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domingo, 28 de janeiro de 2024

Resenha Nº 212 - O Castelo de Gelo, de Tarjei Vesaas

 




Título original: Is-slottet

Autor: Tarjei Vesaas

Tradutor: Leonardo Pinto Silva

Edição: 1ª

Editora: Todavia

Copyright: 1963

ISBN: 978-65-5692-384-0

Gênero literário: romance

Origem: Noruega

 

Tarjei Vesaas é um escritor norueguês, nascido em 20/08/1897 e falecido em 15/03/1970. Filho de Olav Vesaas (fazendeiro) e Signe Øygarden, uma professora, ele veio ao mundo na cidade de Vinje, Telemark e morreu em Oslo.

É ganhador de vários prêmios: Gyldendarl’s Endowment (1943), Melsom Prize (1946), Dobloug Prize (1957), Nordic Coucil’s Literature Prize (1964) e Norwegian Bookseller’s Prize (1967). É considerado o autor norueguês mais importante do século XX.

Autor prolífico, como cita a enciclopédia livre, Wikepedia. Entre suas obras selecionadas – todas relacionadas com seus títulos em inglês ou norueguês – seguem-se: Dei svarte hestane, romance de 1928; The great cycle, romance, 1924; Women call home, romance, 1935; The seed, romance, 1940; The house in the dark, romance, 1945; The winds, contos, 1952; Land of Hidden fires, poesia, 1953; Spring night, romance, 1954; The Birds, romance, 1957; The ice palace, romance, 1963; The bridges, romance, 1966; The boat in the Evening, romance, 1968 e, finalmente, Through Naked branches, poemas selecionados, 2000. Destas, sua única obra traduzida aqui, no Brasil, é The ice palace, O palácio de gelo.

Muito bem, não sabemos muitas coisas sobre este autor norueguês. Além de percebermos que ele foi um autor muito premiado em seu país, sabemos mais duas particularidades de Vesaas. Ele era um apreciador de longas caminhadas. Escreveu em nynorsk (?).

Franqueando o resultado de uma pequena pesquisa na internet: “o nynorsk, que antes de 1929 era chamado de landsmål, é uma das duas línguas escritas oficiais da Noruega e foi adotada pela decisão de igualdade linguística realizada em 12 de maio de 1885. Ela é usada na escrita por volta de 13% da população.” (obtido em https://cursodenoruegues.com.br)

Respiremos.

Vamos a O Castelo de Gelo. Como já é costume meu, acessemos os parágrafos iniciais:

“Um rosto jovem e alvo a luzir na escuridão. Uma menina de onze anos. Siss.

Na verdade era ainda tardinha, mas já estava escuro. A agonia de um outono congelante. Estrelas, mas sem lua no firmamento, e nada de neve para refletir a luz – a escuridão, apesar delas, era total. De ambos os lados, a floresta morta e silente encerrava tudo o que bem poderia estar vivo e congelando naquele exato instante.

Siss remoía muitas coisas à medida que caminhava envolta pela neblina. Pela primeira vez estava indo à casa de Unn, uma garota que mal conhecia, desbravar algo incerto, e por isso mesmo tão excitante.” (página 7)

Temos aí a base deste belo e melancólico romance: as duas garotas de onze anos se iniciam uma amizade. Enquanto Siss é extrovertida, alegre, líder de turma, Unn é seu oposto. Recolhida, taciturna e de poucas palavras, tinha chegado recentemente à localidade para morar com uma tia. Entretanto, Siss se sente atraída pela colega de mesma sala, na escola:

“Siss sentia um formigamento pelo corpo. Uma sensação tão prazerosa que não se dava o trabalho de esconder. Ela fingia que não era nada de mais, mas era uma sensação diferente e até reconfortante. Não era um olhar invasivo, nem enciumado, havia desejo naqueles olhos – ela logo percebeu ao fitá-los também. Havia expectativa. Unn afetava indiferença assim que saíam da sala, evitava se aproximar. Mas uma certeza Siss tinha ao sentir aquele formigamento se espalhando pelo corpo inteiro: Unn está sentada logo ali, de olhos postos em mim.” (página 12)

Tateante, a amizade entre as duas aos poucos se solidifica. Siss vai pela estrada coberta de gelo, à noite, visitar Unn, na casa da tia:

“Era isso e nada mais o que Siss sabia sobre Unn – e agora estava a caminho de encontrá-la, depois de ter passado em casa e avisado os pais.

O frio penetrava suas roupas. O chão rangia sob os pés, e o gelo estalava ao longe.

Então despontou no horizonte a casinha onde Unn e a tia moravam. A luz bruxuleava por entre as folhas das bétulas. O coração acelerou de alegria e ansiedade.” (página 15)

O encontro entre as duas meninas será algo estranho. Não pela tia de Unn, que recebe Siss carinhosamente. Mas porque Unn é reservada demais, tem um comportamento como se o mundo pesasse, apesar de ser tão nova, sobre seus pequenos e frágeis ombros.:

“Elas se aproximaram. Sem desviar o olhar, como se estivessem examinando uma à outra. Medindo-se. Não era algo trivial – por alguma razão inconsciente. Havia um incômodo por estarem se sentindo assim, acanhadas, frente a frente. Seus olhares se encontravam, transmitiam uma espécie de nostalgia afetuosa, e mesmo assim as duas se sentiam profundamente envergonhadas.” (página 18)

Unn também gostava de longas caminhadas solitárias. É assim que ela descobre, um dia, o “castelo de gelo” de que trata o título desta obra. Ele fica perto de uma cachoeira e a temperatura ambiente é tão baixa que as águas, ao caírem, vão formando galerias, estrutura labiríntica de um castelo:

“Somente quando estava no sopé da encosta ela pôde apreciar aquilo tudo comparado à garotinha que era, e, se ainda restava algum peso em sua consciência, ele desapareceu completamente. Não podia haver coisa mais certa a fazer do que ter ido ali, agora tinha certeza. O imenso castelo de gelo era sete vezes maior e mais imponente daquela perspectiva.” (página 49)

Percebe-se tratar-se de uma obra delicada, com referências em que as coisas não se definem por inteiro. Por exemplo, o que poderia pesar tanto na consciência de Unn – uma garotinha de onze anos? Qual era a natureza da amizade entre as duas meninas, tão sensória?

Tarjei Vesaas usa, para sugerir, para compor seu romance as paisagens de gelo e neve da Noruega. Há uma melancolia – acho bonita esta palavra da língua portuguesa – uma tristeza contida, muito mais configurada em Unn do que em Siss.

Talvez seja exagero meu, mas noto algumas influências do simbolismo neste O Castelo de Gelo. As paisagens são um tanto... diáfanas, para usar uma palavra poética. O romance suscita, poderosamente, em minha tela imaginativa, aquele frio tão frio que do solo exala uma névoa, que congela tudo o que toca.

É um romance psicológico. O tempo, o enredo se prendem às sequências do que pensam as duas amigas. De início, pensa-se – talvez – que o castelo de gelo enorme, dominante, seja uma criação mental da pequena Unn. Mas não. Ele é visto por outras pessoas também. Galerias e mais galerias, transparentes, mas as imagens aparecem ali destorcidas, aumentadas, como se as paredes do castelo fossem lentes de aumento.

A obra aborda o fim da infância, o peso enorme representado por este final; o inevitável contato com o nosso eu que amadurece e nos traz o fim da inocência. Sem cometer spoilers, Siss terá de lidar com um fato terrível para ela:

“Siss desmoronou assim que chegou àquela conclusão. O pensamento que se recusava terminantemente a considerar a ideia que nem sequer mencionava para si mesma, mas que a rondava o tempo todo se insinuando – e provavelmente todos em vota já a teriam repetido abertamente muitas vezes – não era mais possível evitar.” (página 124)

Aqui, portanto, tangencia o romance um outro subtema, mais abrangente: a constatação de que, todos nós, adultos que somos, temos de nos vergar às adversidades da vida. Nunca somos fortes o bastante para nos sobrepormos a tudo.

E o próprio castelo de gelo, tão bem estruturado, em suas misteriosas galerias, enorme, cujo brilho do gelo se impõe, vai se derreter quando o tempo mais quente chegar. O gelo se transformará em água, será incorporada à água do rio e se escoará para o mar.

Na quarta capa deste excepcional, sensível e sintético romance há dois depoimentos. Não os considero, de modo algum, exagerados:

“Como é simples este romance. Como é sutil. Como é potente. Como é diferente de qualquer outro. É único. É inesquecível. É extraordinário” (Doris Lessing)

“Me surpreende o fato de este não ser o livro mais famoso do mundo.” (Max porter, autor de Grief is the Thing with Feathers)

Se você, meu caríssimo leitor, gosta de literatura da mais fina concepção, reflexiva, recorrente, não deixe de ler este O Castelo de Gelo.

Não posso encerrar sem fazer outro elogio: como é bela esta capa de autoria de Júlia Custódio. Tem tudo a ver com a construção literária do livro. Tanto assim, que – obra em mãos – quedei-me longo tempo admirando a composição da capa, com a linha de horizonte alta, a maior parte branca como o gelo e somente a fotografia dos fiordes noruegueses no alto. Belíssima.

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