Verne, solenemente disse com toda certeza.” (página 47)

Morte gloriosa aborda o personagem Bê P. Lima, outra figura interessantíssima de Duas Pontes. Pois Bê era mulherengo que só, foi viver um tempo em Paris. Ele seria hoje o que a gente moderna chamaria de um mauricinho, nunca soube o que seria fazer força, um folgado.

Pois bem, de lá da cidade luz Bê trouxe uns ensinamentos sobre a arte de fazer amor que caíram bem no prostíbulo da cidade, a Casa da Ponte:

“Na sala da Casa da Ponte, ele pontificava as lições que recebera das insignes mestras francesas. Não só as posturas sofisticadas, mas noções de higiene que aprendera na França eram matéria do seu ensinamento. E era de se ver com que avidez e desajeitamento se entregavam ao aprendizado as alunas de Duas Pontes. Os homens o consultavam sobre detalhes e lhe confidenciavam insucessos que os cobriam de vergonha. Meu caro, você é um homem e não um potro, dizia ele, paciente educador de homens rudes. Você foi com muita sede ao pote, daí o fracas. O quê, a gente perguntava. O natural e inevitável fracasso, dizia ele paciente. Como os homens eram broncos demais, ele viu que a maneira mais eficaz, e que lhe dava mais prazer, era transmitir às mulheres, em geral mais sensíveis e habilidosas do que os homens, os ensinamentos da matriz da cultura europeia que era Paris. Foi ele o introdutor do bidê em Duas Pontes.” (página 61)

José Balsemão nos traz a história deste personagem, que dá nome ao conto, mais conhecido pelo seu apelido de Zé Cabrito. Acontece que uma crise de morfeia se alastra por Duas Pontes. Esta doença é um tipo de esclerodermia, isto é, uma esclerose de pele, que abre feridas. Estas feridas podem se aprofundar e atingir os ossos.

“Foi assim que um dia sá Milurde apareceu com a maior novidade. O velho Zé Cabrito, um tipo amulatado que tinha barbicha pontuda, um tanto amarelecida na ponta (daí o apelido, pela parecença com o bode), cujo vero nome era José Balsemão, muito doente, vivia trancado noite e dia num quarto escuro, só de noite, não se sabia por quê, acendiam uma lamparina, é capaz de que para a sua cara não ser vista pelos visitantes, dera para fazer cura de inumeráveis doenças com a sua simples bênção.

Sem ouvir ninguém, sem nem mesmo pedir permissão a vovó Naninha (com certeza por temer a negativa da velha), decidiu por conta própria levar João para receber a bênção de Zé Cabrito. Ela prometeu a João, a princípio atemorizado, que ele ficaria livre de suas dores terríveis, noites maldormidas e outras mazelas. Tinha a certeza antecipada da cura: basta muita unção, não ser São Tomé duvidoso, disse ela.” (página 74)

Uma anedota de velório narra os rituais – digamos assim – dos velórios numa cidade de interior:

“Quando soava a última pancada do relógio anunciando a meia-noite, começavam a servir o vinho, café ou a boa e gostosa cachaça, forte e seca, tirada do alto do alambique. Como cachaça de barriga vazia não faz bem ao estômago e leva ligeiro à embriaguez, se servia o competente tira-gosto, o forra-bucho de muita proteína, como torresmo, pele de porco bem sequinha, crocante, pedaços de linguiça e mesmo costeletas de porco.” (página 78)

 O herói de Duas Pontes tem como personagem central Oriosvaldino Cunegundes Marques de Sousa Veras. É o último e o maior conto do livro.

Em 1930, estoura uma revolução sangrenta entre, de um lado, Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul que depôs o governo de Washington Luiz, impediu a posse do eleito Júlio Prestes, defendido por São Paulo. O Golpe de 30 – como ficou conhecido – encerrou, então, a república velha. A título de informação, deste impasse surge a propositura de Getúlio Vargas, então governador do Rio Grande do Sul, como governo provisório. Getúlio não convoca eleições e impõe a ditadura.

 Muitos mortos, de parte a parte, e o tal Oriosvaldino Cunegundes se alista para lutar do lado mineiro.

“No alinhavar de nossa história não há muito o que contar, só inventando. Aventura mesmo, aventura de verdade, ele só teve ma. Só praticou na vida um ato de bravura que o elevou acima do comum dos mortais. Mas não convém adiantar: uma história não deve ser apressada, tem-se de compor devagarinho, é que nem bordado, deve obedecer a um risco, é o que se diz. Quem tem pressa tropeça, devagar com o andor que o santo é de barro, nos aconselha o adágio popular.” (página 88)

Como vimos, ironia e sarcasmo não faltam neste O Senhor das Horas. Autran Dourado valoriza a cultura mineira, incluindo expressões, adágios populares, jeito de ser do mineiro, sobretudo o interiorano.

Nosso autor costuma incluir em seus textos, reflexões sobre o fazer literário, que se convencionou chamar de metaliteratura, como no último conto, em que ele considera que escrever uma história deve ser como um bordado, tem de seguir um risco, um planejamento.

Falar das influências presentes no estilo de um autor é algo complicado, mas a crítica aponta doses de Goethe, James Joyce e Stendhal; do ponto de vista filosófico, fazem presença Platão, Aristóteles, Nietzsche e Schopenhauer.

 Autran Dourado é, não só pela minha assumida “fãzice”, um escritor de primeiro time. Vou, com certeza, revisitá-lo em outros momentos, ainda mais que a editora Harper Collins Brasil está reeditando as obras deste incontornável, mas esquecido escritor.

Para a minha alegria.