Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Resenha nº 211 - A Cidade de Vapor, de Carlos Ruiz Zafón

 




Título original: La Ciudad de Vapor

Autor: Carlos Ruiz Zafón

Tradutores: Ari Roitman e Paulina Wacht

Editora: Suma

Edição: 1ª – 1ª reimpressão

Copyright: 2020

ISBN: 978-85-5651-131-7

Gênero literário: Contos

Origem: Espanha

 

Carlos Ruiz Zafón nasceu em Barcelona, em 25/12/1964, e faleceu em 19/06/202 em Los Angeles, EUA. Tornou-se uma das maiores revelações literárias dos últimos tempos com A Sombra do Vento, finalista dos prêmios literários Fernando Lara 2001 e Llibreter 2002. Suas obras foram traduzidas para onze idiomas. O autor colaborou nos jornais La Vanguardia e El País.

Seguindo-se ao livro citado acima, veio O Jogo do Anjo (2008), e vendeu mais de um milhão de exemplares só na Espanha. Em 2011, chegou-nos O Prisioneiro do Céu e, fechando a tetralogia, O Labirinto dos Espíritos (2016).

Esta publicação engloba todos os contos produzidos por Zafón, incluindo aí: Rosa de Fogo (2012), Two-Minutes Apocalypse (2015). Funciona, portanto, como uma homenagem póstuma a Carlos Ruiz Zafón.

Publicou, também, uma trilogia juvenil, O Príncipe da Névoa (1993), O Palácio da Meia-Noite (1994) e As Luzes de Setembro (1995). Marina, de 1999, é a última produção de Zafón antes do seu sucesso A Sombra do Vento – a quarta resenha deste blogue, em 2012.

Sei que muita gente torce o nariz quando se fala de livros tidos como sucessos comerciais – bestsellers –, mas não me importo nem um pouquinho com tal posição. Muitas vezes, não estou com disposição para mergulhar num Dostoiévski ou num Thomas Mann e estes exemplares de leitura ligeira cumprem bem sua função.

A Cidade de Vapor reúne onze contos: Blanca e o adeus, Sem nome, Uma senhorita de Barcelona, Rosa de fogo, O príncipe do Parnaso, Lenda de Natal, Alicia, ao amanhecer, Homens cinzentos, A mulher de vapor, Gaudí em Manhattan, Apocalipse em dois minutos.

Creio oportuno reproduzir um trecho da “nota do editor”, que acompanha o livro:

“De Blanca e o adeus”, o conto que inaugura o livro, a “Apocalipse em dois minutos”, que funciona como despedida, as histórias vão se entrelaçando por meio da voz narrativa, da cronologia ou dos detalhes, para nos desenhar um mundo que se ergue pletórico ante os nossos olhos, por mais que seja um mundo de ficção, um universo de vapor.

Também em relação aos gêneros literários, A cidade de vapor nos mostra a habilidade com que Carlos Ruiz Zafón se serve deles para constituir uma literatura própria e inconfundível, na qual identificamos elementos do romance de iniciação, do romance histórico, do gótico, do thriller, do romântico, sem faltar o toque magistral do relato dentro do relato.” (página 8)

De verdade, é um prazer ler Carlos Ruiz Zafón. Por outro motivo não fosse – abstraindo sua evidente qualidade literária e criatividade – pela homenagem que presta à própria literatura, na interessante referência ao Cemitério dos Livros Esquecidos localizado numa gótica Barcelona. Em A cidade de vapor, o escritor espanhol nos brinda, a nós, leitores deliciados de A Sombra do Vento, com incursões sobre o mundo da literatura. Das páginas destes contos reunidos saltam, vivíssimos, Miguel de Cervantes e Antoní Gaudí, o louco sonhador que projetou a desconcertante e bela Igreja da Sagrada Família.

Em Branca e o adeus, o título é quase um spoiler, sinal de que o autor não considerava o desfecho como uma surpresa a ser preservada para o final. Realmente, o interessante é o que acontece no desenrolar da história:

“Blanca era uns dois anos mais velha que eu. Conheci-a num dia de abril, em frente ao portão da minha casa: ela vinha segurando a mão de uma criada que fora buscar livros numa pequena livraria de antiguidades em frente ao auditório em obras. Quis o destino que nesse dia a livraria só abrisse ao meio-dia e que a criada tivesse ido às onze e meia, criando uma lacuna de trinta minutos de espera durante os quais, sem que eu sequer desconfiasse, o meu destino seria selado. Por minha própria conta, eu jamais me atreveria a trocar uma palavra com ela. Sua indumentária, o seu cheiro e seu jeito patrício de menina rica, blindada de sedas e tules, não deixavam a menor dúvida de que aquela criatura não pertencia ao meu mundo, e muito menos eu ao dela.” (página 16)

Sem Nome é um conto de enredo mínimo, mas nem por isso menos impactante. Apresenta um narrador que se esconde em primeira pessoa, para só se revelar na frase que fecha o texto. Em ritmo de recordações e pressupostos, ele nos conta sobre uma garota que anda pelas ruas de Barcelona, numa ambientação gótica:

“A garota olhou a bateria de gárgulas que arrematava as cornijas e supurava colunas de vapor que exalavam um perfume amargo de tinta e papel. Sentindo que a dor inflamava de novo suas vísceras, apressou os passos até a grande entrada principal e bateu a aldrava. Ouviu-se o eco amortecido de um sino atrás de um portão de ferro forjado. A garota olhou para trás e constatou que em poucos instantes o rastro de suas pegadas já estava revestido outra vez pela neve. Um vento gélido e afiado a encurralava contra o portão. Bateu de novo a aldrava com força, duas ou três vezes, mas não teve resposta. A tênue claridade que a envolvia parecia se desvanecer em alguns momentos, com as sombras se estendendo rapidamente aos seus pés. Sabendo que não tinha muito tempo, recuou alguns passos e se afastou do portão para examinar as janelas da fachada principal. Havia uma silhueta recortada em uma das vidraças enfumadas, imóvel como uma aranha no meio de sua teia.” (página 37)

Em Uma senhorita de Barcelona, um narrador nos fala a respeito de certo fotógrafo de gente morta. Cumpre-nos explicar que tal atividade era corriqueira tempos atrás. Eduardo Sentís, fotógrafo das trevas, é um dia chamado a fotografar Margarita Pons, infanta de cinco anos. Era filha de abastado casal e morrera de febres.

Dada a urgência e não tendo com quem deixar Laia, sua própria filha, leva-a à casa abastada e lhe recomenda ficar fora do aposento onde jaz a defunta. Dona Eulália, mãe da morta, estava no quarto e, alucinada de dor, beija a testa da filha. E a cena que se segue é a seguinte:

“— Meu anjo fala comigo – disse [a mãe] a Sentís. – Não está ouvindo?

 Sentís fez que sim e continuou com seus preparativos. Quanto mais cedo saísse dali, melhor. Quando já estava tudo pronto para começar a fazer as primeiras imagens, o fotógrafo pediu à mãe que se retirasse por uns instantes do campo de visão da câmera. Ela beijou a testa do cadáver e se colocou atrás dele.

 Sentís estava tão absorto em seu trabalho que não percebeu que Laia havia entrado no quarto e estava em pé ao seu lado, olhando congelada a menina morta estendida na cama. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, a senhora Pons foi até Laia e se ajoelhou à sua frente. “Olá, meu bem. Você é o meu anjo?”, perguntou. A dona da casa pegou a filha de Sentís nos braços e apertou-a contra o peito”. (página 47)

Rosa de fogo é, para mim, um dos melhores contos desta excelente coletânea. Possui referência à famosa Scherezade das Mil e Uma Noites, como também Raimundo de Sempere – uma autorreferência ao Cemitério dos Livros Esquecidos (A Sombra do Vento).

Um navio chegara a Barcelona, trazendo uma horrenda carga: vários sarcófagos flutuavam entre os escombros da embarcação. Ao leme, o único sobrevivente – meio morto, meio vivo – Edmond de Luna, o construtor de labirintos.

O inquisidor da cidade, homem religioso, mas tocado pelo verme da ambição desmedida, requisitou um caderno que encontraram com Edmond. Ninguém o podia entender – nem mesmo o inquisidor, pois estava escrito em persa. Esta ambição o põe a perder e quase põe a perder a cidade de Barcelona. Sobre aquele caso, pesava insuspeitada maldição:

“Com os olhos envenenados de cobiça, o Inquisidor pegou o frasco escarlate, subiu ao alar para benzê-lo e, agradecendo a Deus e ao inferno por aquela dádiva, ingeriu todo o conteúdo. Passaram-se alguns segundos sem que nada acontecesse. Depois, o Inquisidor começou a rir. Os soldados se entreolharam, desconcertados, perguntando-se se Jorge de León não teria perdido o juízo. Para a maioria deles, foi o último pensamento de suas vidas. Viram o Inquisidor cair de joelhos e uma lufada de vento gelado varrer a catedral, arrastando os bancos de madeira, derrubando imagens e círios acesos.

Depois, ouviram sua pele e seus membros se partirem, e a voz de Jorge de León se perder, entre uivos de agonia, no rugido da besta-fera que emergia de suas carnes, crescendo rapidamente em uma massa ensanguentada de escamas, garras e asas.” (página 73)

Como não será possível reescrever trechos de todos os contos do livro, fiquemos por aqui. O leitor já terá um gostinho do que o espera ao ler este livro. Inventividade, imaginação e uma escrita contagiante – as mesmas que consagraram nosso escritor estão presentes. Referências a Cervantes, a Antoní Gaudí o aguardam.

Prefiro deixar falar, novamente, o editor Émile de Rosiers Castellaine:

A Cidade de vapor é uma ampliação do mundo literário do Cemitério dos Livros Esquecidos, seja pelo desenvolvimento de aspectos desconhecidos de alguns personagens, seja pelo aprofundamento da história da construção da mítica biblioteca, ou porque a temática, os motivos e a atmosfera que envolve esses relatos parecerão familiares aos leitores da saga. Escritores malditos, arquitetos visionários, identidades fraudadas, edifícios fantasmagóricos, uma plasticidade descritiva irresistível, a mestria no diálogo... e principalmente a promessa de que o relato, o conto e o próprio fato de narrar nos levarão a um território novo e fascinante.” (página 8)

Nada a acrescentar.

Nenhum comentário: