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sexta-feira, 29 de março de 2013

Amar, envelhecer e suas reflexões

imageDe um tempo para cá, filmes sobre a temática da velhice e do processo de envelhecer tornaram-se mais comuns de se ver em telas brasileiras. Em sequência, aparecerem Minhas Tardes com Margueritte, E se vivêssemos todos juntos e, recentemente, Amor. Os dois primeiros são bons filmes, conquanto mais leves; já Amor nos impressiona pela objetividade sem concessões do diretor austríaco Michael Haneke.

Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva sãos os atores principais desse drama do envelhecer com dignidade. São um casal já octogenário, com sérios problemas de saúde, tendo que lidar com o pessimismo de cada dia, de quem a cada dia se reconhece mais limitado e mais perto da morte, a única situação definitiva diante dos olhos. E diante do corpo, pois ele também dialoga com a morte.

Uma amiga, em uma conversa informal ao redor de uma mesa de cerveja e pizza, me disse ter ido ver o filme e me dizia ter gostado dele. Mas, ao mesmo tempo, me indagava:

- Por que a gente faz um programa desse, no dia em que fui assistir o filme havia lá fora um sol bonito, o dia estava agradável, por que entrei no cinema pra assistir um filme cujo drama me incomodou, me deixou reflexiva?

- Simplesmente, respondi eu, por ser um tema universal, por estarmos numa fase da vida mais reflexivos, mais maduros e dispostos a fazer escolhas que nem sempre nos serão confortáveis, mas necessárias, absolutamente necessárias. Nem só de sóis e belos dias vivem nossas reflexões, escolhas e senso estético.

Amor é um ótimo filme. Emmanuelle Riva, então, está soberba no papel principal. Há vária cenas em câmara fechada, para aproveitar toda a expressão facial e olhares que ela consegue expressar.

Entretanto, não é um filme bonito, na acepção da palavra. É muito cru, funciona como um jab, um soco no fígado, mostrando toda a realidade cruel do envelhecer. Isso é mais acentuado quando, em ritmo de memória, algumas cenas de tempos mais amenos são interpostas, como a visão da personagem de Emmanuelle mais jovem, tocando piano.

A filha do casal ( interpretada por Isabelle Rupert) não mora com eles , tem sua própria vida e seus próprios fantasmas, mas os visita de vez em quando. Farrapos da história do casal central são lembrados por ela, quando, por exemplo, ela diz ao pai que sua lembrança pode lhe ser constrangendora,  mais quando ela era jovem, os ruídos dos pais fazendo amor lhe davam segurança da existência do mesmo amor e, por conseguinte, segurança para si própria.

A plateia, de uma forma geral, sai ao fim da sessão sem muitos comentários sobre o visto em cena. Seus semblantes estão carregados pela reflexão sobre a vida, sobre as dores do amor, sobre o envelhecer. Reflexões que devem mesmo mexer com nossas olhares e avaliações, muito além da catarse originada pela tragédia.

É um filme para se ter em DVD ou Blu-Ray.

Resenha nº 26 - O Animal Agonizante, de Philip Roth

Tomei contato com a história do personagem David Kepesh por meio do filme de Isabel Coixet, Fatal (em inglês, Elegy). Fiquei com uma boa impressão do filme, embora tenha lido algumas coisas que o depreciavam. Resguardei-me, entretanto; não queria “embarcar” em opiniões diversas, sem ter formado a minha. Aguardei a compra e leitura do livro O Animal Agonizante, de Philip Roth, que deu origem ao filme. Gostei do livro, mantive minha boa impressão do filme. A crítica, mesmo a mais especializada e competente, é sempre uma opinião com a qual podemos ou não concordar. E tenho muito cuidado ao comparar literatura a cinema. Bons livros nem sempre dão bons filmes, ou vice-versa. As linguagens, sendo muito diferentes, têm de ser adaptadas.

Assim, as longas digressões de David Kepesh sobre o sexo não caberiam em um filme. Não por serem sobre sexo, mas por serem digressões longas. No livro, funcionam muito bem, ainda mais temperadas com a ironia philipiana. Podemos recortar da obra literária dois temas, que correm pela história, entrelaçados: a sexualidade como realização plena do homem e a inexorável caminhada para a velhice (leia-se morte). As pulsões freudianas de Eros (criação) e Tanatos (destruição).

O protagonista David Kepesh é um professor universitário, já sessentão e meio aposentado; apresenta um programa cultural na televisão e leciona um curso de literatura por ano. Anteriormente criado por Roth, surgiu em O Seio, 1973, de uma maneira um tanto kafkiana, pois, apareceu como um professor jovem de literatura, transformado num imenso seio feminino; reapareceu quatro anos depois, em O professor de desejo, dentro de um contexto realístico, mais característico de Philip.

O curso dado pelo protagonista sempre termina com uma festa em seu apartamento, invariavelmente com uma aluna bonita em sua cama:

“Eu a conheci há oito anos. Era minha aluna. Não sou mais professor em horário integral, não sou mais professor de literatura no sentido estrito – há anos que só dou o mesmo curso para uma turma grande de alunos do último período, sobre crítica, chamado Crítica Prática. Muitos dos alunos são do sexo feminino. Por dois motivos: porque é um tema com uma combinação atraente de glamour intelectual e glamour jornalístico, e porque elas me conhecem de me ouvirem fazendo resenhas de livros na rádio educativa, ou então de me verem no canal 13 falando sobre cultura. Nos últimos quinze anos, minha atuação como crítico de cultura televisivo fez com que eu me tornasse uma figura razoavelmente conhecida na cidade, e é isso que atrai garotas para o meu curso.” (página 9)

Para ele, elas são mais um objeto de contemplação estética a ser desfrutado, assim como as sonatas de Beethoven. Entretanto, conhece a linda aluna cubana Consuela Castillo e é inexoravelmente arrastado para um tipo de relacionamento que ele julgava eliminado de sua vida.

A cubana Castillo lhe parece irresistível:

“Já se vão oito anos – eu já estava com sessenta  e dois anos, e a garota, que se chama Consuela Castillo, tinha vinte e quatro. Ela não é como as outras da turma. Não é uma pós-adolescente, não é uma dessas garotas desmazeladas, tronchas, que dizem “tipo assim” cada vez que abrem a boca. Ela fala bem, é equilibrada, tem uma postura perfeita – parece saber alguma coisa a respeito da vida adulta, além de saber se sentar, ficar em pé e andar. Assim que você entra na sala, percebe que essa garota sabe mais, ou então quer saber mais. A maneira como ela se veste. Não é exatamente o que se chama de chique, ela com certeza não se veste de modo exagerado, mas, para começar, nunca usa jeans, nem passado nem amassado […] O cabelo é negro, bem negro, lustroso, um pouco grosso. E ela é grande. Um mulherão grande. A blusa de seda está desabotoada até o terceiro botão, de modo que dá para ver que ela tem seios poderosos, lindos, imediatamente você afunda neles.” (páginas 10/11)

Pouco a pouco, como se disse, o relacionamento com Consuela torna-se algo muito profundo, trazendo, inevitavelmente, uma crise para o velho professor.

Roth tem um estilo objetivo, sem rodeios ou floreios e são muito questionadores os trechos nos quais sua criatura, David Kepesh, filosofa sobre a vida, com sua experiência de crítico literário:

“O mais belo dos contos de fada da infância é que tudo acontece na ordem certa. Nossos avós morrem muito antes de nossos pais, e nossos pais morrem muito antes de nós. Os que têm sorte acabam tendo mesmo essa experiência, as pessoas vão envelhecendo e morrendo na ordem certa, de modo que, no enterro, você aplaca sua dor pensando que aquela pessoa teve uma longa vida. Nem por isso a morte se torna uma coisa menos monstruosa, mas é esse o truque que utlizamos para manter intacta a ilusão metronômica, e para afastar de nós a tortura do tempo: “Fulano teve uma vida longa”. (página 122)

No filme, a diretora espanhola Isabel Coixet centra suas lentes no segundo tema, o da caminhada inexorável para a velhice. Talvez essa escolha tenha sido feita por uma questão de repúdio feminino na abordagem de cenas meramente sexuais, pura suposição minha. O filme se realiza menos agônico, mas ainda assim, tristíssimo. Toca-nos a história contada por Ben Kingsley, no papel de David Kepesh e Penelope Cruz, no de Consuela Castillo.

O Animal Agonizante é um texto que revela a mão segura de um grande escritor. Novela em monólogo quase o tempo todo, em mãos menos talentosas poderia resultar em algo chato, monótono. Muito recomendo a leitura dessa obra.

Philip Roth. O Animal Agonizante. Companhia Das Letras. São Paulo, SP: 2201, 5ª reimpressão, tradução de Paulo Henriques Britto. 127 páginas.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Resenha nº 25 - Divã, de Martha Medeiros

Martha Medeiros nos dá esse ótimo Divã, que, aliás, tornou-se filme e peça teatral de grande sucesso. A personagem principal, Mercedes, é protagonizada por Lilia Cabral, em ambos os cenários – teatral e cinematográfico. Um texto leve, “escrito ao sabor da pena”. É claro, essa ideia de um texto leve pressupõe, na verdade, muito trabalho. Já se disse que é uma tarefa estafante conseguir-se este efeito de simplicidade.

Mercedes é uma professora; dar aulas particulares lhe rende bem mais do que o exercício pleno de sua profissão. Nas horas vagas, gosta de pintar. Aos quarenta anos, resolve fazer análise e é exatamente sua exposição à análise de Lopes o que lemos.

Mercedes é uma mulher entre irônica e brincalhona.:

“De repente, eu virei a única mulher da família, com oito anos. Meu mundo passou a ser totalmente masculino, éramos eu, meu pai e meus dois irmãos, e mais tarde namorados, marido e três filhos homens. Eu praticamente não tive referências femininas, eu sempre fui minha própria referência. E, como já lhe disse, sou mezzo mulherzinha, mezzo cabra da peste, o que nunca me fez sentir entre iguais no salão de beleza.” (página 22)

Mercedes leva a vida de maneira divertida, mesmo quando a situação não é nem um pouco divertida:

“Lembro de ter sentido um misto de prazer e insegurança quando cruzei as portas da maturidade. Até hoje, quando meus filhos perguntam alguma coisa pra mim, vejo nas suas expressões que minha resposta será levada demasiadamente a sério, passará a ser adotada como verdade indiscutível, e isso me apavora, me faz sentir meio charlatona, minhas certezas não são assim tão sólidas.” (página 23)

É esse despojamento das declarações da protagonista que torna o texto muito gostoso de ler. Vale a pena transcrever um depoimento de Millôr Fernandes, até por ser de Millôr:

“Brincando, brincando, o que Martha mais faz é poesia de amor. Tem mais ainda – é absolutamente compreensível, sobretudo pra quem compreende.”

A personagem principal é um pouco daquilo que cada mulher traz dentro de si. Preparadas para viver o papel de mãe, esposa, companheira, moça de boa família, católica (praticante ou só de fachada), não viveu o incerto, a insegurança. Na verdade, ela se identifica não apenas com as mulheres, embora seu discurso seja de muita sensibilidade feminina; ela é cada um de nós, seres humanos, criados para assumir certezas e seguranças neste mundo tão caótico, nessa era de incertezas tantas.

O livro vale a pena. Algumas boas horas de um texto oscilante entre o irônico e o poético, vai descarnando as situações controladas e propondo não ver a vida como essa coisa pesada, feita só de responsabilidades, de caminhos e andamentos planejados.

Mercedes, no exercício de se encontrar pela análise, descobre-se um tanto distante de si, mas até esta situação ela encara com bom humor:

“Se ser feliz para sempre é aceitar com resignação católica o pão nosso de cada dia e sentir-se imune a todas as tentações, então é deste paraíso que quero fugir. Não estou disposta a inventar dilemas que não existem, mas quero reencontrar aqueles que existem e que foram abafados por esta minha vida correta.”

Martha Medeiros. Divã. Editora Objetiva, São Paulo, SP.2002. 154 páginas.