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segunda-feira, 27 de julho de 2020

Resenha nº 162 - Os Vestígios do Dia, de Kazuo Ishiguro


Os vestígios do dia: Seguido de "Depois do anoitecer" por [Kazuo Ishiguro, José Rubens Siqueira]Título Original: The Remains Of The Day
Título em português: Os Vestígios do Dia
Autor: Kazuo Ishiguro
Tradutor: José Rubens Siqueira
Editora: Companhia das Letras
Edição: 2ª, 2ª reimpressão
Copyright: 1989
ISBN: 978-85-359-2641-5
Origem: Literatura inglesa
Gênero: Romance

Criatura fantástica, este Mr. Stevens, o mordomo-protagonista, deste Os Vestígios do Dia! Livro muito bem escrito, o que me chamou a atenção nesta leitura fluente foi mesmo este mordomo. Pode-se pensar em uma caricatura, uma vez que ele confirma o estereótipo do mordomo inglês: fleumático, perfeccionista, discretíssimo e fiel ao seu amo como um bom cão de guarda. Confesso, esta foi minha primeira impressão ao iniciar a leitura. Depois, à medida que as folhas se sucediam, a impressão foi mudando; Kazuo Ishiguro consegue dar ao narrador-personagem uma dimensão humana construída de detalhes. Sendo narrado em primeira pessoa (mais que apropriado) temos acesso aos seus pensamentos e dramas íntimos. Absolutamente apaixonante!

Kazuo Ishiguro é um escritor nipo-britânico, nascido em Nagasaki, Japão, em 08/11/1954. Mudou-se para a Inglaterra aos cinco anos de idade, juntamente com a família, para a cidade de Guildford. Este escritor tem duas curiosidades: a primeira, ele sempre sonhou em ser músico, e não literato; a segunda, ele é o primeiro escritor com formação em escrita criativa a ganhar um Nobel, em 2017. Sua obra foi traduzida para 28 idiomas. São trabalhos seus: Quando Éramos Órfãos (2000), O Gigante Enterrado (2015), Noturnos (2009 – contos).

“Parece cada vez mais provável que eu realmente faça a expedição que vem me preocupando já há alguns dias. Uma expedição, devo dizer, que empreenderei sozinho, no conforto do Ford de Mr. Farraday, expedição que, é de se prever, me fará passar pelo que há de melhor na paisagem campestre da Inglaterra, até a região Oeste, e que pode manter-me afastado de Darlington Hall até por cinco ou seis dias. A ideia dessa viagem surgiu, devo confessar, de uma gentil sugestão que me foi feita pelo próprio Mr. Farraday uma tarde, faz quase quinze dias, enquanto eu estava tirando a poeira dos retratos da biblioteca. Na verdade, lembro bem, estava em cima da escadinha, espanando o retrato do visconde Wetherby, quando meu patrão entrou, trazendo alguns volumes que, provavelmente, pretendia devolver às estantes.” (página 11)
Assim se expressa Mr. Stevens, o mordomo e narrador desta história. De cara, já podemos identificar o zelo com que ele trabalha; a linguagem dele é elegante, sem ser empolada, como deveria caber a um profissional que sonha atingir a referência de sua profissão. Mordomo perfeito, servidor perfeito de seu patrão. Mr. Stevens espelha-se no seu pai – este, um profissional respeitado por todos os da sua classe.

Distantes desta cultura aristocrática, talvez nós, brasileiros, tenhamos um tanto de dificuldade de entender, como pode um profissional de qualquer espécie, ter uma dedicação ao trabalho e ao patrão a este custo. Um trecho que nos dá bem a dimensão desta pretensão:
“Você sabe, Stevens, que não tenho a expectativa de que fique trancado aqui nesta casa o tempo todo que vou estar fora. Por que não pega o carro e vai passar uns dias em algum lugar? Parece estar precisando de uma boa folga.
Vindo assim, do nada, com veio, eu não soube responder à sugestão. Lembro-me de ter agradecido a consideração, mas, provavelmente, não disse nada muito definido, porque meu patrão continuou:
Estou falando sério, Stevens. Acho mesmo que devia tirar uma folga. Eu banco a conta da gasolina. Vocês vivem trancados nessas casas enormes, trabalhando para os outros: quando é que conseguem ver um pouco desse lindo campo que possuem?” (página 12)
É que ser um mordomo, na Inglaterra aristocrática, era uma carreira para a vida inteira. E, se o indivíduo conseguisse se aperfeiçoar com os anos, este profissional tornava-se indispensável, um símbolo de bom gosto, poder econômico e nobreza.

Mas Mr. Farraday não é da nobreza, não é sequer um inglês; é um americano rico, que anseia viver como um aristocrata. Adquirira Darlington Hall – que já pertencera a Mr. Darlington, para quem Stevens já trabalhara – mantendo nela todas as características de uma mansão e dotando sua vida de referências nobres: criados, mordomo, jardins, prataria, obras de arte.

Em ritmo de um diário, Mr. Stevens viaja, enquanto Mr. Farraday está fora. E, nesta viagem, ele relembra aspectos de sua vida; há referências ao tempo em que servira o cavalheiro Mr. Darlington. Relembra seu trabalho em comum com Miss. Kenton. E é uma carta de Miss Kenton o motivo da viagem deste incrível mordomo. O tempo de Mr. Darlington já é passado; Mr. Stevens está tendo alguns problemas com a criadagem sob suas ordens. Nada de grave, mas a presença dessas falhas incomoda sobremaneira este profissional e ele acha que, se Miss Kenton aceitasse de volta seu cargo em Darlington Hall, do qual se demitira há tempos, para se casar, tais tropeços seriam resolvidos.

Durante a viagem de carro, durante as breves estadas em cidadezinhas tipicamente inglesas, no caminho, Mr. Stevens não só trabalha suas recordações, como também nos revela muitas coisas da aristocracia inglesa – decadente, forçoso se diga – naquele período entreguerras da política europeia.

Na orelha do livro, José Geraldo Couto faz a seguinte observação, que reputo importante:
“O pessoal e o histórico, o público e o privado, a paixão e o dever são os polos que Kazuo Ishiguro entrelaça admiravelmente neste relato em que tudo é dito de modo elusivo e oblíquo, como que à revelia do protagonista-narrador. Quanto mais se empenha em exaltar o estofo moral de Lord Darlington, por exemplo, mais Stevens nos informa sobre as ligações de seu antigo patrão com o nazifascismo.”
Isto acontece porque, em sua ânsia por ser mordomo perfeito – e mordomo perfeito nunca, jamais, se intromete em assuntos de seu amo – e tendo inabalável confiança na moral de seu patrão, o cavalheiro Darlington – ele não questiona os atos daquele:
“Mas você gosta de Lord Darlington. Gosta profundamente, acabou de me dizer isso. Se gosta dele, não deveria se preocupar? Ficar ao menos curioso? O primeiro-ministro britânico e o embaixador alemão são reunidos de noite por seu patrão para conversas secretas, e você não fica nem curioso?
“Não diria que não fico curioso, senhor. Porém, não estou em posição de demonstrar curiosidade por essas questões.”
“Não está em posição? Ah, suponho que você acredita que isso é lealdade. Acredita? Acha que está sendo leal? A Lord Darlington? Ou à Coroa, enfim?”
“Desculpe, senhor, não entendo o que está propondo.” (página 243)
A tentativa ferrenha de ser neutro, unida à crença na moralidade do Lord a que serve funcionam como peças acusatórias: Stevens sabe muito bem que algo de grave contra os interesses da Inglaterra se trama atrás daquelas portas.

O período entreguerras é cheio de tensão. A Alemanha, derrotada na primeira guerra mundial, saíra falida e humilhada pelo tratado de Versailles. Por ele são impostas condições desumanas aos derrotados. Este é um dos estopins que irão acender o segundo conflito mundial. Neste cenário de delicadas composições, movimentos de bastidores e ódios disfarçados, movimenta-se a história de Os Vestígios do Dia.

Movimentam-se, igualmente, os sentimentos. Pela carta recebida por Mr. Stevens, Miss Kenton – como casada, Mrs. Benn – não é feliz em seu casamento. É por este motivo que o mordomo tem esperança de convencê-la a reassumir seu antigo posto em Darlington Hall.

Um exemplo de como há situações oblíquas, geradora de incômodos entre os personagens pode ser verificado na passagem abaixo:
“Ela estava, então, parada na minha frente, e de súbito o clima sofreu uma mudança peculiar, quase como se nós dois tivéssemos sido repentinamente atirados para um outro plano, inteiramente diferente, do ser. Temo que não seja fácil descrever aqui com clareza o que quero dizer. O que posso afirmar é que tudo à nossa volta ficou muito quieto; tive a impressão de que Miss Kenton também passou por uma súbita mudança; havia uma estranha seriedade na expressão dela, e pareceu-me que estava quase assustada.” (página 186)
Outro trecho da orelha do livro que julgo importante reproduzir aqui – eu não poderia dizer melhor – vai transcrito abaixo:
“Uma das muitas leituras sugeridas pelo livro é a da profissão de mordomo como metáfora da diplomacia. Em ambas, os mais inflamados atritos e paixões são amortecidos pela formalidade, pela compostura, pelos códigos e rituais da vida em sociedade, e só se revelam nas entrelinhas dos gestos e do discurso. O mérito maior de Ishiguro é o de ter traduzido esse mecanismo de escamoteamento em estilo literário.”

Neste Os Vestígios do Dia o leitor terá, portanto, de escolher qual linha interpretativa deverá seguir. Como nos disse o saudoso Umberto Eco, em sua famosa A Obra Aberta, o texto se oferece ao leitor, mas somente a ele estará reservado o trabalho, a escolha da interpretação.

Há um outro trecho que gostaria de citar, meu caro leitor; nele, identifiquei outra mensagem dúbia, oblíqua, que nos deixa aquela sensação de “o que é, verdadeiramente, que está sendo dito aqui?” Por que foram escolhidas tais palavras e tais construções sintáticas que nos deixam na dúvida?:
“Não se pode ficar pensando no que poderia ter sido. Tem-se de entender que esta vida é boa, talvez melhor que a de muita gente, e agradecer.” (página 261)
A forma verbal “tem-se” traduz obrigação; se é assim, a personagem em questão, Mrs. Benn, tenta convencer a si própria que sua vida é boa, que deve agradecer? E a gente fica se perguntando, mas, Mrs. Benn, a senhora é realmente feliz ou tenta apenas se convencer de que é? Concorda comigo, caro leitor?

Os Vestígios do Dia. Por este livro, fiquei fã do autor. Espero ter dado a mesma vontade de pegar o volume e devorar a história. Personagem como este Mr. Stevens vai para a galeria das criaturas ficcionais preferidas, bem ao lado daquele Stoner, do livro do mesmo nome, do escritor John Williams.

domingo, 19 de julho de 2020

Resenha nº 161 - Os Novos Moradores, de Francisco Azevedo


Os novos moradores por [Francisco Azevedo]Título original: Os Novos Moradores
Autor: Francisco Azevedo
Editora: Record
Edição: 3ª
Copyright: 2017
ISBN: 978-85-01-11057-2
Gênero Literário: Romance
Origem: Literatura Brasileira

Francisco Azevedo já era meu conhecido. Dele, já lera Arroz de Palma, resenhado neste blogue. Como no livro anterior, neste Os Novos Moradores Azevedo volta à ambiência que o consagrou – Arroz de Palma se tornou um sucesso de público e de crítica. Aqui também o ambiente é o familiar. Mas, lá como cá, engana-se quem pensa estar diante de dramas miúdos e somente bem-escritos. Desfilam situações incômodas, desafios, anseios por liberdade. Pode-se ir rapidamente do inferno ao paraíso, muita vez sem se passar pelo purgatório. Tempos modernos, questionados estão os conceitos antigos de família. Que escritor é este Francisco Azevedo! Seu estilo poético se detém sobre objetos domiciliares para deles extrair aspectos da intimidade dos personagens. Leitura fluente, apaixonante mesmo. Os Novos Moradores, na minha opinião, não fica nada a dever ao romance de estreia do autor. E olha, isto não é tão comum assim, conseguir duas obras tão boas em tão pouco espaço de tempo...

Francisco José Alonso Vellozo Azevedo nasceu no Rio de Janeiro, em 23/02/1951. É romancista, dramaturgo, roteirista, poeta e ex-diplomata. Começou a dedicar-se à literatura em 1967, quando venceu o concurso promovido pela Organização dos Estados Americanos (OEA).

Em 1978, publica seu primeiro trabalho, um livro de poesias, Contra Os Moinhos de Vento.  1984 nos dá A Casa dos Arcos (nome pelo qual é conhecido o Palácio do Itamaraty), com textos e poemas de sua lavra. 1994 nos traz a peça Casa de Prostituição Anaïs Nin; 1997, veio a comédia dramática Coração na Boca. Arroz de Palma surgiu em 2008 e em 2012, aparece Doce Gabito.

Tenho gosto especial – os que me leem já o perceberam – pelos parágrafos de abertura dos livros e aqui não será diferente:
“Idênticas na simplicidade dos traços. Duas fachadas em perfeita simetria – como se um só corpo a se olhar no espelho. Na aparência, amantes inseparáveis, unidas por invejável equilíbrio. Na intimidade, estranhas siamesas coladas pelo destino ou pelo acaso, quem poderá saber? Hoje, com o distanciamento e a isenção da maturidade, Cosme reconhece que, temperamentos opostos, ambas foram essenciais em suas vidas. A casa de cá – onde viveu até os 23 anos –, fria, desconfiada e tediosa. Enquanto a casa de lá – para onde se mudou depois –, atrevida, imprevisível, dionisíaca. Já era assim na época de Vicenza Dalla Luce, cantora lírica de gloriosa memória. Conhecida por sua raríssima voz e pelos lautos almoços e jantares que promovia – festas animadíssimas que, é claro, infernizavam a vida dos Soares Teixeira, seus vizinhos.” (página 19)
Pronto. Que nos diz este parágrafo inicial? Repare o leitor o modo pelo qual o narrador criado pelo autor nos apresenta as casas geminadas: perfeita simetria, amantes inseparáveis na aparência, estranhas siamesas na intimidade. São adjetivadas como uma, fria, desconfiada, tediosa; a outra, atrevida, imprevisível, dionisíaca. Pontos bastantes para caracterizarmos, de vez, as ditas casas geminadas como personagens deste excelente romance. E mais, há uma sombra, há um não dito pairando sobre os telhados – a casa de cá e dionisíaca – Dionísio é o nome grego para o romano Baco. Deus ligado aos ciclos campestres de colheita e plantio, ao vinho, aos sentidos, aos ciclos vitais de morte e nascimento; liga-se também à fertilidade. Prenúncio: vem aí um drama envolvendo sentidos, amantes, sexo.

O tempo passa, uma das casas geminadas muda de mãos. Mantém, entretanto, cada uma delas, suas respectivas personalidades. Morador da casa de cá, Cosme tem uma relação amorosa com Vicenza, residente na casa de lá. Entretanto, ela se muda, indo embora no verão de 1985 – para a alegria dos pais dele, pois Vicenza era trinta anos mais velha que o amante.

Fica sozinho o apaixonado Cosme; sozinho, na casa vazia, ele relembra seu amor:
“Cosme não pensa duas vezes, tira a roupa, entra no boxe, torneiras abertas ao máximo como era hábito seu. A generosa catadupa bate-lhe nas costas, no peito, no rosto. Olhos fechados, água escorrendo forte, ele relembra trechos da carta que lhe chegou na véspera. Descobre então que aquela última visita não celebra apenas a casa que lhe é tão especial. Celebra mais. Celebra a promessa feita a Vicenza de manter o espírito independente e livre! Ali mesmo, quando se despediram, ela lhe disse que, em dia não muito distante, ele entenderia que ambos haviam cumprido os seus papéis e que era hora de se aventurar em novas histórias, novos amores. Quem sabe algum assim da sua idade, excessivo e visionário como ele?
Cosme já não precisa da toalha, deixa-a lá mesmo caída na banheira – para quem está no paraíso, nudez é traje adequado. No quarto, o cenário pronto: velas e incensos acesos, os poucos itens harmoniosamente dispostos no chão que é todo ele mesa e todo ele cama. Vicenza se faz presente com a “Bachiana número 5”, de Villa-Lobos. O vinho é servido nos cálices, o pão é partido e posto nos pratos. A mão direita brinda com a esquerda aquele momento único. Juntas, como se numa oferenda pagã, levam à boca o sangue de Dionísio. Depois, o pão molhado no vinho é corpo triturado por impiedosos dentes. Corpo mastigado e ingerido sem o menor cuidado, porque o corpo de Dionísio não foi dado por nós nem nos redime os pecados. Porque o corpo de Dionísio é luxúria e êxtase e saudável perdição.”  (página 27)
Uma celebração em dois planos, certamente; num, plano da tradição do cristianismo, a celebração do amor incondicional que se dá por inteiro; noutro, o amor carnal, que se realiza por inteiro.

Mas, para a casa de lá mudam-se novos moradores. Inês, Pedro, Amanda e Estêvão. Saíram do Sul e vêm para o Rio de Janeiro. Um acidente doméstico tira a vida de D. Carlota, mãe de Cosme e Damiana e tal fato faz se aproximarem Amanda, o irmão desta, Estêvão, e Cosme.

Pela visão do narrador – um narrador onisciente seletivo – ficamos sabendo de uma série de não ditos, agasalhados sob os telhados daquelas duas famílias e um deles é o da própria Inês, mãe de Amanda e Estêvão:
“Inês volta ao presente. Com gestos conformados, tira as fronhas dos travesseiros e solta o lençol de forro para dobrá-lo também. O colchão despido é voo à adolescência: Ela e aquele colega de faculdade que mal conhecia se espremiam na mesma cama de solteiro em busca do êxtase. Depois, a paz, o sono, agradecido. Na manhã seguinte, o se dar conta sem culpa, o arrancar os panos sujos de sangue e pronto, só lavar. Água e sabão servem para isso. Só que manchas aqui não estão na cama. Lá, a juventude, o prazer, a poesia na contestação, no afrontar os intolerantes e preconceituosos. Os sonhos de mudar o mundo! Aqui, a dor, a decepção, a desesperança, por quê? Não teriam os filhos recebido dos pais a rebeldia, a audácia, a mesma paixão pelo risco? E a obsessiva busca da verdade, não terão também herdado?” (página 231)
O que acontecera com os dois filhos muda a história, transforma toda a família, que terá de se desfazer  e nesse desfazimento, deixar entrar novas formas de ver e de sentir, para, muito tempo depois, retornarem os elementos, a recompor a família. Os tempos são outros, tem mudado o conceito de família, que abre espaço para grupos compostos por dois pais e filhos, duas mães e filhos, além do cardápio tradicional, pai e mãe e filhos. Mais que isso, não adianto, sob pena de irreparável crime de spoiler.

Este jogo de claro-escuro, ditos e não ditos – com supremacia na história para os não ditos – prossegue. O que a filha Amanda vira, certa vez, não era bem o que vira, como nos conta a própria Dona Inês:
“Inês volta a se sentar ao lado da filha, cria coragem.
— Acontece que aquela aluna que você viu seu pai beijar no carro não teve culpa de nada.
— Não?
— Eu sabia de tudo. Eram fantasias minhas e de seu pai, jogo combinado. No fim das contas, a garota é que foi usada. Prepotente, pensava que havia seduzido o professor de renome, mas foi exatamente o contrário.
O impacto é grande. Olhos cheios d’água. Amanda leva algum tempo para assimilar a informação.
— Ela soube?
— Não. Seria cruel demais. Ela nos ajudou a viver a nossa fantasia, e nós deixamos que ela vivesse a dela. Ninguém saiu machucado.
— Bem criativo. Parece romance de Henry Miller e Anaïs Nin.” (página  287) 
Disse linhas acima que o narrador é onisciente seletivo. Isto porque, sabendo tudo o que se passa na cabeça e no coração dos personagens envolvidos, ele não nos revela tudo; astutamente, a bem do correr da história, ele seleciona e esconde fatos, como se vê nesta passagem: 
“Acontece que sobre Pedro Paranhos não nos é dado falar nada por enquanto, paciência. Há apenas a torcida para que esteja bem, enquanto insiste em se manter afastado assim. Como se fosse possível apagar o passado, esquecer-se de tudo e de todos. Perda de tempo, trabalho inútil. Tanta inteligência, para quê?” (página 314)
Outros fatos acontecem. Estêvão vai embora para Paris, reata o relacionamento com aquela Vicenza, separa-se dela, relaciona-se com uma francesinha, se separa dela. Volta ao Brasil. Enfim, a família modificada pelos acontecimentos se reorganiza, assim como as duas casas:
“Ao passar para as mãos de Cosme, a casa de cá ganhou vida, se reinventou, rejuvenesceu. Quando se olhou refletida em seu novo dono, era outra. Percebeu que o que a mantinha de pé não era o vigamento de ferro, era estrutura óssea. Nela, tudo respirava, tudo transpirava. O cimento virou pele, o tijolo virou carne. As portas tinham bocas e as janelas tinham olhos. Seu coração batia solto por toda parte, porque finalmente estava pronta para se unir à casa de lá. Cosme levou a proposta a Amanda, a Pedro e a Inês. Depois, conversou com Petra. Surpresa: Todos, algum dia, já haviam imaginado juntar as casas! Portanto, Orlando Salvatori Andretti ainda teve essa alegria. Dedicou-se ao projeto com entusiasmo adolescente e devoção anciã. E o fez de graça, tal seu contentamento. Dezenove de maio de 2015: a equipe da OSA Engenharia e Arquitetura Ltda. chegou disposta – euforia berlinense de 1989 –, e o muro que separava os jardins caiu em questão de horas.” (página 404)
A união das casas, desta forma, reflete a união das famílias. De maneira figurada, a aproximação da queda do muro que separava os jardins e a queda do muro de Berlin funciona, neste caso, como símbolo da superação de obstáculos e dificuldades; podem os relacionamentos serem enfim aceitos, aceitando-se as pessoas como são: as casas já se juntaram.

Se eu tivesse de resumir a característica principal deste trabalho em uma expressão apenas, escolheria romance do não dito. Relacionamentos e fantasias sexuais se misturam, a princípio não ditas, atingem um nível de tensão tal que, enfim, transbordam, têm de se revelar.
Excelente livro, este Os Novos Moradores.