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terça-feira, 13 de agosto de 2019

Resenha nº 151 - A Tirania do Amor, de Cristovão Tezza


Título original: A Tirania do Amor
Autor: Cristovão Tezza
Editora: Todavia
Edição: 1ª
Copyright: 2018
ISBN: 978-85-93828-68-3
Gênero literário: Romance
Origem: Brasil
Bibliografia do autor: Ficção: Gran Circo das Américas,  1988; A Cidade Inventada, 1980; O Terrorista Lírico, 1981; Ensaio da Paixão, 1999; Trapo, 1988; Aventuras Provisórias, 1989; Juliano Pavollini, 1989; A Suavidade do Vento, 1991; O Fantasma da Infância, 1994; Uma Noite em Curitiba, 1995; Breve espaço entre cor e sombra, 1998; O fotógrafo, 2004; O filho eterno, 2007; Um erro emocional, 2010; Beatriz, 2011; O professor,  2014; A tradutora, 2016; A tirania do amor, 2018. Não Ficção: Entre a prosa e a poesia - Bakhtin e o formalismo russo, 2002; O espírito da prosa - uma autobiografia literária, 2012; Um operário em férias, Record, 2013; Leituras - resenhas & ensaios, 2014; Literatura à margem, 2014; A máquina de caminhar, 2016.

É um sentimento estranho, o que sinto quando leio livros deste autor. Com este, já é o quarto dele que leio – além de Trapo, O Fotógrafo e este A Tirania do Amor, li também sua obra-prima, O Filho Eterno – portanto, creio que tal sentimento será uma constante. Cristovão Tezza não me ganha pela emoção, mas pelos aspectos literários e de crítica social. Considero-o um grande escritor, tem ótimo domínio do seu fazer literário. Sua prosa, porém, não tem minha adesão pelo coração. Não torço pelos seus personagens. De fato, é uma estranha relação. Vale a condução bem-feita da história, valem os recursos ficcionais, vale a análise crítica da ambiência em que circulam e vivem seus seres. Minha relação com a literatura de Cristovão Tezza talvez seja algo que ainda precise entender melhor.

Cristovão Tezza é sobejamente conhecido neste país. Uma das importantes vozes literárias, ele nasceu na cidade de Lages, Santa Catarina, em 21/08/1952. Professor universitário, é escritor de ficção (romances, crônicas e contos) e não ficção (ensaísta, autor de livro didático). Ganhou o prestigioso prêmio Jabuti de melhor romance em 2008 (O Filho Eterno). Aqui no blogue, este é o terceiro livro que resenho dele – os anteriores foram Trapo e O Fotógrafo.

O protagonista de A Tirania do Amor é Otávio Espinhosa, um economista genial. O narrador do livro é dono de uma análise cerebral, que vai confrontar o personagem principal com sua imagem refletida no espelho. E tal análise começa com o começo do livro:
“Diante do sinal vermelho, que contemplou abstraído como alguém sob uma curta hipnose, decidiu (e ao mesmo tempo imaginou as perguntas: Como assim? Você enlouqueceu?) abdicar de sua vida sexual. A ideia bateu opaca, sem ênfase, quase já um fato consumado à frente, como o brilho fixo do semáforo de pedestres, bonequinho imóvel: abdicar. No cansaço – não exatamente cansaço, esta coisa menor, localizável, passageira, ele pensou; é diferente agora, uma espécie de completo esgotamento – e mais o limbo da manhã, nesta névoa mental em que o dia pode se transformar em qualquer coisa, acrescido de uma vastíssima informação privilegiada (e ele imaginou o processo que se seguiria, a imagem de sua mulher fundindo-se com a de um executivo sênior com uma pilha de pastas à frente, a decisão foi tomada com base em uma informação privilegiada que nenhum dos outros acionistas teve acesso – o que o senhor tem a dizer a respeito? A sua prova é escancaradamente ilegal).” (página 5)
Fiz questão de lhes trazer o parágrafo inicial todo porque é muito bem montado. Adianta elementos que serão trabalhados no decorrer das 173 páginas pelas quais flui o romance. Aqui temos um homem em crise, portador, ele mesmo, de uma racionalidade a toda prova, tomando uma decisão aparentemente esdrúxula: tem a intenção de abdicar de sua vida sexual. O conflito interno já se estabelece no momento mesmo em que tal escolha se faz, transcrita nas perguntas como assim? Você enlouqueceu? gritadas pelo seu consciente.

Outra informação preciosa, a empresa da qual é presidente, a Price & Savings está à beira do caos total (veja-se o final do parágrafo, em itálico), estando sob investigação judicial. Claramente, houve um golpe, anotado no mesmo campo da corrupção que assola o Brasil.

A voz do narrador é implacável com o personagem que analisa: apanha-o na intimidade de seus pensamentos quando ele está abstraído, esperando o semáforo de pedestres abrir. É um homem de meia idade, entrando na crise de meia idade, na qual atos e valores da fase inicial não têm mais tanta consistência e a contemplação de um possível futuro não é nada abonadora.

Mas o desvirtuamento de Otávio Espinhosa tem trunfos guardados na manga: ele é autor de livros que misturam autoajuda com conselhos de finanças pessoais. Escreve o livro A matemática da vida, sob o pseudônimo de Kelvin Oliva:
“... Eu nunca tive complexo de nada, para dizer bem a verdade eu acho essa conversa psicanalítica uma bobagem completa, e esse foi um dos momentos em que ele começou a sentir a mudança, um início ainda impreciso de hostilidade, e ele ponderou se era isso mesmo, pela intensidade da reação diante de uma observação casual, de almanaque, uma mera distração, já que eu nunca me interessei em fazer análise ou algo do gênero – só li um pouco a respeito, no papel de Kelvin Oliva, para escrever A matemática da vida e criar para o leitor a imagem de alguém que vai além do beabá, alguém capaz de ver profundamente as coisas, o que aliás nos divertia: Como vai o seu inconsciente coletivo? Sob controle? e eles riam.” (página 123)
A família de Otávio Espinhosa está se desmanchando. Sua esposa, advogada que, precisamente, trabalha no processo contra a empresa da qual o marido é presidente deseja a separação; o filho é um militante político com cuja orientação de esquerda Otávio não concorda. Só lhe resta a filha, Lucila. Sim, porque há muito rompeu com as ideias e a filosofia do pai e o desprestígio de sua atuação acadêmica (um acadêmico, guru de livros de autoajuda?!) põe em dúvida sua capacidade de fazer escolhas.

Em A Tirania do Amor não é só a família de Otávio, o próprio Otávio que se desmoronam; é o próprio Brasil, como se vê neste trecho a seguir, pela boca do filho Daniel:
“O telefonema da filha levou-o à discussão com o filho há um mês, como se ali houvesse fios a ser ligados. Eu não quero fazer parte deste sistema corrupto de que você faz parte. É golpe atrás de golpe. O Brasil está podre. E ele, estúpido – talvez Rachel tenha razão, sem afeto –, tentou explicar: Filho, um país é feito de dinheiro, e a reação agressiva e ofensiva, de uma intensidade nova, um pós-adolescente no limite da histeria, vomitou uma sequência de ofensas.” (página 48)
O questionamento moral é feito, a certa altura, pela filha Lucila; sentados à mesa de um bar, ela faz referência ao livro O Mandarim, de Eça de Queirós:
“— Peguei você! Então. O livro tem aquela linguagem meio antiga, mas é engraçado. Um sujeito recebe uma proposta do diabo: se ele matar um mandarim na China que nunca viu, vai ficar milionário. Assim tipo nunca viu mesmo, não sabe quem é, está lá no outro lado mundo, jamais saberão de seu, assim, “crime” – e Lucila fez as aspas com os dedos. — É só ele concordar em matar, sem mover um dedo e “tchan!”, está rico. Fiquei pensando se eu mataria um mandarim chinês nessas condições. Já pensou? Você mataria um mandarim? Uma coisa completamente sem culpa.” (página 47)
E ainda:
“— E então, pai? Você mataria um mandarim?
Eu mataria a minha mulher? É pouco provável, calculando todas as variáveis. De caso pensado – ele parou, avaliando com alguma frieza a hipótese – jamais, não, nunca. A única possibilidade seria um gesto de violenta emoção, num momento de ofensas mútuas insuportáveis, um gesto errático numa discussão alucinada, uma faca surgida do acaso, uma cadeira na cabeça, um empurrão único sob azares intangíveis resultando num baque inacreditável na nuca e um silêncio eterno. Mas não foi minha intenção, senhores jurados, ele diria, réu e advogado, ou talvez no outro lado do balcão, um severo juiz de peruca num seriado da BBC.” (página 55)
Aquela decisão inicial, de abstinência sexual, Otávio não a consegue sustentar, como era de se prever. Mas nem com a amante, Débora, cujo filho único, anterior ao relacionamento com Otávio, ela havia perdido para o crack – ele consegue algum equilíbrio. Logo a seguir, vem uma conversa tensa entre o casal, com toques de refinada ironia por parte do narrador cerebral, em um trecho caracterizado pelo discurso livre indireto:
“— Mas não vamos falar disso agora. Com a morte do menino – e ele pensou naquele menino sem nome que ela evocava como uma imagem apagada do passado – eu respirei fundo e recomecei. Apagar o passado. Retomar a vida do zero absoluto.
— O zero absoluto é frio demais: exatamente menos duzentos e setenta e três graus vírgula quinze na escala Celsius. Aqueça-se um pouco mais.
Ela deu uma risada explosiva (como alguém que estava precisando disso há muitos anos, ele comentaria com ela dali a algumas horas) e tocou o seu joelho com a mão, o que me deu um surto repentino de felicidade, aquele breve calor dos dedos que me tocaram com uma força milimetricamente superior a um simples toque ocasional. Eu também estava precisando disso há muitos anos. Ela sorriu no escuro da sala vazia, selou-o com um beijo e disse: É mesmo? Você percebeu?” (página 115)
Com toda a racionalidade com que analisa o mundo que o cerca e a si próprio, Otávio se torna amargurado. Se o mundo de afetos, imprevisível como é, o leva, por isso mesmo, a tentar abdicar dos relacionamentos, do amor em síntese, a ferramenta da racionalidade – é tudo o que lhe sobra – se revela incapaz de consertar o mundo despencado ao seu redor. Otávio analisa saídas para seus dramas; mas há uma tragicomicidade em tudo aquilo, o personagem se vê dentro de um mar de vulgaridade – o clichê aqui é proposital – dentro de um país mergulhado no ódio entre as facções partidárias.

As pessoas não conseguem soerguer a cabeça sobre a ruína econômica, cultural e moral em que se transformou o Brasil. Otávio Espinhosa é o representante legítimo de certa classe média brasileira.
O livro de Kelvin Oliva, A matemática da vida, estoura, vende treze mil exemplares. Todo mundo o cita:
“— É claro que é! Treze mil exemplares em seis meses, no Brasil, é um best-seller! Você tem de escrever imediatamente A matemática da vida II! Podemos negociar um adiantamento melhor. Você descobriu um filão.” (página 63)
Lembra-me certo O Vidiota, de Jerzy Kosinski (também resenhado neste blogue), em que o personagem principal, Chance Gardiner – um homem simplório e iletrado – é elevado à categoria de gênio por dizer frases referentes à jardinagem fora do contexto original, pois é a única coisa que realmente entendia, cujo sentido “metafórico” era construído pela imbecilidade de todos.

A Tirania do Amor – título que se justifica quando se termina a leitura do livro – parece nos dizer que exatamente o amor, contra o qual o protagonista luta é sua possibilidade de se salvar. Os sentimentos são inconstantes, vão e vêm, nascem sem qualquer tipo de objetividade. Mas a racionalidade, alvo perseguido por Otávio Espinhosa, não equilibra o homem em crise, os relacionamentos humanos em crise que, afinal, podem lhe dar sustentação. Por isso o título: o amor se impõe, como força incompreendida, mas essencial, ao homem.

Poderíamos pensar em Daniel como o único personagem que realmente percebe o nó do problema (a crise é de moralidade, de valores culturais), mas ele mesmo se perde ao confundir assertividade, intenção com violência. Já se disse que o ódio é o amor adoecido.

Por tudo, vale a pena ler este A Tirania do Amor. Incomoda, mas é uma leitura visceral. Leia-o, se puder. Esteja certo, porém, não será uma leitura fácil. E talvez seja mais útil do que as análises objetivas, dissertativas feitas neste momento – momento em que os fatos estão acontecendo, ainda quentes – pois os personagens, como nós, estão atônitos com tudo. Como nós, debatem-se neste mar lamacento, necessariamente respingados e sem ainda enxergar saídas próximas.

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