Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Resenha nº 190 - Mal-Entendido em Moscou, de Simone de Beauvoir

 



Título original: Malentendu à Moscou

Autora: Simone de Beauvoir

Tradutora: Stella Maria da Silva Beartaux

Editora: Folha de São Paulo

Copyright: 2017

ISBN: 978-85-7949-334-8

Gênero literário: novela

Origem: Literatura francesa

 

Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir nasceu em Paris, em 09/01/1908 e faleceu na capital francesa, em 14/04/1986. Escritora, intelectual, filósofa ligada ao movimento existencialista, ativista política, feminista e teórica social. Simone, porém, não se considerava, propriamente, filósofa.

Filha de um casal proveniente da aristocracia francesa decadente, Simone de Beauvoir estudou matemática no Instituto Católico de Paris; literatura e línguas, ela as cursou na Sorbonne (Universidade de Paris). Nesta última instituição de ensino, conheceu os filósofos Merleau-Ponty, René Maheu e Jean-Paul Sartre, com quem teve um relacionamento aberto por toda a sua vida.

Ela escreveu romances, contos, ensaios, biografias, autobiografia, monografias sobre filosofia. Talvez a sua obra mais conhecida seja O Segundo Sexo, um tratado minucioso a respeito da opressão das mulheres, publicada em 1949. Envolveu-se, também, em um polêmico manifesto, juntamente com seu companheiro, Jean-Paul Sartre e Michel Foucault, que propunha alteração de idade para que a mulher pudesse ter relações sexuais.

Escreveu várias obras: 1943, A convidada (L'Invitée), romance; 1944, Pyrrhus et Cinéas, ensaio; 1945, O sangue dos outros (Le Sang des autres), romance; 1945, Les Bouches inutiles, peça de teatro; 1946, Tous les hommes sont mortels, romance; 1947, Pour une morale de l'ambiguïté, ensaio; 1948, L'Amérique au jour le jour; 1949,  O segundo sexo, ensaio filosófico; 1954, Os mandarins (Les Mandarins), romance; 1955, Privilèges, ensaio; 1957, La Longue Marche, ensaio; 1958, Memórias de uma moça bem-comportada (Mémoires d'une jeune fille rangée), autobiográfico; 1960, A Força da idade (La Force de l'âge), autobiográfico; 1963, A força das coisas (La Force des choses); 1964, Une mort très douce, autobiográfico; 1965, Malentendu à Moscou (Mal-Entendido em Moscou); 1966, Les Belles Images, romance; 1967, A mulher desiludida (La Femme rompue), novela; 1970,  A velhice (La Vieillesse), ensaio; 1972, Tudo dito e feito (Tout compte fait), autobiográfico; 1979, Quand prime le spirituel, romance; 1981, A cerimônia do adeus (La Cérémonie des adieux suivi de Entretiens avec Jean-Paul Sartre: août - septembre 1974), biografia.

Este é o meu primeiro contato com obras de Simone de Beauvoir. E já vou revelando: este Mal-Entendido em Moscou me deixou um travo incômodo nos olhos, na mente. Pequena na extensão, esta novela, a meu ver, foi pensada nos mínimos detalhes.

Antes de tudo, porém, como este blogue se destina a todos os leitores, talvez o termo novela deixe muitos em dúvida. Trata-se de um gênero textual de caracterização meio imprecisa, colocado entre os romances e os contos. Impreciso, porque não há consenso entre os estudiosos sobre o que, afinal de contas, caracterizaria este gênero literário. Não é apenas extensão do texto.

Seja como for, esta obra é classificada como novela. Romance não é, nem conto. Então, fiquemos com a classificação costumeira, mal não faz.

Os eventos se passam na cidade russa de Moscou e o livro se inicia do seguinte modo:

“Ela ergueu os olhos do livro. Que tédio, todas essas arengas banais sobre a não comunicação! Quando se quer comunicar, mal ou bem, consegue-se. Concordo que não seja com todos, mas com duas ou três pessoas, sim. Sentado no assento ao lado, André lia um romance policial da Série noire. Ela apaziguava o mau humor, os arrependimentos e as pequenas preocupações dele; sem dúvida André também tinha segredos, mas, no geral, eles se conheciam muito bem. Ela espiou pela janela: florestas escuras e prados claros a perder de vista. Quantas vezes atravessaram a região juntos, de trem, de avião, de barco, sentados lado a lado, com um livro nas mãos? Muitas vezes ainda deslizariam lado a lado em silêncio sobre o mar, por terra e pelo ar. Esse instante possuía a doçura de uma lembrança e a alegria de uma promessa. Teriam eles trinta ou sessenta anos? Os cabelos de André ficaram brancos prematuramente: antes, isso era charmoso, a neve que realçava o frescor moreno de sua tez. E ainda o era. A pele havia engrossado e enrugado, como couro velho, mas os sorrisos da boca e dos olhos mantinham seu brilho.” (página 9)

Este casal, descrito acima, é formado por dois professores aposentados, em torno de sessenta anos de idade. Ela, Nicole; ele, André. Estão visitando a capital da Rússia, acompanhados de Macha, filha do primeiro casamento de André, residente em Moscou.

O narrador desta obra se expressa em terceira pessoa, ora selecionando o marido, ora dando voz a Nicole. Esta alternância de pontos de vista é muito bem-feita e, por ela, ficamos sabendo o que pensam um e outro. Nicole reflete mais sobre os sentimentos, enquanto André se expressa mais sobre política.

Vejamos uma amostra de tais disposições:

Nicole

“Com uma certa apreensão ela olhava para a pista que se aproximava. Um futuro infinito que poderia ser interrompido de uma hora para outra. Conhecia bem estes saltos que iam de uma segurança beatífica a pontadas de pânico. A terceira Guerra explodiria, André teria câncer de pulmão – dois maços de cigarro por dia eram muito, eram demais – ou o avião se espatifaria no chão.” (página 10)

André

“Ele fora educado no culto a Lenin; sua mãe, com oitenta e três anos, ainda militava no Partido Comunista. André não entrou para o partido; mas, através de ondas de esperança e desespero, sempre acreditou que a União Soviética detinha as chaves do futuro e, com isso, desta época e do seu próprio destino. Entretanto, mesmo nos anos obscuros do stalinismo, nunca teve a impressão de compreendê-la tão mal. A atual estada ali poderia esclarecê-lo?” (página 13)

As dificuldades da velhice e as dificuldades da política são os dois temas que correm juntos. Ao começar a leitura do livro, achei que seriam temas paralelos, isto é, seguiria cada um pelo seu caminho. Enganei-me e isto ficou claro apenas lidas mais algumas páginas. Entrelaçam-se de tal forma estas duas direções que uma impacta a outra. Mais precisamente, os pareceres e discussões de André e Nicole, e mesmo Macha, sobre questões políticas e de sentimentos são válidas a partir do amadurecimento e idade que têm, bem como do lugar em que estão.

É bom lembrar que André e Nicole se movem nos anos 60, no panorama da chamada guerra fria – período em que, terminada a Segunda Guerra Mundial, o bloco capitalista e o bloco comunista procuravam estabelecer sua hegemonia sobre o mundo. Em 1969, explode o conflito sino-soviético; Mao Tse-tung subira ao poder na China e tinha ideias próprias sobre o que seria o comunismo, em confronto direto com as ideações da Rússia.

Em suas reflexões, André se mostra desesperançado:

“A bomba, em 1948, parecia uma ameaça abstrata: hoje ela é uma angustiante realidade. Havia pessoas que não se incomodavam: “uma vez que eu morra, que a terra sobreviva ou não, não é problema meu”. Um amigo de André chegara a dizer: “Já que é assim, eu me arrependo menos pensando que não deixo nada para trás.” Quanto a ele, se mataria assim que soubesse que a terra iria explodir. Ou simplesmente que toda a civilização seria destruída, que a continuidade da história seria interrompida e que os sobreviventes – chineses, sem dúvida – recomeçariam do zero. Talvez fizessem o socialismo triunfar, mas o sistema deles não teria nada a ver com o que seus pais, seus camaradas e mesmo André haviam sonhado. Entretanto, se a União Soviética optasse pela coexistência pacífica, o socialismo não seria um projeto para o futuro. Quanta esperança perdida! Na França, a Frente Popular, a resistência e a emancipação do Terceiro Mundo não fizeram o capitalismo recuar nem um centímetro. A Revolução Chinesa gerou o conflito sino-soviético. Não, o futuro nunca pareceu tão desolador a André. “Minha vida não terá servido para nada”, pensou. Tudo o que havia desejado era que sua vida se inscrevesse de modo útil em uma história que levasse os homens à felicidade. Talvez um dia conseguissem. André tinha acreditado por tempo demais para não continuar acreditando mais um pouco: mas isto ocorria através de desvios que levariam a história a deixar de ser sua.” (página 29)

A seu turno, Nicole tem conclusões tão dramáticas quanto André. Observando o marido dançar com a filha Macha, a mulher se sentiu incomodada não só pela dança, mas porque pai e filha mostravam uma cumplicidade, um entendimento além do que o relacionamento conjugal proporcionava a Nicole:

“Pouco a Pouco ela votara à sua antiga circunspecção: dois velhos casados como dois pombinhos, isso seria ridículo. No entanto, Nicole sentia um leve ciúme daquela cumplicidade entre ele e Macha, e se criticava por não ter conservado em sua relação com André aquela leve ternura. Reprimida pela antiga rigidez, que nunca a vencera por completo, porque nunca tinha aceitado inteiramente sua condição de mulher. (E, no entanto, nenhum homem soubera, mais que André, como ajudá-la a se assumir.)” (páginas 42/43)

O título Mal-Entendido em Moscou, portanto, é ambíguo. O mal-entendido refere-se tanto à interpretação de Nicole, a de que “está sobrando ali, na relação entre André e Macha”, quanto à de André, “a solução socialista proposta pela União Soviética não obtivera qualquer relevância duradoura para o mundo”.

O ritmo, a respiração do texto de Simone de Beauvoir são tensos. As descrições, quando ocorrem, são curtas e precisas; as reflexões, as conclusões dos personagens são colocadas sem volteios.

A escolha do gênero literário novela não foi por acaso. Para uma história de fundo psicológico, analítica, fundiu-se muito coerentemente fundo e forma, sem querer reviver aquela velha dicotomia que animou muito discurso acadêmico.

Mal-Entendido em Moscou, a princípio, fazia parte da coletânea de três contos, A Mulher Desiludida. Simone, entretanto, optou por substituir, naquele livro, o texto abordado nesta resenha por A Idade da Discrição. Pôde, assim, trabalhar com maior coerência, já que a coletânea era de contos e o texto objeto desta resenha é uma novela.

Tenho, em uma prateleira, um box aguardando leitura. Trata-se de escritoras francesas: Simone de Beauvoir novamente, Marguerite Yourcenar e Marguerite Duras. Que time feminino! Mas, esta é uma outra história.

Ao leitor que me dá o prazer da sua leitura, aconselho firmemente este Mal-Entendido em Moscou. Literatura não é só fruição; é também reflexão disfarçada sob uma história. Aconselho-o, por isso mesmo, a leitores que gostem de textos mais reflexivos, analíticos. São apenas 74 páginas, nesta minha edição da coleção Mulheres na Literatura, lançada pela Folha de São Paulo.  

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Resenha nº 189 - Samarcanda, de Amin Maalouf

 



Título original: Samarcande

Autor: Amin Maalouf

Tradutora: Marília Scalzo

Editora: Tabla/TAG

Copyright: 1988

ISBN: 978-65-86824-22-3

Gênero literário: romance histórico

Origem: Uzbequistão

 

Amin Maalouf é um escritor franco-libanês, nascido em Beirute, em 25/02/1949. Seu pai era um libanês católico da região de Baskinta e sua mãe, Odette Ghossein, era egípcia de nascimento. Católica vinculada à igreja maronita, enviou o filho para estudar num colégio jesuíta.

Desde 1976, Amin reside na França, sendo, inclusive, membro da Academia Francesa de Letras. Maalouf exerceu o cargo de diretor do jornal de Beirute, An-Nahar, até o início da Guerra Civil Libanesa, quando se muda para Paris.

Suas obras compreendem: romances – Leão, O Africano (1986), Samarcanda (1988), Os Jardins de Luz (1991), O Século Primeiro Depois de Beatriz (1992), O Rochedo de Tânios (1993), Escalas do Levante (1996), O Périplo de Baldassare (2000), Origens (2004). Ensaios – As Identidades Assassinas (1998), As Cruzadas Vistas Pelos Árabes (1983), Um Mundo Sem Regras (2009) e o mais recente, já em catálogo no Brasil, O Naufrágio das Civilizações.

A primeira coisa que fica da leitura deste Samarcanda é que é um romance excepcional. Complexo em sua condução, aborda a Era Medieval e a Moderna da Ásia Central – mais explicitamente, a Pérsia, que depois viria a ser o Irã da atualidade. Para que o leitor comece a entender esta complexidade, aquele sempre foi um território sob várias mãos estrangeiras. Prova disto é o trecho que pincei, lá da página 269, iniciando por ele esta resenha de maneira diferente:

“— Quando cheguei a este país, não conseguia compreender como homens adultos e barbados choravam e se afligiam por um assassinato ocorrido há 1200 anos. Agora entendi. Se os persas vivem no passado, é porque o passado é sua pátria, porque o presente é para eles uma terra estrangeira em que nada lhes pertence. Tudo que para nós é símbolo de vida moderna, de expansão libertária do homem, para eles é símbolo de dominação estrangeira: as estradas são a Rússia; o trem, o telégrafo, o banco, a Inglaterra; o correio é a Áustria-Hungria...”

A Pérsia, no meu imaginário, construído em parte na infância, em parte na adolescência, é aquela dos califas misteriosos, dos tapetes voadores, dos gênios da lâmpada. E, em meio a todos estes recortes de lembranças, exalta-se a figura genial de Xerazade, a incrível protagonista de As Mil e Uma Noites.

A Pérsia é muito mais do que isto. Meio misteriosa, sim; mas é preciso, para começo de conversa, entender que império persa não é a mesma coisa que a Pérsia. O império estendeu seus domínios por terras vastas. Tanto que, Samarcanda, que já fora englobada pelo império, se ergue hoje nos domínios do Uzbequistão. Notabilizou-se por ser um centro propagador de conhecimentos científicos, mas ringue de intolerâncias diversas, na época relatada no livro:

“Por vezes, em Samarcanda, ao fim de um dia lento e tristonho, os cidadãos desocupados vêm rondar o beco das duas tavernas, perto do mercado das pimentas, não para beber o vinho almiscarado de Sogdiana, mas para espiar o vaivém ou para brigar com algum bêbado. O homem, então, é arrastado pelo chão, coberto de insultos, condenado a um inferno cujo fogo o lembrará até o fim dos tempos do brilho avermelhado do vinho tentador.” (página 17)

Este homem que “é arrastado pelo chão, coberto de insultos, condenado a um inferno” é um seguidor de Abu Ali Ibn-Sina, o famoso Avicena – nome latinizado de um dos maiores polímatas da humanidade. Polímatas são pessoas que dominam várias áreas do conhecimento humano. Esta figura também vai aparecer em outra obra resenhada neste blogue, O Físico, de Noah Gordon. A maior referência deste tipo, para nós, do ocidente, é Leonardo da Vinci: inventor, célebre pintor da Mona Lisa, anatomista, poeta e músico, matemático e engenheiro. Ufa! Os polímatas são assim, seres de outra galáxia...

A figura central de Samarcanda é, entretanto, outro polímata, conhecido como Omar Khayyam (lê-se Raiám), matemático, astrônomo, poeta – simplesmente, o autor da famosa obra Rubaiyat (o nome se refere a quadras ou quartetos, de que é composta esta coletânea). Embora tenha sido objeto de criação de Khayyam, tais poemas eram comumente desprezados. Omar elevou tal forma poética a categorias mais altas. Omar Khayyam foi importantíssimo para o império persa, pois, na qualidade de sábio, foi conselheiro de autoridades.

Estruturalmente, é o Manuscrito de Samarcanda o fio condutor de toda a história contida neste livro. O Manuscrito é o outro nome pelo qual se conhece o Rubaiyat, escrito pelo polímata, em parte, naquela cidade.

No entrecruzamento de várias facções religiosas e ideológicas, talvez seja de proveito para o leitor entender algumas. Carmatas são uma categoria que teve como objetivo construir uma sociedade baseada na razão e na igualdade. Imamianos (os que predicam a fé) são mais tradicionais. O termo remete aos imãs – pessoas encarregadas de dirigir, orientar a oração coletiva em uma mesquita e comunidade muçulmana. Rumes é um vocábulo originado de “Roma”. Após a tomada de Constantinopla (mais tarde, rebatizada Instambul), o termo foi adotado por turcos e árabes para designar os gregos do Império Bizantino (Constantinopla foi considerada a Roma do Oriente).

Neste caldo de cultura já por demais complicado, ainda mais as coisas ficaram difíceis. Os mongóis, por exemplo, dominaram a Pérsia sob o comando do Nasr Khan. Khan é um título honorífico entre os mongóis. Dois Khans famosos foram Kublai e Gêngis. Com toda a sua sabedoria, Omar Khayyam se move pisando em ovos. Ele não é uma unanimidade, detestado por facções resistentes ao ocidente e a seus valores – incluindo a filosofia.

Para se ter uma ideia, Omar não tem uma visão propriamente muçulmana de mundo; ele admite a ideia de um Deus único, mas acredita também que a natureza, separada e autônoma em relação à divindade central, condiciona muitas coisas.

Nem só de história, de invasões e domínios, batalhas sangrentas vive o enredo de Samarcanda:

“Só Khayyam não riu. De olhos fixos em Djahane, procurava o sentimento que experimenta em relação a ela; sua poesia digna, sua postura tão corajosa, no entanto ali está ela, entupida de metal amarelado, entregue a essa humilhante recompensa. Antes de abaixar o véu, levantou-o um pouco mais, revelando um olhar que Omar recebe, aspira, gostaria de reter. Um instante imperceptível para a multidão, uma eternidade para o amante. O tempo tem duas faces, diz Khayyam para si mesmo, duas dimensões, o comprimento segue o ritmo do Sol; a largura, o das paixões.” (página 44)

O Khan, quando aprecia uma declamação poética, recompensa o autor ou autora enchendo-lhe a boca com moedas de ouro, tantas quantas possa abocanhar. Djahane – personagem criada por Amin Maalouf – se tornará o amor da vida de Omar. Entretanto, não será uma relação fácil ou tranquila.

O livro tem 4 divisões: Livro Um, “Poetas e amantes”; Livro Dois, “O Paraíso dos Assassinos”; Livro Três, “O fim do milênio” e, por último, Livro Quatro, “Um poeta no mar”. Em termos de enredo, entretanto, o livro pode ser compreendido entre uma parte no passado histórico da Pérsia, com seus califas, imãs e uma diversidade imensa de ideologias e a Pérsia mais perto dos nossos dias, que faz um esforço enorme para se modernizar.

No passado, hordas de invasores mongóis, seljúcidas (turcos) e, nos dias mais atuais, palco de conflitos como a Guerra do Golfo Pérsico, já sob a influência dos Ayatolás e rebatizado para Irã. O termo deriva do persa Aryānā, cujo significado é “terra dos arianos”.

Outra figura importante – são muitos os personagens para um espaço tão pequeno, destinado a uma resenha – é Hussan Sabbah – personagem em contato com Omar Khayyam em outra cidade importante, Isfahan, uma espécie de fanático com aspirações terroristas. Ele tenta convencer os poderosos contra a ocidentalização da Pérsia; não obtendo resultados desejados, toma para si uma fortaleza nas montanhas, de nome Alamut, cria um seita de camicases assassinos e distribui o terror ao redor de si.

Sim, se você gosta de jogos digitais, é fã de Assassin’s Creed, vai reconhecer as referências. Estes camicases matadores são a Ordem dos Assassinos. Aliás, o termo inglês “creed” quer dizer crença, em português.

A história de Samarcanda contém fugas espetaculares, traições e manobras políticas. Existe uma tentativa de “por ordem na casa”, através de um americano atuante na área das finanças. A Pérsia e depois, o Irã, não se acerta neste quesito, sendo constantemente explorado em sua fragilidade por outras nações. Mas, por não compreender o modo de ser persa/iraniano, a tentativa fracassa.

Uma das coisas de que mais gostei neste excelente romance é a preservação que Amin Maalouf faz do costume oriental de elaborar parábolas e fábulas para explicar muitas ideias. Transcrevo uma delas, que dão encantamento ao romance:

“É o herói semilendário de todas as anedotas e de todas as parábolas da Pérsia, da Transoxiana e da Ásia Menor. Chirine contou:

— Dizem que um rei meio louco condenou Nasruddin à morte por ter roubado um asno. No momento em que o conduziam ao suplício, Nasruddin gritou: “Esse animal é, na verdade, meu irmão, um mágico deu-lhe essa aparência, mas se for confiado a mim por um ano farei com que reaprenda a falar como você e eu”. Intrigado, o monarca mandou que o acusado repetisse sua promessa e depois decretou: “Muito bem! Mas se em um ano, dia após dia, o asno não falar, você será executado”. Quando saiu, Nasruddin foi interpelado por sua mulher: “Como pôde prometer tal coisa? Você sabe muito bem que esse asno não vai falar”. Nasruddin respondeu: “Claro que eu sei, mas daqui a um ano o rei pode morrer, o asno pode morrer ou eu posso morrer”.” (página 339)

Neste trecho, impossível eu não fazer esta ligação, a princesa Chirine – amante do narrador desta obra – assume a função parecida com a de Xerazade, das Mil e Uma Noites: não só a de tecelã de parábolas, mas repositório de cultura.

Ao ler as páginas de Samarcanda, contendo tantas invasões, espoliações de países modernos como a Rússia, interferências americanas no Irã, podemos começar a entender por quê, afinal, aquela parte do mundo foi e é um barril de pólvora. E, um elemento perigoso a mais, há petróleo no local. Há também ódio demais ao ocidente, construído parte no passado de instabilidade social, parte no presente, com as ingerências políticas das nações modernas.

Amin Maalouf é conhecido por construir pontes entre o oriente e o ocidente. Em depoimento à revista que sempre acompanha as edições da TAG Livros, ele nos diz:

“Vivemos tempos muito estranhos. Por um lado, um avanço científico e tecnológico sem precedentes, que considero um privilégio. Não estou inclinado a dizer que “as coisas era melhores nos velhos tempos”. No entanto, esse progresso não foi acompanhado por progresso semelhante nas mentalidades. Na medida em que nos tornamos incapazes de administrar com serenidade as relações entre nações e entre comunidades, incapazes de lidar adequadamente com os efeitos secundários de nosso progresso tecnológico, incapazes de ter um senso de prioridade que pudesse ao menos assegurar a sobrevivência do ser humano. Precisamos construir um futuro diferente daquele que está à nossa frente.”

A última parte do livro traz as ações para um passado recente, mais precisamente, o ano de 1912. A bordo do famoso Titanic, o navio mais seguro e luxuoso de sua época, vão a princesa Chirine e o narrador. Uma viagem merecida, após tantas peripécias. Com eles, seguro no cofre da embarcação, segue o Manuscrito de Samarcanda, com os quartetos antigos e preciosos, de Omar Khayyam. Tudo está perfeito.

Mas, dizem, a mulher é portadora de um sexto-sentido agudíssimo. Mais, não conto.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Resenha nº 188 - Véspera, de Carla Madeira

 



Título: Véspera

Autora: Carla Madeira

Editora: Record

Edição: 1ª

Copyright: 2021

ISBN: 978-65-5587-298-9

Origem: literatura brasileira

Gênero literário: romance

 

Carla Madeira é mineira de Belo Horizonte, nascida em 1964. Formada em jornalismo e publicidade, esta escritora nos deu, até agora, três livros: Tudo é Rio (2014), A Natureza da Mordida (2018) e este, agora, Véspera (2021). Carla foi professora de redação publicitária na UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais. É sócia e diretora de criação da agência de comunicação Lápis Raro.

No ano de publicação, o primeiro livro da escritora mineira vendeu muito bem, mesmo sendo publicado por uma pequena editora. Ficou apenas atrás do campeão de vendas, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior. E, este ano, Tudo é Rio teve nova edição, desta vez pela Record.

Tão logo o vi na livraria, não tive dúvidas em comprá-lo. Carla Madeira já havia firmado seu nome em meu gosto literário, constituído pelas duas leituras anteriores (ambas resenhadas neste blogue). Quando gostamos muito de um livro de algum autor, seu nome se transforma em uma referência de leitura para nós.

Véspera é um autêntico Carla Madeira. Está ali seu estilo, ao mesmo tempo, poético e realista. Carla consegue, sem negacear o aproveitamento de palavras e expressões de uso popular, manter o bom nível de seu texto exatamente pelo tratamento poético dado às situações expostas no livro, e consequentemente, à linguagem.

Como costumeiramente gostamos de fazer, transcrevemos os dois primeiros parágrafos desta história:

“Aos primeiros raios de consciência, antes de abrir os olhos, Vedina Maria dos Santos, deitada em sua cama, como um feto que se recusa a nascer, deslizou o braço no espaço vazio ao lado do seu corpo e passou a mão no lençol impecável e frio. Mais uma vez, Abel não dormira com ela. Só então franziu a testa e se levantou como se dos talhos profundos entre as sobrancelhas encontrasse forças para mais um dia.

Caminhou até o banheiro, sentou-se no vaso, os pés dois palmos separados, os cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça pendida para a frente. Esvaziou a mente enquanto ouvia, do início ao fim, o som de seu mijo bater na água parada. Única meditação do dia. Dali em diante, seria invadida por intermináveis diálogos mentais. Brutos, ressentidos. Polifônicos. Estava em guerra. Queria outra vida.” (página 13)

Eis que se anuncia, de cara, o drama vivido por Abel e Vedina. Ela queria outra vida, que não aquela; Abel, seu marido, não dormira com ela. Esta ausência a incomoda, pois ela “franziu a testa e se levantou como se dos talhos profundos entre as sobrancelhas encontrasse forças para mais um dia”.

O livro tem uma interessante estrutura, na qual a ordem de numeração dos capítulos segue da seguinte forma: 1, 18, 2, 17, 3, 16, 4, 15, 5, 14, 6, 13, 7, 12, 8, 11, 9, 10, 9, 11, 8, 12, 7, 13, 6, 14, 5, 15, 4, 16, 3, 17 e 2, 18 e 1. Esta organização nos indica que a narrativa possui duas linhas temporais: uma, no passado mais distante, com o enredo seguindo os fatos ocorridos com Antunes e Custódia (pais dos gêmeos) e outra linha, no passado recente, envolvendo o que acontece com os dois irmãos. Num ponto, no final do romance, as duas linhas temporais se conectam, formando um contínuo.

Indissociável da história bíblica de Caim e Abel, a narrativa criada por Carla muda aqui alguns elementos daquele relato. Primeiramente, os dois irmãos nascem juntos, são gêmeos univitelinos. Em segundo lugar, ninguém mata o outro.

Na história bíblica de Caim e Abel, constante do capítulo 4 do Gênesis, é dito que Caim, cultivador de terra, é o filho primogênito do casal Adão e Eva. O outro filho do casal é Abel, pastor de ovelhas. Os dois adoravam a Deus, dando em oferenda parte de suas produções. Acontece que o Senhor sempre gostava mais do que lhe ofertava Abel. Caim, então, enciumado, mata Abel.

Caim se arrepende do assassinato e Deus se apieda dele, colocando-lhe um sinal para que ninguém o matasse.

Em Véspera, Caim é o filho extrovertido, aluno brilhante – é participante de um grupo de bons alunos em matemática, organizado pelo professor Bruno Jardim –, é independente. Já Abel é o contrário: introvertido, ensimesmado, aluno fraco, dependente do irmão.

Na linha temporal mais recente, a narrativa parte de um fato da vida real, que impactou muito a autora do livro. Uma mãe abandonou o filho de dois anos e meio na rua. Foi notícia no país inteiro. Transposto para a ficção, Vedina, esposa de Abel, num surto, abandona o filho Augusto na rua, de cinco anos e meio. Arrepende-se, volta para pegá-lo, mas é tarde: alguém o levou.

Na linha temporal mais distante, o casal Antunes e Custódia forma uma família disfuncional. A mulher não ama o marido e apenas se submete ao sexo com ele. Nascem, então, os gêmeos. Na hora de registrá-los, o marido executa uma vingança:

“— Por que você fez isso, Antunes? Os meninos iam se chamar Pedro e Paulo. Nós combinamos que eles iam se chamar Pedro e Paulo...

— Mudei de ideia.

— Você sabe quem foram Caim e Abel, Antunes?

— Dois irmãos.

— Um matou o outro, Antunes.

— Tenho certeza de que algum Pedro já matou algum Paulo, ou vice-versa, e como somos todos irmãos... Bobagem.

— É diferente de Caim e Abel...

— Você é supersticiosa, Custódia!

— Não, Antunes, eu sou religiosa. E você não suporta minha fé.

— Não suporto a fé que você quer que eu tenha.” (página 28)

Além da referência aos irmãos, no Gênesis, há também outra. Um dia, no quintal, os irmãos tentam construir uma torre com o que acham por ali, na intenção firme de chegar ao céu. Esta é uma alusão direta à construção da Torre de Babel:

“Mas naquela tarde, a ideia de fazer uma torre que ultrapassasse o abacateiro e os levasse às alturas, driblando o interdito do pai, teve um efeito terapêutico. Ao ouvir a voz alegre de Antunes chamando por eles na varanda, Abelzinho esqueceu-se da mágoa e gritou:

— Pai, você tem alguma coisa pra pôr na nossa pilha?

— Tenho alguma coisa bem melhor aqui comigo, uma surpresa – respondeu Antunes.” (página 42)

Constitui-se um triângulo amoroso entre uma das meninas participantes do grupo de matemática do professor Bruno Jardim, Veneza, e os irmãos. Venerada incialmente por Abel, Veneza se apaixona por Caim. Conflitos acontecem entre esta menina, de ideias mais arejadas e Custódia, muito apegada ao fundamentalismo religioso.

Vedina, que aparece logo nos primeiros parágrafos deste livro, é amiga de Veneza, igualmente participante do grupo de matemática. Ela se casa com Abel, mas como ele gosta mesmo é de Veneza, temos aqui outra bomba-relógio.

Sobre os gêmeos, a narradora – que se revela no final do livro – nos dá as seguintes informações:

“Aqueles anos de escola foram a prova mais cabal de que o belo não é feito só de beleza. Caim e Abel nasceram igualmente comuns, com proporções nada áureas. O nariz agudo, o rosto fino e os olhos simples demais. Eram estranhamente assimétricos. Não havia uma pista imediata que diferenciasse um do outro. Seguiram por muitos anos o regime de semelhança máxima, imposto pela mãe: no corte de cabelo, nas roupas, nos apetrechos. Mas, se eram idênticos por fora, a um milímetro abaixo da pele as diferenças esperneavam. Abel foi sendo Abel, Caim, sendo bonito.” (página 55)

Disse que o estilo de Carla Madeira é uma mistura de poesia e realidade, ou, dizendo melhor, um tratamento poético da realidade, como no trecho que se segue:

“Com os primeiros passos, medo das quinas. Com as brisas, medo da febre. Com o sol, medo da desidratação. Com a comida, medo dos vômitos. Com o amor, medo da perda. Com a liberdade, medo das escolhas. Medo era o que não faltava a Custódia, e ela bem sabia que o pavor repentino é uma promessa de Deus aos desobedientes. Deus mandava, mas ela não perdoava Antunes. Ah, isso ela não podia. Não sabia. Não queria.” (página 34)

Um outro exemplo:

“Mas é bom que se diga que há em nós algo que não aceita se conformar. E esperneia, desobedece, teima. Algo que não decanta nem evapora. Neles, em Caim e Abel, era a ausência de um no outro. O afeto espraiado, gotas borrifadas que parecem se desfazer no ar, mas que nas mais diferentes horas, ao comando sutil de um cheiro, um som, uma memória, dão as caras com intensidade. A saudade orbitava o peito dos dois, triste, no que a tristeza tem de ser escassez e incompletude. Mesmo em meio aos acontecimentos extraordinários, como o cálculo diferencial ou a primeira paixão, mesmo enredados por Imensa [assim apelidaram o professor de física], Parede, Veneza de Jardim, restava falta que um fazia ao outro. A memória de um paraíso que tinham desfrutado juntos. longos meses abraçados no ventre de Custódia, sem lutar como fizeram Esaú e Jacó. Tinham, ao contrário, brincado muito quando meninos, época em que brincar e amar são a mesma coisa. Podiam se distanciar, mas nunca tirar deles o que foram. Não era apenas deles que sentiam saudade, era a saudade que os fazia sentir.” (página 111)

Este Parede, que aparece na citação acima, é Paulo Parede, um amigo de Caim e Abel e entusiasta do Parkour – um esporte que consiste em vencer obstáculos (incluindo subir em lugares tidos como inacessíveis) usando apenas o impulso do corpo.

Véspera: em primeira impressão, gostei mais deste do que de A Natureza da Mordida. Quanto a Tudo é Rio, é um páreo duro. Entretanto, não sinto necessidade de determinar de qual livro de um autor gosto mais. Resta o prazer de um bom livro.