Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

domingo, 23 de junho de 2019

Resenha nº 150 - La Petite Fille de Monsieur Linh


Imagem relacionadaTítulo em português: A Filha do Senhor Linh
Autor: Philippe Claudel
Edição: 1ª Edição
Editora: Éditions Stock
Copyright: 2005
ISBN: 978-2-253-11554-0
Formato: Livro de Bolso
Origem: Literatura Francesa
Bibliografia: Quelques-uns des cent regrets, 1999 ; Le Café de L’Excelsior, 1999 ; Le Bruit de Trousseaux, 2002 ; Les Âmes Grises, 2003 ; La Petite Fille de Monsieur Linh, 2005 ; Le Rapport de Brodeck, 2007 ; L’Enquête, 2010 ; Parafums, 2012 ; L’Arbre de Pays Toraja, 2016 ; Inhumaines, 2017 ; L’arachipel de Chien, 2018.

É um volume pequeno, formato pocket book. Indicado como leitura complementar do curso de francês que faço, o livrinho me conquistou logo de cara. Philippe Claudel, o autor, é também cineasta e dramaturgo, como me informa uma das páginas do livro. A experiência dele como cineasta foi, a meu ver, importante para construir o foco narrativo. A obra me conquistou pelo tom comedidamente melancólico e pela delicadeza com a qual Philippe trata a problemática de uma pessoa que deixa sua terra, seus valores, sua cultura e tem de adotar as de outro país. Um autor tem de fazer suas escolhas ao contar uma história, ao escolher os símbolos que deseja usar e Claudel acertou nos usos dos símbolos – nem tão difíceis assim para o leitor decifrar. Simplesmente, me apaixonei pela obra. Ah, e é claro, como está escrita em francês, idioma que ainda não domino cem por cento, tive alguma dificuldade. Mas, aí, a sensibilidade de leitor contumaz me auxiliou: o que a mente não conseguiu decodificar, o coração o fez.

“C’est un vieil homme debout à l’arrière d’un bateau. Il serre dans ses bras une valise légère et un nouveau-né, plus légère encore que la valise. Le vieil homme se nomme Monsieur Linh. Il est seul à savoir qu’ils s’appelle ainsi car tous ceux qui le savaient sont morts autour de lui.
Debout à la poupe du bateau, il voit s’élogner son pays, celui de ses ancêtres et de ses morts, tandis que dans ses bras l’enfant dort. Le pays s’éloigne, devient infiniment petit, et Monsieur Linh le ragarde disparaître à l’horizon, pendant des heures, malgré le vent qui souffle et le chahute comme une marionnette. » (página 9)

Em uma tradução livre:

“Um homem velho de pé na parte traseira de um barco. Ele aperta contra si uma valise leve e uma recém-nascida, mais leve que a valise. O homem velho se chama Senhor Linh. Somente ele sabe que se chama assim, porque todos os que o sabiam estão mortos ao redor dele.
“De pé na popa do barco, ele vê seu país se distanciar, o mesmo de seus ancestrais e dos seus familiares mortos, enquanto em seus braços a criança dorme. O país se distancia, torna-se infinitamente pequeno, e o Senhor Linh o vê desaparecer no horizonte, durante horas, apesar do vento que sopra e o importuna como uma marionete.”
Disse, nos comentários em itálico, que a experiência do autor como cineasta foi importante para a forma pela qual ele constrói a história. Ao ler estes dois parágrafos iniciais, o narrador se posiciona como uma câmara postada na popa do barco, enfocando o país do Sr. Linh se perdendo na distância. E este narrador “cola sua visão”, suas lentes, ao personagem principal. O tom, como percebemos, é melancólico; afinal, trata-se da provável última visão da terra natal.

Este Sr. Linh vai para um país cujo nome não é dito, mas que o contexto nos indica ter sido a França. Com ele vai um bebê, de nome Sang Diû (Manhã Doce, em francês) e uma valise onde se encontram um punhado da terra natal, dentro de um saquinho, uma foto já quase descolorida pelo sol, roupas de uso imediato. Ele guarda a valise consigo como se ela contivesse tesouros.

Este velho senhor deixa para trás não só o seu país devastado pela guerra, mas também seus familiares mortos, sua vida, sua cultura. Ele terá de se aclimatar a uma nova cultura, um novo modo de vida, e a primeira “estranheza” que ele tem é que não consegue identificar os odores do novo país. Não há nenhum cheiro familiar.
A criança que segue em seu colo, sempre colocada contra seu peito, não reclama de nada, sendo sempre doce, como o significado do seu nome em francês.

Quando pisa o solo do seu destino, o Sr. Linh – ficamos sabendo, mais tarde, que seu prenome é Tao Laï – é designado para ficar em dormitório coletivo, numa espécie de pensão. É a partir deste local que as primeiras experiências, os primeiros contatos mais significativos deste velho homem vão se dar.

“Des jours passent. Monsieur Linh ne quitte pas le dortoir. Il consacre son temps à s’occuper de l’enfant, avec des gestes tout à la fois attentionés et malhabiles. La petite ne se révolte pas. Elle ne pleure jamais, ne crie pas davantage. C’est comme si, à sa façon, en réprimant ses pleurs et ses désirs impérieux de nourrisson, elle voulait aider son grand-père. C’est ce que pense le vieil homme. Les enfants le regardent et souvent se moquent de lui, mais sans oser le faire à haute voix. » (página 17)
Tradução:
« Os dias passam. O Sr. Linh não sai do dormitório. Ele consagra seu tempo a se ocupar da criança, com gestos ao mesmo tempo de atenção e desajeitados. A pequena não se revolta. Ela não chora jamais, não reclama dos percalços. Como se, a seu modo, reprimindo seu choro e seus desejos imperiosos de alimento, ela quisesse ajudar seu avô. É o que pensa o velho homem. As outras crianças o olham e em seguida zombam dele, mas sem ousar fazê-lo em voz alta.”
O nosso Tao Laï conhece enfim, fora dos domínios do dormitório onde passou a residir, um francês (tudo indica que é francês), um veterano de guerra, de nome Monsieur Bark. E respiramos aliviados, pensando que agora sim, o protagonista terá com quem dividir a solidão. O Sr. Bark é muito solícito, mas a amizade entre ele e o exilado tem um pequeno problema: eles não se entendem por meio da fala. Cada qual fala somente sua língua natal e, desta forma, a solidão continua:
“La vieil homme ne comprend rien à ce que dit celui qui vient de s’asseoir. Pour autant, il sent que les paroles ne sont pas hostiles.
« Vous venez souvent ici ? » reprend l’homme. Mais il ne semble pas attendre de réponse. Il aspire la fumée de sa cigarette, comme s’il en goûtait chaque bouffée. Il continue a parler, sans vraiment regarder Monsieur Linh.
« Mois, je viens presque tous les jours. Ce n’est pas que c’est très joli, mais l’endroit me plaît, il me rappelle de souvenirs. » (página 26)
Tradução:
« O velho homem não compreende nada daquilo que lhe diz aquele que acaba de se assentar. No entanto, ele sente que as palavras não são hostis.
“Você vem sempre aqui?” pergunta o homem. Mas ele não parece esperar a resposta. Ele aspira a fumaça do seu cigarro, como se ele degustasse cada baforada. Continua a falar, sem verdadeiramente olhar para o Sr. Linh.
“Eu venho quase todos os dias. Não é que seja um lugar muito bonito, mas eu gosto do lugar, ele me aviva as lembranças.”
Como se vê, temos o encontro bizarro de dois solitários, presos cada qual às suas memórias, sem conseguirem entender o que o outro fala. Tal recurso interposto pelo autor tem o efeito de fazê-los se entenderem da maneira mais profunda possível: com a alma. Já que não é possível integrarem-se pelas palavras, há de sê-lo pelo sentimento, pelo coração, pela intuição. E entre Sr. Bark e este Sr. Linh se estabelece rápida e essencial amizade. A ponto de o Sr. Linh destinar o maço diário dos cigarros a que tem direito no lugar que o acolhe ao amigo recente.

Entretanto, aquele dormitório era provisório, uma espécie de casa de transição e nosso personagem terá de se mudar para seu destino definitivo – uma espécie de casa para aposentados, um asilo para velhos ou algo do gênero. O Sr. Linh perde, momentaneamente, o contato com seu amigo Bark, ao mesmo tempo que, exilado pela segunda vez, sente falta das pessoas que conviveram com ele:
“Monsieur Linh repense au dortoir, aux femmes moqueuses, à leurs maris joueurs, aux enfants bruyants. Il se surprend à les regretter, à regretter ces familles qui parlaient sa langue, même si elles ne s’adressaient pour ainsi dire jamais à lui. Mais au moins, il vivait encore dans la musique des mots de son pays, dans leur belle mélopée aiguë et nasillarde. » (página 129)
Tradução:
« O Sr. Linh pensa no dormitório, nas mulheres zombeteiras, em seus maridos jogadores, nas crianças barulhentas. Ele se surpreende de as lamentar, de lamentar estas famílias que falavam sua língua, mesmo se elas não se dirigissem jamais a ele. Mas, ao menos, ele vivia ainda dentro da música das palavras de seu país, na bela melodia, aguda e nasal.”
La petite fille de Mr. Linh é um ótimo livro e não digo isto com o foco apenas pedagógico, voltado para um curso de francês. É literatura de primeira. A maneira como o autor Phillipe Claudel trabalha as imagens, as sensibilidades dos personagens. A forma como ele constitui um mistério que vai deixando pistas ao longo do texto, mas que se revela por inteiro somente ao final do livro é de extrema competência. Percebe-se que houve um projeto narrativo, não há pontas soltas.

Não sou um pessimista, mas o tom – como disse na introdução em itálico – contidamente melancólico é adequado a um homem que, tendo perdido toda sua família em uma guerra sem sentido (todas as guerras são sem sentido), é obrigado a imigrar para um país estranho. E este parece ser um subtema importante no livro: tanto Mr. Bark quanto Mr. Linh são seres sofridos, tocados pela inconsistência dos conflitos dos quais participaram. Recomendo solenemente a leitura deste pequeno volume a quem leia em francês.

Aliás, um efeito secundário do curso de francês que estou fazendo, abro-me para a rica literatura francesa. Nomes como Guy de Maupassant, Baudelaire, Victor Hugo, Simone de Beauvoir, Sartre, Alexandre Dumas (pai e filho), Balzac, Flaubert, Proust, Le Clézio vão fazendo parte das minhas referências literárias.