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sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Resenha nº 152 - Nada, de Carmen Laforet


Título original: Nada
Autora: Carmen Laforet
Tradutor: Rubia Prates Gordoni
Editora: TAG Livros/Alfaguara
Copyright: 1945
ISBN: 978-85-5652-072-2
Gênero literário: Romance
Origem: Espanha (Catalunha)

Bibliografia: Nada (1944); A ilha e os demônios (1950); A nova mulher (1955); A Insolação (1963); Ao virar a esquina (2004); O piano (1952); Um namoro (1953); A ligação (1954); Os Colocados (1954); A Viagem Engraçada (1954); A Garota (1954); Um Casamento (1956); A menina e outras histórias (1970); Gran Canaria (1961); Parallel 35 (1967) livro de viagens, reeditado em 1981 com o título de Minha primeira viagem aos EUA. Artigos literários (1977), compilação de artigos; Posso contar com você (1965-1975) (2003), epistolar com Ramón J. Sender. De coração e alma (1947-1952) (2017), epistolar com Elena Fortún.


Nada, romance debutante de Carmen Laforet. Que impressões me ficam desta leitura que começou arrastada e depois se acelerou? Uma escritora que produz aos vinte e três anos pode compor um livro relevante para a literatura espanhola? Pode um livro sobre a desagregação de uma família tratar do assunto sem um pingo de emotividade? Estas questões, suscitadas a partir do material de apoio da revista que compõe o kit do mês de novembro de 2018, ficaram voejando na minha mente, enquanto lia o livro. A resposta é sim. Nada impressiona exatamente por ser uma obra que analisa a decadência de uma família, no ambiente do pós-guerra civil espanhol, sem qualquer concessão à emoção. Um livro que me incomodou exatamente por isso e por "otras cositas más". A tia Angustias, Glória, Román, Juan e Andrea, a protagonista e narradora desta história,  compõem uma família estranha. Carmen as pôs em cena como se fossem fantasmas de si próprios, seres que não se deixam capturar pela atividade leitora na totalidade. Ambíguos. Ou, modernamente, poderiam, talvez, serem classificados como portadores de transtorno bipolar.

Carmen Laforet Diaz é catalã, da cidade de Barcelona; seu nascimento deu-se em 06/09/1921. Faleceu em Madrid, em 28/02/2004. É a filha mais velha de um arquiteto de Barcelona e uma professora de Toledo. Residiu por um tempo, acompanhando a família, nas Ilhas Canárias. Quando a mãe de Carmen morreu, o pai se casou de novo; entretanto, a relação da autora com a madrasta nunca foi boa. Estreou na literatura com o presente romance Nada e foi ganhadora do desejado prêmio Nadal. Laforet casou-se em 1946 com o crítico literário Manuel Cerezales, com quem teve cinco filhos, dos quais dois deles – Agustín Cerezales Laforet e Silvia Cerezales Laforet – tornaram-se também escritores.

Contextualização necessária: a Guerra Civil Espanhola se deu entre 1936 e 1939, antepondo republicanos, de um lado, e os nacionalistas, de outro. Os republicanos eram progressistas e urbanos, enquanto os nacionalistas, liderados pelo General Franco, eram um misto de monarquistas, carlistas e católicos.

Conflito de várias facetas, ora foi analisado como luta de classes, guerra religiosa, batalha entre ditadura e democracia republicana, revolução e contrarrevolução, embate entre fascismo e comunismo. Seja como for, o resultado nós todos sabemos: venceram os nacionalistas e, a partir de 1939, a Espanha foi governada pelo General Franco até a morte deste, em novembro de 1975.

Deste ambiente de destruição – vários desmandos e assassinatos foram cometidos pelas duas facções – sai um país não só derrotado em sua economia, como também profundamente tumultuado no quesito valores humanos.

É neste ambiente que a catalã Carmen Laforet vai plantar sua narrativa. Andrea é uma jovem, vinda do interior, para estudar letras na capital. Sua mala vem abarrotada de livros e de sonhos, para a casa dos avós – da qual somente se recordava os tempos idos, mais felizes:
“Comecei a seguir – uma gota num rio – a massa humana que, carregada de malas, afluía para a saída. Minha única bagagem era uma malona muito pesada – porque estava quase cheia de livros – que eu mesma levava com toda a força da minha juventude e da minha ansiosa expectativa.
“Um ar marinho pesado e fresco invadiu meus pulmões com a primeira sensação confusa da cidade: uma massa de casas adormecidas, de lojas fechadas, de postes de luz como sentinelas bêbados de solidão. Uma respiração profunda, difícil, vinha com o murmúrio da madrugada. Muito próximo, às minhas costas, além das vielas misteriosas que levam ao Borne, sobre o meu coração excitado, estava o mar.” (página 15)
O endereço de destino é a rua Aribau, onde residiam seus parentes e onde ela deveria se ajeitar, enquanto cursava a faculdade. A guerra e o tempo, entretanto, já haviam desgastado o imóvel, deixando-o, metonimicamente, com os degraus da escada gastos e em nada correspondendo àquela casa guardada na memória de Andrea. O primeiro contato com aquela gente é de péssima impressão:
“Em toda aquela cena pairava algo de aflitivo, e no apartamento um calor sufocante, como se o ar estivesse parado e podre. Ao erguer os olhos, vi que várias mulheres fantasmagóricas tinham aparecido. Uma delas, vestida de preto com uma roupa que lembrava uma camisola, quase me causou arrepios. Tudo naquela mulher parecia horrível, calamitoso, até a esverdeada dentadura com que sorria para mim. Era seguida por um cachorro que bocejava ruidosamente, também ele preto, como uma extensão de seu luto. Depois me disseram que era a empregada, mas nunca nenhuma outra criatura me causou uma impressão tão desagradável.” (página 18)
A avó não reconhece de imediato a neta. Seu comportamento é mostrado como o de  uma pessoa que não tem posse saudável de suas memórias, de suas percepções. Entretanto, como uma alma penada, ela nunca parece dormir, sempre aparecendo em momentos e em cômodos inesperados, quer durante o dia, quer durante a noite.

Juan é casado com Gloria, num estranho relacionamento. Ela, sempre preocupada com a própria aparência, à qual atribui extrema importância e ele, um pintor sofrível. Andam sempre a se dizerem desaforos e, às vezes, Juan chega até mesmo à violência contra a mulher.

Román é um músico extraordinário, mas que abre mão de sua habilidade e se deixa levar pela vida medíocre. Vivem também, Juan e Román, batendo boca e se agredindo, muito embora, na visão da vovó, a relação entre os dois fosse de outro teor:
“Juan era loiro e Román muito moreno, e eu sempre os vestia com roupa igual. Aos domingos iam à missa comigo e com seu avô... No colégio, se algum menino brigava com um deles, o outro logo aparecia para tomar sua defesa. Román era o mais esperto... mas com eles se gostavam! Para as mães, os filhos são todos iguais, mas esses dois eram os meus preferidos... porque eram os mais novos... porque foram os mais infelizes... Principalmente o Juan.” (página 46)
Angustias – nome extremamente bem-colocado – funciona como uma espécie de guardiã da moral da família, embora ela não seja pautada exatamente pela moral ilibada. Mais um elemento em desagregação dentro daquela casa por si já desagregada:
“Saltei da cama tonta de frio e de sono. Tão assustada, que tinha a sensação de não poder me mexer, quando na verdade dois só o que fiz: em poucos segundos arranquei as roupas da cama e me enrolei nelas. Ao passar pela sala, joguei o travesseiro numa cadeira e fui até o vestíbulo envolta numa manta, descalça sobre o piso gelado, justamente quando Angustias chegava da rua puxando Gloria pelo braço, seguida por um taxista com suas malas. Vovó também apareceu, atarantada e balbuciante ao ver a cena.” (página 93)
Mais tarde, ficamos sabendo – e isto não é um spoiler – que Gloria também é um fantasma de si mesmo, uma alienada, que vive alimentando a exaltação de como ela é boa demais, de como é bonita demais. Oscila ela também, entre outras coisas, entre seu marido Juan e Román, como se pode ver no diálogo entre Gloria e Román:
“— Fala baixo!... Você tem muito o que esconder, portanto vê se baixa o tom... Você sabe muito bem que tenho testemunhas que podem dizer para o seu marido como você uma noite foi se oferecer para mim no meu quarto e de como te enxotei a pontapés... Já podia ter feito isso, se quisesse me dar ao trabalho. É bom lembrar que eram muitos soldados no castelo, Gloria, e que alguns deles moram em Barcelona...
— Naquele dia você me embebedou e me beijou... Fui no seu quarto porque te amava. Você caçoou de mim da pior maneira. Escondeu os amigos lá dentro, que morreram de rir da minha cara, e me insultou. Disse que não estava disposto a roubar o que era do seu irmão. Eu era muito nova, garoto. Naquela noite em que te procurei, eu me considerava separada do Juan; tinha decidido deixá-lo. o padre ainda não tinha selado o casamento, não se esqueça.” (página 194)
Román é descrito como um homem muito bonito, destes que poderia ter qualquer mulher a seus pés, desde que o quisesse.

São várias as reviravoltas do enredo. Como disse Yuri Al’Hanati em seu canal Livrada, no YouTube, Nada soaria como uma novela mexicana não fosse o contexto em que foi escrito. Concordo plenamente. A exploração do triângulo amoroso (Gloria-Juan-Román), os dramas de tons acentuados, envolvendo os irmãos Juan e Román, Angustias e Gloria, a caricaturização da empregada Antonia, de Angustias – tudo somado sugere realmente uma narrativa sentimentaloide – não fossem dois aspectos discordantes: o pano de fundo temporal em que acontecem as ações, o pós-guerra decadente e a completa ausência de sentimentos com que tal história é narrada. É estranho que a autora, embora não tivesse dotado sua narrativa de sentimentos, consiga expressar uma sensibilidade tão grande. Não há julgamento, não há condenação das atitudes humanas, mesmo as mais terríveis.

As cidades arrasadas pela Guerra Civil espanhola, entre as quais Barcelona, são entremostradas no primeiro trecho transcrito nesta resenha. As pessoas, arrastando suas malas, o terminal abarrotado, cheio de gente sem lugar definido para ir. É de se supor que tais fatos tenham contribuído fortemente para a desolação, para o desencanto, para a depressão que se estendera na população, por muito tempo, após o término do conflito.

E, ainda, outro item de contextualização vem ajudar a compor este quadro de desagregação: é que a própria região da Catalunha tem uma identidade linguística e cultural própria dentro da Espanha. Uma região que tem sonhado, com intensidade, em sua própria autonomia...

A autora não lança a mão de muitas descrições, mas quando o faz, envolve-as num clima fluido, embaçado, nas quais o mundo da realidade toca o mundo da fantasmagoria, como no trecho que se segue:
“Lembro-me especialmente de uma noite de luar. Eu estava inquieta depois de um dia muito agitado. Ao levantar da cama, vi no espelho de Angustias todo o meu quarto envolto numa cor de sede cinza e, lá mesmo, uma longa sombra branca. Quando me aproximei, o espectro se aproximou comigo. Por fim pude ver meu próprio rosto borrado sobre a camisola de linho. Uma velha camisola de linho – amaciado pelo roçar do tempo – carregada de pesadas rendas, que minha mãe usara muitos anos atrás. Era estranho contemplar-me assim, quase sem ver, de olhos abertos. Levantei uma das mãos para apalpar minhas feições, que pareciam fugir de mim, e lá apareceram uns dedos longos, mais pálidos que o rosto, seguindo a linha das sobrancelhas, do nariz, dos pômulos conformados segundo a estrutura dos ossos. De todo modo, eu mesma, Andrea, estava viva entre as sombras e as paixões que me rodeavam. Às vezes chegava a duvidar disso.” (página 202)
A TAG me presenteou com dois livros de autoras catalãs: Mercè Rodoreda (A Praça do Diamante) e agora, Carmen Laforet (Nada). Provavelmente, autoras que talvez não lesse, se as encontrasse em algum expositor de livraria, por pura conformação à minha zona de conforto. A Praça do Diamante foi uma leitura gostosa, tendendo para a prosa poética. Este Nada, porém, mistura uma poesia que incomoda com a falta de sentimentos.

Talvez seja isto, a guerra nos deixa estéreis, sem sentimentos – como vermes que nos entrassem pelos sentidos e nos deixassem intocados ossos, músculos, órgãos, pele – mas nos roubasse a alma e o equilíbrio psíquico.

Por último, mas não menos importante, devo acrescentar que Nada é uma obra que se enquadra no movimento literário espanhol que convencionou-se chamar tremendismo. Por este termo entende-se

uma técnica narrativa literária que foi desenvolvida, fundamentalmente, na novela espanhola dos anos quarenta do século XX. Caracteriza-se por uma crueza especial na apresentação da trama, no tratamento dos personagens e no idioma, rasgado e difícil. A relação entre essa tendência e o contexto social do período imediato do pós-guerra é clara, pois parece responder às experiências complicadas dos autores durante a guerra, o que teria condicionado sua maneira de ver e apresentar a realidade no mundo artístico. O tremendismo é uma maneira particular de descrever a realidade sob a ótica do exagero, às vezes usado para criar em terceiros a ideia de que uma tragédia é iminente, com o propósito oculto de induzir uma determinada decisão, que é feita para parecer o único capaz de evitar o evento nefasto. O romance que começou o estilo foi A família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela. Outras novelas são A Fiel Infantaria, de Rafael García Serrano, Filhos de Máximo Judas, de Luis Landínez, Lola, Espelho Escuro de Darío Fernández Flórez, etc. (acessado em 30/08/2019)

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Resenha nº 151 - A Tirania do Amor, de Cristovão Tezza


Título original: A Tirania do Amor
Autor: Cristovão Tezza
Editora: Todavia
Edição: 1ª
Copyright: 2018
ISBN: 978-85-93828-68-3
Gênero literário: Romance
Origem: Brasil
Bibliografia do autor: Ficção: Gran Circo das Américas,  1988; A Cidade Inventada, 1980; O Terrorista Lírico, 1981; Ensaio da Paixão, 1999; Trapo, 1988; Aventuras Provisórias, 1989; Juliano Pavollini, 1989; A Suavidade do Vento, 1991; O Fantasma da Infância, 1994; Uma Noite em Curitiba, 1995; Breve espaço entre cor e sombra, 1998; O fotógrafo, 2004; O filho eterno, 2007; Um erro emocional, 2010; Beatriz, 2011; O professor,  2014; A tradutora, 2016; A tirania do amor, 2018. Não Ficção: Entre a prosa e a poesia - Bakhtin e o formalismo russo, 2002; O espírito da prosa - uma autobiografia literária, 2012; Um operário em férias, Record, 2013; Leituras - resenhas & ensaios, 2014; Literatura à margem, 2014; A máquina de caminhar, 2016.

É um sentimento estranho, o que sinto quando leio livros deste autor. Com este, já é o quarto dele que leio – além de Trapo, O Fotógrafo e este A Tirania do Amor, li também sua obra-prima, O Filho Eterno – portanto, creio que tal sentimento será uma constante. Cristovão Tezza não me ganha pela emoção, mas pelos aspectos literários e de crítica social. Considero-o um grande escritor, tem ótimo domínio do seu fazer literário. Sua prosa, porém, não tem minha adesão pelo coração. Não torço pelos seus personagens. De fato, é uma estranha relação. Vale a condução bem-feita da história, valem os recursos ficcionais, vale a análise crítica da ambiência em que circulam e vivem seus seres. Minha relação com a literatura de Cristovão Tezza talvez seja algo que ainda precise entender melhor.

Cristovão Tezza é sobejamente conhecido neste país. Uma das importantes vozes literárias, ele nasceu na cidade de Lages, Santa Catarina, em 21/08/1952. Professor universitário, é escritor de ficção (romances, crônicas e contos) e não ficção (ensaísta, autor de livro didático). Ganhou o prestigioso prêmio Jabuti de melhor romance em 2008 (O Filho Eterno). Aqui no blogue, este é o terceiro livro que resenho dele – os anteriores foram Trapo e O Fotógrafo.

O protagonista de A Tirania do Amor é Otávio Espinhosa, um economista genial. O narrador do livro é dono de uma análise cerebral, que vai confrontar o personagem principal com sua imagem refletida no espelho. E tal análise começa com o começo do livro:
“Diante do sinal vermelho, que contemplou abstraído como alguém sob uma curta hipnose, decidiu (e ao mesmo tempo imaginou as perguntas: Como assim? Você enlouqueceu?) abdicar de sua vida sexual. A ideia bateu opaca, sem ênfase, quase já um fato consumado à frente, como o brilho fixo do semáforo de pedestres, bonequinho imóvel: abdicar. No cansaço – não exatamente cansaço, esta coisa menor, localizável, passageira, ele pensou; é diferente agora, uma espécie de completo esgotamento – e mais o limbo da manhã, nesta névoa mental em que o dia pode se transformar em qualquer coisa, acrescido de uma vastíssima informação privilegiada (e ele imaginou o processo que se seguiria, a imagem de sua mulher fundindo-se com a de um executivo sênior com uma pilha de pastas à frente, a decisão foi tomada com base em uma informação privilegiada que nenhum dos outros acionistas teve acesso – o que o senhor tem a dizer a respeito? A sua prova é escancaradamente ilegal).” (página 5)
Fiz questão de lhes trazer o parágrafo inicial todo porque é muito bem montado. Adianta elementos que serão trabalhados no decorrer das 173 páginas pelas quais flui o romance. Aqui temos um homem em crise, portador, ele mesmo, de uma racionalidade a toda prova, tomando uma decisão aparentemente esdrúxula: tem a intenção de abdicar de sua vida sexual. O conflito interno já se estabelece no momento mesmo em que tal escolha se faz, transcrita nas perguntas como assim? Você enlouqueceu? gritadas pelo seu consciente.

Outra informação preciosa, a empresa da qual é presidente, a Price & Savings está à beira do caos total (veja-se o final do parágrafo, em itálico), estando sob investigação judicial. Claramente, houve um golpe, anotado no mesmo campo da corrupção que assola o Brasil.

A voz do narrador é implacável com o personagem que analisa: apanha-o na intimidade de seus pensamentos quando ele está abstraído, esperando o semáforo de pedestres abrir. É um homem de meia idade, entrando na crise de meia idade, na qual atos e valores da fase inicial não têm mais tanta consistência e a contemplação de um possível futuro não é nada abonadora.

Mas o desvirtuamento de Otávio Espinhosa tem trunfos guardados na manga: ele é autor de livros que misturam autoajuda com conselhos de finanças pessoais. Escreve o livro A matemática da vida, sob o pseudônimo de Kelvin Oliva:
“... Eu nunca tive complexo de nada, para dizer bem a verdade eu acho essa conversa psicanalítica uma bobagem completa, e esse foi um dos momentos em que ele começou a sentir a mudança, um início ainda impreciso de hostilidade, e ele ponderou se era isso mesmo, pela intensidade da reação diante de uma observação casual, de almanaque, uma mera distração, já que eu nunca me interessei em fazer análise ou algo do gênero – só li um pouco a respeito, no papel de Kelvin Oliva, para escrever A matemática da vida e criar para o leitor a imagem de alguém que vai além do beabá, alguém capaz de ver profundamente as coisas, o que aliás nos divertia: Como vai o seu inconsciente coletivo? Sob controle? e eles riam.” (página 123)
A família de Otávio Espinhosa está se desmanchando. Sua esposa, advogada que, precisamente, trabalha no processo contra a empresa da qual o marido é presidente deseja a separação; o filho é um militante político com cuja orientação de esquerda Otávio não concorda. Só lhe resta a filha, Lucila. Sim, porque há muito rompeu com as ideias e a filosofia do pai e o desprestígio de sua atuação acadêmica (um acadêmico, guru de livros de autoajuda?!) põe em dúvida sua capacidade de fazer escolhas.

Em A Tirania do Amor não é só a família de Otávio, o próprio Otávio que se desmoronam; é o próprio Brasil, como se vê neste trecho a seguir, pela boca do filho Daniel:
“O telefonema da filha levou-o à discussão com o filho há um mês, como se ali houvesse fios a ser ligados. Eu não quero fazer parte deste sistema corrupto de que você faz parte. É golpe atrás de golpe. O Brasil está podre. E ele, estúpido – talvez Rachel tenha razão, sem afeto –, tentou explicar: Filho, um país é feito de dinheiro, e a reação agressiva e ofensiva, de uma intensidade nova, um pós-adolescente no limite da histeria, vomitou uma sequência de ofensas.” (página 48)
O questionamento moral é feito, a certa altura, pela filha Lucila; sentados à mesa de um bar, ela faz referência ao livro O Mandarim, de Eça de Queirós:
“— Peguei você! Então. O livro tem aquela linguagem meio antiga, mas é engraçado. Um sujeito recebe uma proposta do diabo: se ele matar um mandarim na China que nunca viu, vai ficar milionário. Assim tipo nunca viu mesmo, não sabe quem é, está lá no outro lado mundo, jamais saberão de seu, assim, “crime” – e Lucila fez as aspas com os dedos. — É só ele concordar em matar, sem mover um dedo e “tchan!”, está rico. Fiquei pensando se eu mataria um mandarim chinês nessas condições. Já pensou? Você mataria um mandarim? Uma coisa completamente sem culpa.” (página 47)
E ainda:
“— E então, pai? Você mataria um mandarim?
Eu mataria a minha mulher? É pouco provável, calculando todas as variáveis. De caso pensado – ele parou, avaliando com alguma frieza a hipótese – jamais, não, nunca. A única possibilidade seria um gesto de violenta emoção, num momento de ofensas mútuas insuportáveis, um gesto errático numa discussão alucinada, uma faca surgida do acaso, uma cadeira na cabeça, um empurrão único sob azares intangíveis resultando num baque inacreditável na nuca e um silêncio eterno. Mas não foi minha intenção, senhores jurados, ele diria, réu e advogado, ou talvez no outro lado do balcão, um severo juiz de peruca num seriado da BBC.” (página 55)
Aquela decisão inicial, de abstinência sexual, Otávio não a consegue sustentar, como era de se prever. Mas nem com a amante, Débora, cujo filho único, anterior ao relacionamento com Otávio, ela havia perdido para o crack – ele consegue algum equilíbrio. Logo a seguir, vem uma conversa tensa entre o casal, com toques de refinada ironia por parte do narrador cerebral, em um trecho caracterizado pelo discurso livre indireto:
“— Mas não vamos falar disso agora. Com a morte do menino – e ele pensou naquele menino sem nome que ela evocava como uma imagem apagada do passado – eu respirei fundo e recomecei. Apagar o passado. Retomar a vida do zero absoluto.
— O zero absoluto é frio demais: exatamente menos duzentos e setenta e três graus vírgula quinze na escala Celsius. Aqueça-se um pouco mais.
Ela deu uma risada explosiva (como alguém que estava precisando disso há muitos anos, ele comentaria com ela dali a algumas horas) e tocou o seu joelho com a mão, o que me deu um surto repentino de felicidade, aquele breve calor dos dedos que me tocaram com uma força milimetricamente superior a um simples toque ocasional. Eu também estava precisando disso há muitos anos. Ela sorriu no escuro da sala vazia, selou-o com um beijo e disse: É mesmo? Você percebeu?” (página 115)
Com toda a racionalidade com que analisa o mundo que o cerca e a si próprio, Otávio se torna amargurado. Se o mundo de afetos, imprevisível como é, o leva, por isso mesmo, a tentar abdicar dos relacionamentos, do amor em síntese, a ferramenta da racionalidade – é tudo o que lhe sobra – se revela incapaz de consertar o mundo despencado ao seu redor. Otávio analisa saídas para seus dramas; mas há uma tragicomicidade em tudo aquilo, o personagem se vê dentro de um mar de vulgaridade – o clichê aqui é proposital – dentro de um país mergulhado no ódio entre as facções partidárias.

As pessoas não conseguem soerguer a cabeça sobre a ruína econômica, cultural e moral em que se transformou o Brasil. Otávio Espinhosa é o representante legítimo de certa classe média brasileira.
O livro de Kelvin Oliva, A matemática da vida, estoura, vende treze mil exemplares. Todo mundo o cita:
“— É claro que é! Treze mil exemplares em seis meses, no Brasil, é um best-seller! Você tem de escrever imediatamente A matemática da vida II! Podemos negociar um adiantamento melhor. Você descobriu um filão.” (página 63)
Lembra-me certo O Vidiota, de Jerzy Kosinski (também resenhado neste blogue), em que o personagem principal, Chance Gardiner – um homem simplório e iletrado – é elevado à categoria de gênio por dizer frases referentes à jardinagem fora do contexto original, pois é a única coisa que realmente entendia, cujo sentido “metafórico” era construído pela imbecilidade de todos.

A Tirania do Amor – título que se justifica quando se termina a leitura do livro – parece nos dizer que exatamente o amor, contra o qual o protagonista luta é sua possibilidade de se salvar. Os sentimentos são inconstantes, vão e vêm, nascem sem qualquer tipo de objetividade. Mas a racionalidade, alvo perseguido por Otávio Espinhosa, não equilibra o homem em crise, os relacionamentos humanos em crise que, afinal, podem lhe dar sustentação. Por isso o título: o amor se impõe, como força incompreendida, mas essencial, ao homem.

Poderíamos pensar em Daniel como o único personagem que realmente percebe o nó do problema (a crise é de moralidade, de valores culturais), mas ele mesmo se perde ao confundir assertividade, intenção com violência. Já se disse que o ódio é o amor adoecido.

Por tudo, vale a pena ler este A Tirania do Amor. Incomoda, mas é uma leitura visceral. Leia-o, se puder. Esteja certo, porém, não será uma leitura fácil. E talvez seja mais útil do que as análises objetivas, dissertativas feitas neste momento – momento em que os fatos estão acontecendo, ainda quentes – pois os personagens, como nós, estão atônitos com tudo. Como nós, debatem-se neste mar lamacento, necessariamente respingados e sem ainda enxergar saídas próximas.