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sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Resenha nº 153 - A Natureza da Mordida, de Carla Madeira


Título original: A Natureza da Mordida
Autora: Carla Madeira
Editora: Quixote + Do Editoras Associadas
Edição: 1ª
Copyright: 2018
ISBN: 978-85-66256-35-2
Origem: Literatura brasileira
Gênero Literário: Romance
Bibliografia da autora: Tudo é Rio, 2014; A Natureza da Mordida, 2018.

A Natureza da Mordida é um romance que vai se revelando aos poucos, a cada encontro entre Biá e Olívia. O primeiro encontro se dá num sebo, cheio de livros usados que contam suas histórias. Livros de sebo não contam apenas as histórias que inundam suas páginas; contam também aquelas das pessoas por cujas mãos eles passaram. Dedicatória aqui, uma assinatura ali, anotações e sublinhamentos acolá. Que emoções geraram estes exemplares? Quais histórias de vida tocaram? Se é verdade que ninguém conseguiu, até hoje, caracterizar um modo de fazer literatura que seja genuinamente feminino, este A Natureza da Mordida é um livro de que transborda a sensibilidade feminina. À medida que a narrativa prosseguia, construída pelo que se dizem as duas mulheres, eu ia me lembrando daquelas que, de algum modo, tocaram minha própria vida. Sou grato a elas. E o livro ainda nos reserva mais um brinde: é uma ode à literatura, a começar da primeira locação – um sebo. Carla é autora de outro ótimo romance, Tudo é Rio, anteriormente resenhado aqui no blogue. Por razões puramente do coração, gostei mais desta segunda obra. Atrasei meus compromissos para terminar a leitura do volume.

Remeto quem se interessar pela biografia de Carla Madeira à resenha nº 146 deste blogue, do livro Tudo é Rio. Não há muitos dados disponíveis por enquanto. Prevejo que, no futuro, cada vez mais se falará desta autora mineira.

“Eu vi Olívia. Ela estava na última mesa, depois de algumas outras mesas ocupadas, sozinha escrevendo. Em volta, um silêncio que as mesas barulhentas, os carros que passavam, as pessoas que corriam, não podiam interromper. Ela escrevia sem fazer a menor ideia de que aquele era o meu lugar. Era onde eu me sentia melhor, era meu por obrigação de me sentir melhor. Onde eu me esquecia menos. Lembrar se tornou prioridade absoluta. Pensei: vou pedir que ela me devolva, ou que me ceda, para não ser agressiva, o lugar onde me sinto melhor. Tenho uma recomendação expressa de meu médico de me sentir melhor sempre que possível. E seria possível se ela saísse de lá e me deixasse sentar e folhear os livros do sebo, que tão bem me fazem quando me lembram que sempre haverá uma outra realidade para onde me retirar. Pensei em ir até ela pedir gentilmente que saísse, mas vi que se entregava consumida a uma escrita sem pausas.” (página 9, Anotações de Biá)
É assim que, mineiramente, começa este livro. Chego até a me sentir na pele de Olívia, a que escreve sem pausas. O sebo é meio atemporal – o tempo ali se anula um pouco pela convivência com livros de variadas edições e variados tempos e gêneros ficcionais. Lá fora, o tempo corre; cá dentro, o tempo para. Lá fora, as pessoas passam, os camelôs gritam, os ônibus aceleram; cá dentro, as pessoas caminham despreocupadas, prevalece o silêncio, os corredores formados por estantes repletas são as únicas ruas onde moram os livros.

Sebo é memória. Interessante anotar isto e mais tarde direi por quê.

Biá, que aliás não é Biá, mas batizada Emma – com aquela personagem-título de Jane Austen – observa Olívia, a que escreve sem pausas. Ao prestar atenção, vê que Olívia chora. Uma perda recente. E Biá, bem mais velha do que ela, a aborda e começam a conversar. A interpeladora tem o poder de fazer com que Olívia conte suas dificuldades.
“Avancei e espantosamente segura de que faria aquilo, me apresentei: “Oi.” Oi e ponto. Oi e mais nada. Ela me olhou, sem saber se deveria me reconhecer, e disse “Oi.” Oi e ponto. Oi e daí? Daí, ela ainda com os punhos molhados, supus, depois de um silêncio que deveria ter me deixado sem lugar, me convidou para sentar. Ela me convidou para sentar talvez porque eu tivesse as mãos apoiadas na cadeira à sua frente, sem esboçar o mais remoto interesse em me afastar.” (páginas 10/11)
Estruturado em encontros entre Biá e Olívia, e em sua maioria, cada encontro precedido de “Anotações de Biá”, pouco a pouco vamos tendo reveladas parte das vidas destas personagens. Brincadeiras de infâncias, namoricos, o despertar dos hormônios e sensações, a idade adulta, vão perpassando diante dos nossos olhos.
Olívia conta a Biá como era sua mãe, seu pai e a relação entre eles:
“Para conquistar minha mãe, que era cobiçada com fervor por outros rapazes, inclusive por um dos diretores do banco, meu pai dizia ter usado uma técnica infalível: a ousadia. Pediu a ela uma receita de bolo! Minha mãe contava rindo que o xeque-mate do meu pai levava leite condensado. Mas na verdade o que a conquistou mesmo é que ele não a tratava só como uma mulher a ser conquistada, mas como uma pessoa a quem queria conhecer. Se interessava pelo que ela vestia e também pelo que pensava. Comentava a cor do esmalte em suas mãos, mas também queria saber suas opiniões sobre política. Trocavam livros, discos bilhetes e receitas de bolo. Naquele ambiente conservador e machista do banco, com todos aqueles homens submetidos a uma lisa enorme do que é do que não é coisa de homem, cheios de certo e errado, de pode e não pode, meu pai, completamente apaixonado, se viu rapidamente correspondido.” (página 113)
À medida que a história se desenrola, vamos percebendo que existem trechos repetidos, sempre referidos por Biá. São relatos cheios de lacuna, onde faltam informações, que depois aparecem, muitas delas repetidas. Por que será que a autora fez isto?

Por um motivo muito simples: Biá sofre de perda de memória. Não é um spoiler, está relatado na orelha do livro. E aqui é que se dá um mecanismo muito interessante: enquanto, paulatinamente, Biá perde sua memória, Olívia, através de seus relatos, recupera memória de sua vida, recupera coisas de há muito esquecidas ou não ditas. Entra aqui o realce que dei à questão do sebo como memória: o sebo é como se fosse um gigantesco cérebro ficcional, onde cada segmento de recordação fosse garantido por cada um dos livros que o compõem. É ali que Biá (perdendo a memória) e Olívia (recuperando a sua história) se encontram. Significativo, não, caro leitor?

Certa competição, tipicamente feminina, se estabelece entre Olívia e sua amiga, Rita:
“Nas primeiras férias que passei com eles fiquei menstruada pela primeira vez. Um aperto inesquecível. Eu era simplesmente louca para ficar menstruada. Ter peito, ter pelo, encorpar. Quase fiz promessa para ficar mocinha antes de Rita. Esse era um detalhe essencial. Na verdade, eu rezava para não ficar depois de Rita. Não queria que ela soubesse como era ser uma moça, sendo eu, ainda, tecnicamente, uma criança. Rita já tinha uma autoestima insuportável – nem quando mijou na igreja, na rente de todo mundo, se abalou. Já eu, Biá, era bem mais insegura. Para começar, eu era ruiva. Sardenta. Muito diferente das outras meninas. Não era tímida, mas tinha uma preocupação excessiva sobre o que pensavam de mim, o que me tornava cautelosa e por vezes retraída.” (página 132/133)
Não só o nome verdadeiro de Biá – Emma – é uma referência literária. Várias delas acontecem durante o desenrolar da história. Citados nominalmente, temos Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez, Crime e Castigo, de Dostoiévski. Outras se seguem, misturadas ao texto, sem aspas ou qualquer outra marcação. Estas são, depois, arroladas ao fim do livro, numa enorme lista de créditos que vão de Guerra e Paz, de Léon Tolstói, passando por Os Miseráveis, de Victor Hugo, seguindo pelo conto A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa.

Não é um recurso que me pareça esnobe, com a clara intenção de “vomitar cultura”, mas tais falas são parte integrante das falas de Biá, uma leitora assídua, voraz. Sei disso porque a mim também me ocorrem assim, vozes em segundo plano dentro dos meus pensamentos, vindas dos muitos livros que já li na vida. São, antes, um tributo belo à força da literatura; vozes de autores queridos, de obras queridas, que dizem melhor do que nós diríamos, aquilo que devem dizer.

As personagens do livro são muito bem desenvolvidas, na medida correta. Desfilam com autoridade Biá, Olívia, Rita, Laura (mãe de Olívia), Luciana (mãe de Rita), Teodoro (pai de Biá), a mãe de Biá...

Este A Natureza da Mordida é um livro que recomendo àquele leitor diletante de narrativas mais reflexivas, mais sensíveis no sentido de valorizar e explorar os sentimentos humanos. Coloco-o bem próximo, por exemplo, de Arroz de Palma, de Francisco Azevedo, também já resenhado neste blogue.

Peço-lhe licença, meu caro leitor, mas não posso terminar esta resenha sem transcrever um trecho que me impressionou pela beleza das ideias e da expressão dos sentimentos. É um diálogo entre Teodoro e a filha. É longa, bem sei. Entretanto, a estética textual – com a devida vênia de quem me lê – autoriza a transcrição:
“Vi se esboçar nele um desmoronamento, um gemido que a todo custo tentou conter, enquanto meu coração se enchia de imediato remorso. Quando ele voltou a falar, tinha envelhecido.
— Será, minha filha, que eu posso dizer que foram mesmo só sonhos, se quando eu acordava eles acordavam comigo? Escovavam os dentes comigo, tomavam o café da manhã, e entravam no meu carro e era preciso freiá-los energicamente, para que a música, que tocava no rádio, não os libertassem como costuma fazer com os sonhos bons? E entre uma ligação e outra, enquanto eu falava de horários e honorários, eles apareciam dizendo oi com suas vozes sem escrúpulos e suas imagens que me repugnavam e que também me arrastavam? E antes de dormir, lá no fundo de minha alma apavorada, de minha consciência em alerta, eu desconfiava horrorizado de que havia esperado por aquele momento em que, mais uma vez, eu me entregaria a eles, no lugar onde me entregar era permitido? Será, minha filha, maior amor de minha vida a quem eu jamais faria mal estando acordado, por quem eu morreria, será que ainda assim posso dizer que foi apenas sonho, tendo-me dado conta de que esses sonhos produziam uma espécie de realidade em que passei a viver? (páginas 239/240)

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Resenha nº 152 - Nada, de Carmen Laforet


Título original: Nada
Autora: Carmen Laforet
Tradutor: Rubia Prates Gordoni
Editora: TAG Livros/Alfaguara
Copyright: 1945
ISBN: 978-85-5652-072-2
Gênero literário: Romance
Origem: Espanha (Catalunha)

Bibliografia: Nada (1944); A ilha e os demônios (1950); A nova mulher (1955); A Insolação (1963); Ao virar a esquina (2004); O piano (1952); Um namoro (1953); A ligação (1954); Os Colocados (1954); A Viagem Engraçada (1954); A Garota (1954); Um Casamento (1956); A menina e outras histórias (1970); Gran Canaria (1961); Parallel 35 (1967) livro de viagens, reeditado em 1981 com o título de Minha primeira viagem aos EUA. Artigos literários (1977), compilação de artigos; Posso contar com você (1965-1975) (2003), epistolar com Ramón J. Sender. De coração e alma (1947-1952) (2017), epistolar com Elena Fortún.


Nada, romance debutante de Carmen Laforet. Que impressões me ficam desta leitura que começou arrastada e depois se acelerou? Uma escritora que produz aos vinte e três anos pode compor um livro relevante para a literatura espanhola? Pode um livro sobre a desagregação de uma família tratar do assunto sem um pingo de emotividade? Estas questões, suscitadas a partir do material de apoio da revista que compõe o kit do mês de novembro de 2018, ficaram voejando na minha mente, enquanto lia o livro. A resposta é sim. Nada impressiona exatamente por ser uma obra que analisa a decadência de uma família, no ambiente do pós-guerra civil espanhol, sem qualquer concessão à emoção. Um livro que me incomodou exatamente por isso e por "otras cositas más". A tia Angustias, Glória, Román, Juan e Andrea, a protagonista e narradora desta história,  compõem uma família estranha. Carmen as pôs em cena como se fossem fantasmas de si próprios, seres que não se deixam capturar pela atividade leitora na totalidade. Ambíguos. Ou, modernamente, poderiam, talvez, serem classificados como portadores de transtorno bipolar.

Carmen Laforet Diaz é catalã, da cidade de Barcelona; seu nascimento deu-se em 06/09/1921. Faleceu em Madrid, em 28/02/2004. É a filha mais velha de um arquiteto de Barcelona e uma professora de Toledo. Residiu por um tempo, acompanhando a família, nas Ilhas Canárias. Quando a mãe de Carmen morreu, o pai se casou de novo; entretanto, a relação da autora com a madrasta nunca foi boa. Estreou na literatura com o presente romance Nada e foi ganhadora do desejado prêmio Nadal. Laforet casou-se em 1946 com o crítico literário Manuel Cerezales, com quem teve cinco filhos, dos quais dois deles – Agustín Cerezales Laforet e Silvia Cerezales Laforet – tornaram-se também escritores.

Contextualização necessária: a Guerra Civil Espanhola se deu entre 1936 e 1939, antepondo republicanos, de um lado, e os nacionalistas, de outro. Os republicanos eram progressistas e urbanos, enquanto os nacionalistas, liderados pelo General Franco, eram um misto de monarquistas, carlistas e católicos.

Conflito de várias facetas, ora foi analisado como luta de classes, guerra religiosa, batalha entre ditadura e democracia republicana, revolução e contrarrevolução, embate entre fascismo e comunismo. Seja como for, o resultado nós todos sabemos: venceram os nacionalistas e, a partir de 1939, a Espanha foi governada pelo General Franco até a morte deste, em novembro de 1975.

Deste ambiente de destruição – vários desmandos e assassinatos foram cometidos pelas duas facções – sai um país não só derrotado em sua economia, como também profundamente tumultuado no quesito valores humanos.

É neste ambiente que a catalã Carmen Laforet vai plantar sua narrativa. Andrea é uma jovem, vinda do interior, para estudar letras na capital. Sua mala vem abarrotada de livros e de sonhos, para a casa dos avós – da qual somente se recordava os tempos idos, mais felizes:
“Comecei a seguir – uma gota num rio – a massa humana que, carregada de malas, afluía para a saída. Minha única bagagem era uma malona muito pesada – porque estava quase cheia de livros – que eu mesma levava com toda a força da minha juventude e da minha ansiosa expectativa.
“Um ar marinho pesado e fresco invadiu meus pulmões com a primeira sensação confusa da cidade: uma massa de casas adormecidas, de lojas fechadas, de postes de luz como sentinelas bêbados de solidão. Uma respiração profunda, difícil, vinha com o murmúrio da madrugada. Muito próximo, às minhas costas, além das vielas misteriosas que levam ao Borne, sobre o meu coração excitado, estava o mar.” (página 15)
O endereço de destino é a rua Aribau, onde residiam seus parentes e onde ela deveria se ajeitar, enquanto cursava a faculdade. A guerra e o tempo, entretanto, já haviam desgastado o imóvel, deixando-o, metonimicamente, com os degraus da escada gastos e em nada correspondendo àquela casa guardada na memória de Andrea. O primeiro contato com aquela gente é de péssima impressão:
“Em toda aquela cena pairava algo de aflitivo, e no apartamento um calor sufocante, como se o ar estivesse parado e podre. Ao erguer os olhos, vi que várias mulheres fantasmagóricas tinham aparecido. Uma delas, vestida de preto com uma roupa que lembrava uma camisola, quase me causou arrepios. Tudo naquela mulher parecia horrível, calamitoso, até a esverdeada dentadura com que sorria para mim. Era seguida por um cachorro que bocejava ruidosamente, também ele preto, como uma extensão de seu luto. Depois me disseram que era a empregada, mas nunca nenhuma outra criatura me causou uma impressão tão desagradável.” (página 18)
A avó não reconhece de imediato a neta. Seu comportamento é mostrado como o de  uma pessoa que não tem posse saudável de suas memórias, de suas percepções. Entretanto, como uma alma penada, ela nunca parece dormir, sempre aparecendo em momentos e em cômodos inesperados, quer durante o dia, quer durante a noite.

Juan é casado com Gloria, num estranho relacionamento. Ela, sempre preocupada com a própria aparência, à qual atribui extrema importância e ele, um pintor sofrível. Andam sempre a se dizerem desaforos e, às vezes, Juan chega até mesmo à violência contra a mulher.

Román é um músico extraordinário, mas que abre mão de sua habilidade e se deixa levar pela vida medíocre. Vivem também, Juan e Román, batendo boca e se agredindo, muito embora, na visão da vovó, a relação entre os dois fosse de outro teor:
“Juan era loiro e Román muito moreno, e eu sempre os vestia com roupa igual. Aos domingos iam à missa comigo e com seu avô... No colégio, se algum menino brigava com um deles, o outro logo aparecia para tomar sua defesa. Román era o mais esperto... mas com eles se gostavam! Para as mães, os filhos são todos iguais, mas esses dois eram os meus preferidos... porque eram os mais novos... porque foram os mais infelizes... Principalmente o Juan.” (página 46)
Angustias – nome extremamente bem-colocado – funciona como uma espécie de guardiã da moral da família, embora ela não seja pautada exatamente pela moral ilibada. Mais um elemento em desagregação dentro daquela casa por si já desagregada:
“Saltei da cama tonta de frio e de sono. Tão assustada, que tinha a sensação de não poder me mexer, quando na verdade dois só o que fiz: em poucos segundos arranquei as roupas da cama e me enrolei nelas. Ao passar pela sala, joguei o travesseiro numa cadeira e fui até o vestíbulo envolta numa manta, descalça sobre o piso gelado, justamente quando Angustias chegava da rua puxando Gloria pelo braço, seguida por um taxista com suas malas. Vovó também apareceu, atarantada e balbuciante ao ver a cena.” (página 93)
Mais tarde, ficamos sabendo – e isto não é um spoiler – que Gloria também é um fantasma de si mesmo, uma alienada, que vive alimentando a exaltação de como ela é boa demais, de como é bonita demais. Oscila ela também, entre outras coisas, entre seu marido Juan e Román, como se pode ver no diálogo entre Gloria e Román:
“— Fala baixo!... Você tem muito o que esconder, portanto vê se baixa o tom... Você sabe muito bem que tenho testemunhas que podem dizer para o seu marido como você uma noite foi se oferecer para mim no meu quarto e de como te enxotei a pontapés... Já podia ter feito isso, se quisesse me dar ao trabalho. É bom lembrar que eram muitos soldados no castelo, Gloria, e que alguns deles moram em Barcelona...
— Naquele dia você me embebedou e me beijou... Fui no seu quarto porque te amava. Você caçoou de mim da pior maneira. Escondeu os amigos lá dentro, que morreram de rir da minha cara, e me insultou. Disse que não estava disposto a roubar o que era do seu irmão. Eu era muito nova, garoto. Naquela noite em que te procurei, eu me considerava separada do Juan; tinha decidido deixá-lo. o padre ainda não tinha selado o casamento, não se esqueça.” (página 194)
Román é descrito como um homem muito bonito, destes que poderia ter qualquer mulher a seus pés, desde que o quisesse.

São várias as reviravoltas do enredo. Como disse Yuri Al’Hanati em seu canal Livrada, no YouTube, Nada soaria como uma novela mexicana não fosse o contexto em que foi escrito. Concordo plenamente. A exploração do triângulo amoroso (Gloria-Juan-Román), os dramas de tons acentuados, envolvendo os irmãos Juan e Román, Angustias e Gloria, a caricaturização da empregada Antonia, de Angustias – tudo somado sugere realmente uma narrativa sentimentaloide – não fossem dois aspectos discordantes: o pano de fundo temporal em que acontecem as ações, o pós-guerra decadente e a completa ausência de sentimentos com que tal história é narrada. É estranho que a autora, embora não tivesse dotado sua narrativa de sentimentos, consiga expressar uma sensibilidade tão grande. Não há julgamento, não há condenação das atitudes humanas, mesmo as mais terríveis.

As cidades arrasadas pela Guerra Civil espanhola, entre as quais Barcelona, são entremostradas no primeiro trecho transcrito nesta resenha. As pessoas, arrastando suas malas, o terminal abarrotado, cheio de gente sem lugar definido para ir. É de se supor que tais fatos tenham contribuído fortemente para a desolação, para o desencanto, para a depressão que se estendera na população, por muito tempo, após o término do conflito.

E, ainda, outro item de contextualização vem ajudar a compor este quadro de desagregação: é que a própria região da Catalunha tem uma identidade linguística e cultural própria dentro da Espanha. Uma região que tem sonhado, com intensidade, em sua própria autonomia...

A autora não lança a mão de muitas descrições, mas quando o faz, envolve-as num clima fluido, embaçado, nas quais o mundo da realidade toca o mundo da fantasmagoria, como no trecho que se segue:
“Lembro-me especialmente de uma noite de luar. Eu estava inquieta depois de um dia muito agitado. Ao levantar da cama, vi no espelho de Angustias todo o meu quarto envolto numa cor de sede cinza e, lá mesmo, uma longa sombra branca. Quando me aproximei, o espectro se aproximou comigo. Por fim pude ver meu próprio rosto borrado sobre a camisola de linho. Uma velha camisola de linho – amaciado pelo roçar do tempo – carregada de pesadas rendas, que minha mãe usara muitos anos atrás. Era estranho contemplar-me assim, quase sem ver, de olhos abertos. Levantei uma das mãos para apalpar minhas feições, que pareciam fugir de mim, e lá apareceram uns dedos longos, mais pálidos que o rosto, seguindo a linha das sobrancelhas, do nariz, dos pômulos conformados segundo a estrutura dos ossos. De todo modo, eu mesma, Andrea, estava viva entre as sombras e as paixões que me rodeavam. Às vezes chegava a duvidar disso.” (página 202)
A TAG me presenteou com dois livros de autoras catalãs: Mercè Rodoreda (A Praça do Diamante) e agora, Carmen Laforet (Nada). Provavelmente, autoras que talvez não lesse, se as encontrasse em algum expositor de livraria, por pura conformação à minha zona de conforto. A Praça do Diamante foi uma leitura gostosa, tendendo para a prosa poética. Este Nada, porém, mistura uma poesia que incomoda com a falta de sentimentos.

Talvez seja isto, a guerra nos deixa estéreis, sem sentimentos – como vermes que nos entrassem pelos sentidos e nos deixassem intocados ossos, músculos, órgãos, pele – mas nos roubasse a alma e o equilíbrio psíquico.

Por último, mas não menos importante, devo acrescentar que Nada é uma obra que se enquadra no movimento literário espanhol que convencionou-se chamar tremendismo. Por este termo entende-se

uma técnica narrativa literária que foi desenvolvida, fundamentalmente, na novela espanhola dos anos quarenta do século XX. Caracteriza-se por uma crueza especial na apresentação da trama, no tratamento dos personagens e no idioma, rasgado e difícil. A relação entre essa tendência e o contexto social do período imediato do pós-guerra é clara, pois parece responder às experiências complicadas dos autores durante a guerra, o que teria condicionado sua maneira de ver e apresentar a realidade no mundo artístico. O tremendismo é uma maneira particular de descrever a realidade sob a ótica do exagero, às vezes usado para criar em terceiros a ideia de que uma tragédia é iminente, com o propósito oculto de induzir uma determinada decisão, que é feita para parecer o único capaz de evitar o evento nefasto. O romance que começou o estilo foi A família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela. Outras novelas são A Fiel Infantaria, de Rafael García Serrano, Filhos de Máximo Judas, de Luis Landínez, Lola, Espelho Escuro de Darío Fernández Flórez, etc. (acessado em 30/08/2019)

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Resenha nº 151 - A Tirania do Amor, de Cristovão Tezza


Título original: A Tirania do Amor
Autor: Cristovão Tezza
Editora: Todavia
Edição: 1ª
Copyright: 2018
ISBN: 978-85-93828-68-3
Gênero literário: Romance
Origem: Brasil
Bibliografia do autor: Ficção: Gran Circo das Américas,  1988; A Cidade Inventada, 1980; O Terrorista Lírico, 1981; Ensaio da Paixão, 1999; Trapo, 1988; Aventuras Provisórias, 1989; Juliano Pavollini, 1989; A Suavidade do Vento, 1991; O Fantasma da Infância, 1994; Uma Noite em Curitiba, 1995; Breve espaço entre cor e sombra, 1998; O fotógrafo, 2004; O filho eterno, 2007; Um erro emocional, 2010; Beatriz, 2011; O professor,  2014; A tradutora, 2016; A tirania do amor, 2018. Não Ficção: Entre a prosa e a poesia - Bakhtin e o formalismo russo, 2002; O espírito da prosa - uma autobiografia literária, 2012; Um operário em férias, Record, 2013; Leituras - resenhas & ensaios, 2014; Literatura à margem, 2014; A máquina de caminhar, 2016.

É um sentimento estranho, o que sinto quando leio livros deste autor. Com este, já é o quarto dele que leio – além de Trapo, O Fotógrafo e este A Tirania do Amor, li também sua obra-prima, O Filho Eterno – portanto, creio que tal sentimento será uma constante. Cristovão Tezza não me ganha pela emoção, mas pelos aspectos literários e de crítica social. Considero-o um grande escritor, tem ótimo domínio do seu fazer literário. Sua prosa, porém, não tem minha adesão pelo coração. Não torço pelos seus personagens. De fato, é uma estranha relação. Vale a condução bem-feita da história, valem os recursos ficcionais, vale a análise crítica da ambiência em que circulam e vivem seus seres. Minha relação com a literatura de Cristovão Tezza talvez seja algo que ainda precise entender melhor.

Cristovão Tezza é sobejamente conhecido neste país. Uma das importantes vozes literárias, ele nasceu na cidade de Lages, Santa Catarina, em 21/08/1952. Professor universitário, é escritor de ficção (romances, crônicas e contos) e não ficção (ensaísta, autor de livro didático). Ganhou o prestigioso prêmio Jabuti de melhor romance em 2008 (O Filho Eterno). Aqui no blogue, este é o terceiro livro que resenho dele – os anteriores foram Trapo e O Fotógrafo.

O protagonista de A Tirania do Amor é Otávio Espinhosa, um economista genial. O narrador do livro é dono de uma análise cerebral, que vai confrontar o personagem principal com sua imagem refletida no espelho. E tal análise começa com o começo do livro:
“Diante do sinal vermelho, que contemplou abstraído como alguém sob uma curta hipnose, decidiu (e ao mesmo tempo imaginou as perguntas: Como assim? Você enlouqueceu?) abdicar de sua vida sexual. A ideia bateu opaca, sem ênfase, quase já um fato consumado à frente, como o brilho fixo do semáforo de pedestres, bonequinho imóvel: abdicar. No cansaço – não exatamente cansaço, esta coisa menor, localizável, passageira, ele pensou; é diferente agora, uma espécie de completo esgotamento – e mais o limbo da manhã, nesta névoa mental em que o dia pode se transformar em qualquer coisa, acrescido de uma vastíssima informação privilegiada (e ele imaginou o processo que se seguiria, a imagem de sua mulher fundindo-se com a de um executivo sênior com uma pilha de pastas à frente, a decisão foi tomada com base em uma informação privilegiada que nenhum dos outros acionistas teve acesso – o que o senhor tem a dizer a respeito? A sua prova é escancaradamente ilegal).” (página 5)
Fiz questão de lhes trazer o parágrafo inicial todo porque é muito bem montado. Adianta elementos que serão trabalhados no decorrer das 173 páginas pelas quais flui o romance. Aqui temos um homem em crise, portador, ele mesmo, de uma racionalidade a toda prova, tomando uma decisão aparentemente esdrúxula: tem a intenção de abdicar de sua vida sexual. O conflito interno já se estabelece no momento mesmo em que tal escolha se faz, transcrita nas perguntas como assim? Você enlouqueceu? gritadas pelo seu consciente.

Outra informação preciosa, a empresa da qual é presidente, a Price & Savings está à beira do caos total (veja-se o final do parágrafo, em itálico), estando sob investigação judicial. Claramente, houve um golpe, anotado no mesmo campo da corrupção que assola o Brasil.

A voz do narrador é implacável com o personagem que analisa: apanha-o na intimidade de seus pensamentos quando ele está abstraído, esperando o semáforo de pedestres abrir. É um homem de meia idade, entrando na crise de meia idade, na qual atos e valores da fase inicial não têm mais tanta consistência e a contemplação de um possível futuro não é nada abonadora.

Mas o desvirtuamento de Otávio Espinhosa tem trunfos guardados na manga: ele é autor de livros que misturam autoajuda com conselhos de finanças pessoais. Escreve o livro A matemática da vida, sob o pseudônimo de Kelvin Oliva:
“... Eu nunca tive complexo de nada, para dizer bem a verdade eu acho essa conversa psicanalítica uma bobagem completa, e esse foi um dos momentos em que ele começou a sentir a mudança, um início ainda impreciso de hostilidade, e ele ponderou se era isso mesmo, pela intensidade da reação diante de uma observação casual, de almanaque, uma mera distração, já que eu nunca me interessei em fazer análise ou algo do gênero – só li um pouco a respeito, no papel de Kelvin Oliva, para escrever A matemática da vida e criar para o leitor a imagem de alguém que vai além do beabá, alguém capaz de ver profundamente as coisas, o que aliás nos divertia: Como vai o seu inconsciente coletivo? Sob controle? e eles riam.” (página 123)
A família de Otávio Espinhosa está se desmanchando. Sua esposa, advogada que, precisamente, trabalha no processo contra a empresa da qual o marido é presidente deseja a separação; o filho é um militante político com cuja orientação de esquerda Otávio não concorda. Só lhe resta a filha, Lucila. Sim, porque há muito rompeu com as ideias e a filosofia do pai e o desprestígio de sua atuação acadêmica (um acadêmico, guru de livros de autoajuda?!) põe em dúvida sua capacidade de fazer escolhas.

Em A Tirania do Amor não é só a família de Otávio, o próprio Otávio que se desmoronam; é o próprio Brasil, como se vê neste trecho a seguir, pela boca do filho Daniel:
“O telefonema da filha levou-o à discussão com o filho há um mês, como se ali houvesse fios a ser ligados. Eu não quero fazer parte deste sistema corrupto de que você faz parte. É golpe atrás de golpe. O Brasil está podre. E ele, estúpido – talvez Rachel tenha razão, sem afeto –, tentou explicar: Filho, um país é feito de dinheiro, e a reação agressiva e ofensiva, de uma intensidade nova, um pós-adolescente no limite da histeria, vomitou uma sequência de ofensas.” (página 48)
O questionamento moral é feito, a certa altura, pela filha Lucila; sentados à mesa de um bar, ela faz referência ao livro O Mandarim, de Eça de Queirós:
“— Peguei você! Então. O livro tem aquela linguagem meio antiga, mas é engraçado. Um sujeito recebe uma proposta do diabo: se ele matar um mandarim na China que nunca viu, vai ficar milionário. Assim tipo nunca viu mesmo, não sabe quem é, está lá no outro lado mundo, jamais saberão de seu, assim, “crime” – e Lucila fez as aspas com os dedos. — É só ele concordar em matar, sem mover um dedo e “tchan!”, está rico. Fiquei pensando se eu mataria um mandarim chinês nessas condições. Já pensou? Você mataria um mandarim? Uma coisa completamente sem culpa.” (página 47)
E ainda:
“— E então, pai? Você mataria um mandarim?
Eu mataria a minha mulher? É pouco provável, calculando todas as variáveis. De caso pensado – ele parou, avaliando com alguma frieza a hipótese – jamais, não, nunca. A única possibilidade seria um gesto de violenta emoção, num momento de ofensas mútuas insuportáveis, um gesto errático numa discussão alucinada, uma faca surgida do acaso, uma cadeira na cabeça, um empurrão único sob azares intangíveis resultando num baque inacreditável na nuca e um silêncio eterno. Mas não foi minha intenção, senhores jurados, ele diria, réu e advogado, ou talvez no outro lado do balcão, um severo juiz de peruca num seriado da BBC.” (página 55)
Aquela decisão inicial, de abstinência sexual, Otávio não a consegue sustentar, como era de se prever. Mas nem com a amante, Débora, cujo filho único, anterior ao relacionamento com Otávio, ela havia perdido para o crack – ele consegue algum equilíbrio. Logo a seguir, vem uma conversa tensa entre o casal, com toques de refinada ironia por parte do narrador cerebral, em um trecho caracterizado pelo discurso livre indireto:
“— Mas não vamos falar disso agora. Com a morte do menino – e ele pensou naquele menino sem nome que ela evocava como uma imagem apagada do passado – eu respirei fundo e recomecei. Apagar o passado. Retomar a vida do zero absoluto.
— O zero absoluto é frio demais: exatamente menos duzentos e setenta e três graus vírgula quinze na escala Celsius. Aqueça-se um pouco mais.
Ela deu uma risada explosiva (como alguém que estava precisando disso há muitos anos, ele comentaria com ela dali a algumas horas) e tocou o seu joelho com a mão, o que me deu um surto repentino de felicidade, aquele breve calor dos dedos que me tocaram com uma força milimetricamente superior a um simples toque ocasional. Eu também estava precisando disso há muitos anos. Ela sorriu no escuro da sala vazia, selou-o com um beijo e disse: É mesmo? Você percebeu?” (página 115)
Com toda a racionalidade com que analisa o mundo que o cerca e a si próprio, Otávio se torna amargurado. Se o mundo de afetos, imprevisível como é, o leva, por isso mesmo, a tentar abdicar dos relacionamentos, do amor em síntese, a ferramenta da racionalidade – é tudo o que lhe sobra – se revela incapaz de consertar o mundo despencado ao seu redor. Otávio analisa saídas para seus dramas; mas há uma tragicomicidade em tudo aquilo, o personagem se vê dentro de um mar de vulgaridade – o clichê aqui é proposital – dentro de um país mergulhado no ódio entre as facções partidárias.

As pessoas não conseguem soerguer a cabeça sobre a ruína econômica, cultural e moral em que se transformou o Brasil. Otávio Espinhosa é o representante legítimo de certa classe média brasileira.
O livro de Kelvin Oliva, A matemática da vida, estoura, vende treze mil exemplares. Todo mundo o cita:
“— É claro que é! Treze mil exemplares em seis meses, no Brasil, é um best-seller! Você tem de escrever imediatamente A matemática da vida II! Podemos negociar um adiantamento melhor. Você descobriu um filão.” (página 63)
Lembra-me certo O Vidiota, de Jerzy Kosinski (também resenhado neste blogue), em que o personagem principal, Chance Gardiner – um homem simplório e iletrado – é elevado à categoria de gênio por dizer frases referentes à jardinagem fora do contexto original, pois é a única coisa que realmente entendia, cujo sentido “metafórico” era construído pela imbecilidade de todos.

A Tirania do Amor – título que se justifica quando se termina a leitura do livro – parece nos dizer que exatamente o amor, contra o qual o protagonista luta é sua possibilidade de se salvar. Os sentimentos são inconstantes, vão e vêm, nascem sem qualquer tipo de objetividade. Mas a racionalidade, alvo perseguido por Otávio Espinhosa, não equilibra o homem em crise, os relacionamentos humanos em crise que, afinal, podem lhe dar sustentação. Por isso o título: o amor se impõe, como força incompreendida, mas essencial, ao homem.

Poderíamos pensar em Daniel como o único personagem que realmente percebe o nó do problema (a crise é de moralidade, de valores culturais), mas ele mesmo se perde ao confundir assertividade, intenção com violência. Já se disse que o ódio é o amor adoecido.

Por tudo, vale a pena ler este A Tirania do Amor. Incomoda, mas é uma leitura visceral. Leia-o, se puder. Esteja certo, porém, não será uma leitura fácil. E talvez seja mais útil do que as análises objetivas, dissertativas feitas neste momento – momento em que os fatos estão acontecendo, ainda quentes – pois os personagens, como nós, estão atônitos com tudo. Como nós, debatem-se neste mar lamacento, necessariamente respingados e sem ainda enxergar saídas próximas.

domingo, 23 de junho de 2019

Resenha nº 150 - La Petite Fille de Monsieur Linh


Imagem relacionadaTítulo em português: A Filha do Senhor Linh
Autor: Philippe Claudel
Edição: 1ª Edição
Editora: Éditions Stock
Copyright: 2005
ISBN: 978-2-253-11554-0
Formato: Livro de Bolso
Origem: Literatura Francesa
Bibliografia: Quelques-uns des cent regrets, 1999 ; Le Café de L’Excelsior, 1999 ; Le Bruit de Trousseaux, 2002 ; Les Âmes Grises, 2003 ; La Petite Fille de Monsieur Linh, 2005 ; Le Rapport de Brodeck, 2007 ; L’Enquête, 2010 ; Parafums, 2012 ; L’Arbre de Pays Toraja, 2016 ; Inhumaines, 2017 ; L’arachipel de Chien, 2018.

É um volume pequeno, formato pocket book. Indicado como leitura complementar do curso de francês que faço, o livrinho me conquistou logo de cara. Philippe Claudel, o autor, é também cineasta e dramaturgo, como me informa uma das páginas do livro. A experiência dele como cineasta foi, a meu ver, importante para construir o foco narrativo. A obra me conquistou pelo tom comedidamente melancólico e pela delicadeza com a qual Philippe trata a problemática de uma pessoa que deixa sua terra, seus valores, sua cultura e tem de adotar as de outro país. Um autor tem de fazer suas escolhas ao contar uma história, ao escolher os símbolos que deseja usar e Claudel acertou nos usos dos símbolos – nem tão difíceis assim para o leitor decifrar. Simplesmente, me apaixonei pela obra. Ah, e é claro, como está escrita em francês, idioma que ainda não domino cem por cento, tive alguma dificuldade. Mas, aí, a sensibilidade de leitor contumaz me auxiliou: o que a mente não conseguiu decodificar, o coração o fez.

“C’est un vieil homme debout à l’arrière d’un bateau. Il serre dans ses bras une valise légère et un nouveau-né, plus légère encore que la valise. Le vieil homme se nomme Monsieur Linh. Il est seul à savoir qu’ils s’appelle ainsi car tous ceux qui le savaient sont morts autour de lui.
Debout à la poupe du bateau, il voit s’élogner son pays, celui de ses ancêtres et de ses morts, tandis que dans ses bras l’enfant dort. Le pays s’éloigne, devient infiniment petit, et Monsieur Linh le ragarde disparaître à l’horizon, pendant des heures, malgré le vent qui souffle et le chahute comme une marionnette. » (página 9)

Em uma tradução livre:

“Um homem velho de pé na parte traseira de um barco. Ele aperta contra si uma valise leve e uma recém-nascida, mais leve que a valise. O homem velho se chama Senhor Linh. Somente ele sabe que se chama assim, porque todos os que o sabiam estão mortos ao redor dele.
“De pé na popa do barco, ele vê seu país se distanciar, o mesmo de seus ancestrais e dos seus familiares mortos, enquanto em seus braços a criança dorme. O país se distancia, torna-se infinitamente pequeno, e o Senhor Linh o vê desaparecer no horizonte, durante horas, apesar do vento que sopra e o importuna como uma marionete.”
Disse, nos comentários em itálico, que a experiência do autor como cineasta foi importante para a forma pela qual ele constrói a história. Ao ler estes dois parágrafos iniciais, o narrador se posiciona como uma câmara postada na popa do barco, enfocando o país do Sr. Linh se perdendo na distância. E este narrador “cola sua visão”, suas lentes, ao personagem principal. O tom, como percebemos, é melancólico; afinal, trata-se da provável última visão da terra natal.

Este Sr. Linh vai para um país cujo nome não é dito, mas que o contexto nos indica ter sido a França. Com ele vai um bebê, de nome Sang Diû (Manhã Doce, em francês) e uma valise onde se encontram um punhado da terra natal, dentro de um saquinho, uma foto já quase descolorida pelo sol, roupas de uso imediato. Ele guarda a valise consigo como se ela contivesse tesouros.

Este velho senhor deixa para trás não só o seu país devastado pela guerra, mas também seus familiares mortos, sua vida, sua cultura. Ele terá de se aclimatar a uma nova cultura, um novo modo de vida, e a primeira “estranheza” que ele tem é que não consegue identificar os odores do novo país. Não há nenhum cheiro familiar.
A criança que segue em seu colo, sempre colocada contra seu peito, não reclama de nada, sendo sempre doce, como o significado do seu nome em francês.

Quando pisa o solo do seu destino, o Sr. Linh – ficamos sabendo, mais tarde, que seu prenome é Tao Laï – é designado para ficar em dormitório coletivo, numa espécie de pensão. É a partir deste local que as primeiras experiências, os primeiros contatos mais significativos deste velho homem vão se dar.

“Des jours passent. Monsieur Linh ne quitte pas le dortoir. Il consacre son temps à s’occuper de l’enfant, avec des gestes tout à la fois attentionés et malhabiles. La petite ne se révolte pas. Elle ne pleure jamais, ne crie pas davantage. C’est comme si, à sa façon, en réprimant ses pleurs et ses désirs impérieux de nourrisson, elle voulait aider son grand-père. C’est ce que pense le vieil homme. Les enfants le regardent et souvent se moquent de lui, mais sans oser le faire à haute voix. » (página 17)
Tradução:
« Os dias passam. O Sr. Linh não sai do dormitório. Ele consagra seu tempo a se ocupar da criança, com gestos ao mesmo tempo de atenção e desajeitados. A pequena não se revolta. Ela não chora jamais, não reclama dos percalços. Como se, a seu modo, reprimindo seu choro e seus desejos imperiosos de alimento, ela quisesse ajudar seu avô. É o que pensa o velho homem. As outras crianças o olham e em seguida zombam dele, mas sem ousar fazê-lo em voz alta.”
O nosso Tao Laï conhece enfim, fora dos domínios do dormitório onde passou a residir, um francês (tudo indica que é francês), um veterano de guerra, de nome Monsieur Bark. E respiramos aliviados, pensando que agora sim, o protagonista terá com quem dividir a solidão. O Sr. Bark é muito solícito, mas a amizade entre ele e o exilado tem um pequeno problema: eles não se entendem por meio da fala. Cada qual fala somente sua língua natal e, desta forma, a solidão continua:
“La vieil homme ne comprend rien à ce que dit celui qui vient de s’asseoir. Pour autant, il sent que les paroles ne sont pas hostiles.
« Vous venez souvent ici ? » reprend l’homme. Mais il ne semble pas attendre de réponse. Il aspire la fumée de sa cigarette, comme s’il en goûtait chaque bouffée. Il continue a parler, sans vraiment regarder Monsieur Linh.
« Mois, je viens presque tous les jours. Ce n’est pas que c’est très joli, mais l’endroit me plaît, il me rappelle de souvenirs. » (página 26)
Tradução:
« O velho homem não compreende nada daquilo que lhe diz aquele que acaba de se assentar. No entanto, ele sente que as palavras não são hostis.
“Você vem sempre aqui?” pergunta o homem. Mas ele não parece esperar a resposta. Ele aspira a fumaça do seu cigarro, como se ele degustasse cada baforada. Continua a falar, sem verdadeiramente olhar para o Sr. Linh.
“Eu venho quase todos os dias. Não é que seja um lugar muito bonito, mas eu gosto do lugar, ele me aviva as lembranças.”
Como se vê, temos o encontro bizarro de dois solitários, presos cada qual às suas memórias, sem conseguirem entender o que o outro fala. Tal recurso interposto pelo autor tem o efeito de fazê-los se entenderem da maneira mais profunda possível: com a alma. Já que não é possível integrarem-se pelas palavras, há de sê-lo pelo sentimento, pelo coração, pela intuição. E entre Sr. Bark e este Sr. Linh se estabelece rápida e essencial amizade. A ponto de o Sr. Linh destinar o maço diário dos cigarros a que tem direito no lugar que o acolhe ao amigo recente.

Entretanto, aquele dormitório era provisório, uma espécie de casa de transição e nosso personagem terá de se mudar para seu destino definitivo – uma espécie de casa para aposentados, um asilo para velhos ou algo do gênero. O Sr. Linh perde, momentaneamente, o contato com seu amigo Bark, ao mesmo tempo que, exilado pela segunda vez, sente falta das pessoas que conviveram com ele:
“Monsieur Linh repense au dortoir, aux femmes moqueuses, à leurs maris joueurs, aux enfants bruyants. Il se surprend à les regretter, à regretter ces familles qui parlaient sa langue, même si elles ne s’adressaient pour ainsi dire jamais à lui. Mais au moins, il vivait encore dans la musique des mots de son pays, dans leur belle mélopée aiguë et nasillarde. » (página 129)
Tradução:
« O Sr. Linh pensa no dormitório, nas mulheres zombeteiras, em seus maridos jogadores, nas crianças barulhentas. Ele se surpreende de as lamentar, de lamentar estas famílias que falavam sua língua, mesmo se elas não se dirigissem jamais a ele. Mas, ao menos, ele vivia ainda dentro da música das palavras de seu país, na bela melodia, aguda e nasal.”
La petite fille de Mr. Linh é um ótimo livro e não digo isto com o foco apenas pedagógico, voltado para um curso de francês. É literatura de primeira. A maneira como o autor Phillipe Claudel trabalha as imagens, as sensibilidades dos personagens. A forma como ele constitui um mistério que vai deixando pistas ao longo do texto, mas que se revela por inteiro somente ao final do livro é de extrema competência. Percebe-se que houve um projeto narrativo, não há pontas soltas.

Não sou um pessimista, mas o tom – como disse na introdução em itálico – contidamente melancólico é adequado a um homem que, tendo perdido toda sua família em uma guerra sem sentido (todas as guerras são sem sentido), é obrigado a imigrar para um país estranho. E este parece ser um subtema importante no livro: tanto Mr. Bark quanto Mr. Linh são seres sofridos, tocados pela inconsistência dos conflitos dos quais participaram. Recomendo solenemente a leitura deste pequeno volume a quem leia em francês.

Aliás, um efeito secundário do curso de francês que estou fazendo, abro-me para a rica literatura francesa. Nomes como Guy de Maupassant, Baudelaire, Victor Hugo, Simone de Beauvoir, Sartre, Alexandre Dumas (pai e filho), Balzac, Flaubert, Proust, Le Clézio vão fazendo parte das minhas referências literárias.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Resenha Nº 149 - O Olho Mais Azul, de Toni Morrison


Resultado de imagem para livro o olho mais azulTítulo original: The Bluest Eye
Autora: Toni Morrison
Tradutor: Manoel Paulo Ferreira
Edição: s/n
Editora: TAG/Cia das Letras
Copyright: 1970
ISBN: 978-85-359-3196-9
Gênero Literário: Romance
Origem: Literatura Americana
Bibliografia: O Olho Mais Azul, 1970; Sula, 1974; Song of Solomon, 1977; Tar Baby, 1981; Amada, 1987; Jazz, 1992; Amor, 2003; A Mercy, 2008; God Help The Child, 2015. Prêmio Nobel de Literatura de 2013.

O friozinho soprava por baixo das portas fechadas e pelas gretas mínimas das janelas. O sítio estava num recanto isolado e não havia internet para me incomodar. Apenas o som da televisão de tubo chegava de longe aos meus ouvidos, mas televisão, sinto muito dizer, não me apetece tanto. Aí dei razão para a letra do Djavan: um dia frio, um bom dia para ler um livro. A coisa que menos eu queria era sair de dentro das cobertas. Conheci Toni Morrison há algum tempo, quando pesquisava na rede mundial algumas informações sobre outro livro, nada a ver com Toni e dei com o nome dela. Toni Morrison. Escritora negra norte-americana. Este O Olho Mais Azul foi o primeiro romance dela. Certamente, não é o livro da minha vida, acredito que Amada seja melhor, mas este é um bom livro. Leitura agradável, não é; denso, fala das agruras de se ser negro numa sociedade segregadora. É leitura para reflexão, incomoda.

Toni Morrison (o nome verdadeiro é Chloe Antony Woford) nasceu 18/02/1931, em Lorain, Ohio, Estados Unidos. É a segunda dos quatro filhos de uma família de classe média baixa, profundamente afetada pela Grande Depressão. Morrison sempre fora uma leitora ávida e seus escritores prediletos eram Jane Austen e Liev Tólstoi. Do pai herdou o talento para contar histórias. Sempre as ouvia, envolvendo as questões entre negros e brancos. Consta que ela se converteu ao catolicismo aos 12 anos de idade; recebeu então o nome de batismo Anthony, que deu origem à sua designação literária, Toni.

Em 1958, Toni Morrison se casou com o arquiteto jamaicano Harold Morrison que também lecionava, como ela, na Universidade de Howard. Ela concluiu seu mestrado em inglês com a tese sobre o suicídio nos livros de William Faulkner e Virginia Wolf. Toni Morrison ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 1993.

Apesar de abordar aspectos feministas em seus livros, ela não se considera como tal, tendo dito, certa feita, “não concordo com o patriarcado e não acho que ele deva ser substituído pelo matriarcado. É uma questão de acesso igualitário, de abrir portas para todo os tipos de coisa.” Os críticos costumam apontar, entretanto, aspectos de um feminismo pós-moderno em suas obras.

Seu trabalho mais famoso é Beloved (Amada); quando foi anunciado que a obra não ganhara nenhum prêmio, 48 críticos literários e escritores negros protestaram.
“Esta é a casa. É verde e branca. Tem uma porta vermelha. É muito bonita. Esta é a família. A mãe, o pai, Dick e Jane moram na casa branca e verde. Eles são muito felizes. Veja a Jane. Ela está de vestido vermelho. Ela quer brincar. Quem vai brincar com Jane? Veja o gato. Está miando. Venha brincar. Venha brincar com a Jane.  O gatinho não quer brincar. Veja a mãe. A mãe é muito boazinha. Mãe, quer brincar com a Jane? A mãe ri. Ria, mãe, ria. Veja o pai. Ele é grande e forte. Pai, quer brincar com a Jane? O pai está sorrindo. Sorria, pai, sorria. Veja o cachorro. Au-au, faz o cachorro. Quer brincar com a Jane? Veja o cachorro correr. Corra, cachorro, corra. Olhe, olhe. Aí vem um amigo. O amigo vai brincar com a Jane. Eles vão jogar um jogo gostoso. Brinque, Jane, brinque.” (página 13)
Assim é o parágrafo inicial deste O Olho Mais Azul. As irmãs Frieda e Claudia recebem a adolescente Pecola Breedlove em casa:
“Ela dormia na cama conosco. Frieda na beirada, porque é corajosa – nunca lhe ocorre que, se a mão dela ficar pendurada na beirada da cama, ‘alguma coisa’ vai sair rastejando lá debaixo e arrancar os dedos dela com uma mordida. Durmo junto da parede porque esse pensamento me ocorreu. Portanto, Pecola teve que dormir no meio.
Mamãe tinha dito, dois dias antes, que estava chegando um ‘caso’ – uma menina que não tinha para onde ir. O condado a havia colocado em nossa casa por alguns dias, até decidir o que fazer cm ela ou, mais precisamente, até que a família se reconciliasse. Deveríamos ser simpáticas com ela e não brigar. Mamãe não sabia ‘o que dá nas pessoas’, mas o Breedlove, aquele cachorrão, tinha incendiado a própria casa, dado uma surra na mulher e o resultado foi que ficou todo mundo na rua.” (página 26)
Aí ficamos sabendo que ‘ficar na rua’ era o pior que poderia acontecer a alguém, naquele condado. Era muito diferente de ‘ser posto para fora’. Conforme nos explicita a narradora, ‘estar na rua’ era algo degradante, um fato físico e irrevogável, “definindo e completando nossa condição metafísica”. Já ser posta para fora, a pessoa pode ir para outro lugar, o peso é menor e não definitivo.

Pecola Breedlove é descrita como uma garota muito feia, não por ser negra, mas por ser da família Breedlove, como o pai, Cholly e a mãe, Sra. Breedlove, Sammy, que estava com outra família. Cholly estava preso.
“Nos poucos dias que Pecola passou conosco, nós nos divertimos. Frieda e eu paramos de brigar uma com a outra e nos concentramos na hóspede, fazendo força para que não se sentisse na rua.” (página 28)
Pecola tinha um desejo secreto: desejava ter olhos azuis:
“Toda noite, sem falta, ela rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente. Embora um tanto desatinada, não tinha perdido a esperança. Levaria muito, muito tempo para que uma coisa maravilhosa como aquela acontecesse.” (página 56)
É que, na cabeça de Pecola, tudo se arranjaria para ela quando tivesse olhos azuis. Eram uma marca física de beleza máxima e teria o dom de mudar sua triste realidade.

A relação dos pais era um tanto complicada, pois Cholly, seu pai, sempre chegava bêbado em casa, se atirava sobre a cama e dormia. Sua mãe tentava obter alguma reação dele e não conseguia; por isso, terminou sendo uma mulher pessimista e azeda, como fica claro nesta passagem em que – digamos – ela tem uma relação muito especial com Jesus:
“E uma vez, quando um gesto de bêbado atirou Cholly contra o fogareiro em brasa, ela gritou: ‘Pega ele, Jesus! Pega ele!’. Se Cholly tivesse parado de beber, ela jamais teria perdoado Jesus. Precisava desesperadamente dos pecados de Cholly. Quanto mais ele afundasse, quanto mais selvagem e irresponsável se tornasse, mais esplêndidas se tornavam ela e sua tarefa. Em nome de Jesus.” (página 52)
O livro conta com várias referências a filmes americanos. Por exemplo, o nome de Pecola fora tirado do filme Imitação da Vida, em que “a moça mulata odeia a mãe porque ela é preta e feia, mas depois chora no enterro”. O filme tem no elenco Sandra Dee, Lana Turner, Juanita Moore, Susan Kohner e John Gavin.

Esta questão do racismo está presente no livro todo, como deixa claro a passagem seguinte:
“Meninos brancos; a mãe não gostava que ele brincasse com pretinhos. Ela lhe havia explicado a diferença entre mulatos e pretos. Era fácil identificá-los. Os mulatos eram limpos  e silenciosos; os pretos eram sujos e barulhentos. Ele pertencia ao primeiro grupo: usava camisas brancas e calças azuis; cortava o cabelo o mais rente possível para evitar qualquer sugestão de carapinha e a risca era desenhada pelo barbeiro. No inverno a mãe passava loção Jergens no rosto dele para que a pele não ficasse cinzenta. Embora fosse clara, a pele podia ficar cinzenta. A linha entre mulato e preto nem sempre era nítida; sinais sutis e reveladores ameaçavam erodi-la e era preciso estar constantemente atento.” (página 96)
Em sua adolescência, Pecola sonhara ser bela, branca e loura como Shirley Temple, atriz-mirim, considerada um prodígio, estrela de filmes como Anjo Azul e A Pequena Órfã. Quanto mais se fortalece este seu desejo, mais o entorno social lhe lembra sua condição de negra e feia.

Pecola procura, então, certo Soaphead Church, uma espécie de curandeiro do lugar. Eis a descrição da cena e do que ela lhe pede:
“Soaphead Church a mandou entrar.
“O que é que eu posso fazer por você, minha criança?”
Ela ficou ali parada, com as mãos cruzadas sobre o estômago, uma barriguinha um pouco saliente. “Talvez. Talvez o senhor possa me ajudar.”
“Ajudar como? Diga, não tenha medo.”
“Os meus olhos.”
“O que é que tem os seus olhos?”
“Eu quero que eles sejam azuis.”
Soaphead franziu os lábios e tocou com a língua uma obturação de ouro. Aquele era o pedido mais fantástico e, ao mesmo tempo, mais lógico que já lhe tinham feito. Ali estava uma menina feia pedindo beleza.” (página 181)
Mal sabe Pecola que a obtenção dos olhos azuis, tão desejados, não será suficiente para lhe dar a vida tão sonhada.

O Olho Mais Azul é o primeiro romance de Toni Morrison. Embora tenha gostado dele no geral, não gostei – e isto é inteiramente pessoal – do investimento que a autora faz na figura de Cholly, o pai de Pecola. A caracterização deste personagem gasta várias páginas. Explico-me melhor: em literatura, se os personagens são os principais, justifica-se o autor investir muito na caracterização dele. Agora, se o personagem é secundário, a carga de informações sobre ele não deve ser tão grande.

Não é o caso, mas, se na vida, há pessoas que entram e saem da nossa vida, apenas tocando nosso caminho, numa obra literária tal situação deve ser evitada por uma questão de economia de meios. Somente entram personagens que têm alguma função na história.

Exceto este senão, o livro é muito bom. Uma frase que fecha o romance mereceria estar numa moldura:
“O amor nunca é melhor do que o amante. Quem é mau, ama com maldade, o violento ama com violência, o fraco ama com fraqueza, gente estúpida ama com estupidez, e o amor de um homem livre nunca é seguro. Não há dádiva para o ser amado. Só o amante possui a dádiva do amor. O ser amado é espoliado, neutralizado, congelado no fulgor do olho interior do amante.” (página 212)
Não concordo cem por cento com tais dizeres. É coerente com a história de vida da personagem, com o tema do livro. E é bonito, produz reflexão.