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sábado, 31 de outubro de 2020

Resenha nº 167 - Sem Trama e Sem Final, de Anton Tchékhov


Título do original (italiano): Senza trama e senza finale

Autor: Anton Pávlovitch Tchékhov

Tradutor: Homero Freitas de Andrade

Editora: Martins Fontes

Edição: 2ª

Copyright: 2002

ISBN: 978-85-8063-371-9

Seleção e prefácio: Piero Brunello

Origem: Rússia

Gênero textual: carta



1.      Preliminares

Há algum tempo venho namorando este pequeno volume – ele tem 112 páginas – pois, vez ou outra, em sítios de orientação para escrita de textos criativos, sua leitura é aconselhada. Bom, a autoria é de ninguém menos do que o mestre dos contos, Anton Tchékhov. São 99 conselhos, orientações para outros escritores, por meio de cartas. Tchékhov foi um grande missivista. Foi feita uma seleção de passagens, em que tais orientações apareceram. Simplesmente imperdível, mesmo para quem não deseja escrever. As observações do mestre são sempre bem-vindas.

2.      Breve biografia

Anton Pávlovitch Tchékhov nasceu em 17/01/1860, em Taganrog, no Império Russo. Foi médico, dramaturgo e contista. Autor de quatro clássicos da dramaturgia mundial, que são: A Gaivota, Tio Vânia, As Três Irmãs e O Jardim das Cerejeiras. A representação de tais peças oferecem dificuldades aos atores, nem sempre aceitas de bom grado. Ao invés da convencionalidade do texto dramático, Tchékhov os dotou de “vida submersa no texto”.

Conforme consta, o grande Liev Tolstoi execrava seu trabalho dramatúrgico: “sabe, não consigo tolerar Shakespeare, mas suas peças são ainda piores”, teria dito ele. Não obstante, Tolstoi admirava o trabalho de Anton com os contos.

Nosso autor começou a escrever simplesmente por imposição financeira. Mas, pouco a pouco, interessou-se pela literatura e transformou-se numa referência importante do gênero conto. Até então, os contos estavam vinculados a uma mensagem moral.

Defendendo a ideia de que cabia ao autor fazer perguntas e não fornecer respostas, ele foi um inovador. Utilizou largamente a técnica narrativa do fluxo de consciência, mais tarde utilizada também por nomes de peso como James Joyce e outros modernistas (técnica também muito utilizada em Mrs. Dalloway, de Virginia Wolf).

Anton Tchékhov morreu em 15/07/1904, em Badenweiller, Império Alemão.

3.      O Livro

Como já se disse, este Sem Trama e Sem Final não é um livro escrito pelo autor russo. É um compilado de trechos de cartas, nos quais ele tece comentários a respeito do trabalho de outros autores, orientações a escritores, num total de 99 passagens selecionadas e organizadas por títulos.

O libreto se divide em um prefácio de Piero Brunello (muito bom, aconselho a leitura dele), “Questões Gerais”, que se subdivide em Por que escrever, Para quem escrever, O que e como escrever e Quando e quanto escrever. A outra divisão recebe o nome de “Questões Particulares”, subdividida em Veracidade, Descrições, Personagens, Sentimentos, O que evitar, A sociedade literária e Últimas coisas.

Esta é uma resenha difícil de se fazer. Terei, para isto, de realizar uma seleção da seleção, de acordo com meu particular senso. Lá na página 37, por exemplo, chamou-me a atenção um trecho de carta a Aleksandr Tchékhov, datada de 20/02/1883:

“Basta apenas ser mais honesto: livrar-se de si mesmo onde quer que seja, não se colocar nos protagonistas do seu romance, renunciar a si próprio nem que seja por meia hora. Tens um conto em que, durante todo o almoço, um jovem casal se beija, desmancha-se em lamúrias, chove no molhado... Nem uma palavra sensata, só blandícia! Não escreveste para o leitor... Escreveste porque esse lero-lero te dá prazer. Ora, descrevesses o almoço, como comiam, o que comiam, como era a cozinheira, quão vulgar era o teu protagonista, satisfeito com sua felicidade pachorrenta, quão vulgar era tua heroína, ridícula em seu amor por esse pilantra bem cevado, empanturrado, de guardanapo no pescoço... Todos gostam de ver pessoas bem nutridas, satisfeitas – isso é verdade; mas para descrevê-las não basta dizer o que elas conversavam e quantas vezes se beijaram... É preciso algo mais: renunciar à impressão pessoal que a felicidade melosa causa nas pessoas não exacerbadas... A subjetividade é uma coisa terrível. Já é ruim só pelo fato de desmascarar o pobre autor da cabeça aos pés.”

Anton Tchékhov era conhecido por não ter uma definição política, coisa que imprime em seus trabalhos, conforme seu depoimento, em carta a Dmítri Grigoróvitch (09/10/1888):

“Ainda não tenho do mundo uma concepção política, religiosa e filosófica: mudo-a todo mês, e por isso devo limitar-me somente à descrição de como os meus protagonistas amam, casam-se, procriam, morrem e de como falam.” (página 63)

Amigo de outro grande escritor russo contemporâneo seu, Máxim Gorki (autor do romance A Mãe), Anton lhe dá sua opinião a respeito de um dos trabalhos do romancista:

“Você pergunta qual a minha opinião sobre seus contos. Qual a opinião? Talento indiscutível e, ainda por cima, autêntico, um grande talento. No conto “Na Estepe”, por exemplo, ele se manifestou com uma força extraordinária, e cheguei a sentir inveja por não ter sido eu a escrevê-lo. Você é um artista, um homem inteligente. Sente à perfeição. É um plástico, ou seja, ao representar um objeto, você o vê e o apalpa com as mãos. Isso é arte autêntica.” (páginas 65/66)

Os contos tchekhovianos carecem de um final impactante, como o queria Edgar Allan Poe – outro importante teórico deste gênero literário tão difícil. Prevalece neles a psicologia dos personagens, como evidenciado pelo conselho dado a Aleksandr Tchékhov (10/05/1886):

“Na esfera da psique também são os detalhes que contam. Deus nos livre dos lugares-comuns! O melhor de tudo é evitar descrever o estado de espírito das personagens; deve-se fazer com que ele seja apreendido a partir de suas ações...” (página 68)

Sob o título Chorar sem que o leitor perceba”, nos vem um conselho absolutamente primordial para um conto – gênero curto por excelência – em que tudo deve ser conciso e servir a um objetivo:

“Sim, escrevi-lhe certa vez que se deve ficar indiferente ao escrever contos que despertam a compaixão. E você não me entendeu. Pode-se chorar ou gemer em cima de um conto, pode-se sofrer junto com as próprias personagens, mas, creio eu, deve-se fazer isso de um jeito que o leitor não perceba. Quanto maior a objetividade, mais forte será a impressão. É isso o que estava querendo dizer.” (página 79)

Claro está, leitor, que adorei o livro todo. Mas, sob o título “O escritor é um simples mortal” está uma das passagens que aplaudo de pé; a transcrição é um pouco longa, mas você me fará o favor de me perdoar:

“Você me escreve que os escritores são seres eleitos. Não vou discutir. Chtcheglov chama-me o Potiómkin da literatura, por isso mesmo não me cabe falar do caminho espinhoso, das decepções, e assim por diante. Não tenho ideia se alguma vez sofri mais do sofrem os sapateiros, os matemáticos ou os maquinistas dos trens; não tenho ideia de quem profetiza através dos meus lábios, se Deus ou qualquer outro de menor valor. Eu me permitirei tão somente constatar uma pequena contrariedade que sinto, a qual, por sua experiência, você também deve conhecer. Eis do que se trata. Eu e você amamos as pessoas comuns, mas somos amados por verem em nós pessoas fora do comum. A mim, por exemplo, vivem me convidando e, aonde quer que eu vá, oferecem-me comida e bebida, como a um general num casório; minha irmã se queixa de que a convidam para todo o canto por ser irmã de um escritor. Ninguém deseja amar em nós pessoas comuns. Em decorrência disso, se ama nhã aparecermos diante dos olhos de nossos bons amigos como simples mortais, deixarão de nos amar e passarão a sentir pena de nós. E isso é péssimo. É péssimo também que amem em nós o que nós mesmos muitas vezes não amamos nem apreciamos.” (página 97)

Por que valeria a pena ler um livro, cheio de recortes de cartas, com conselhos de escrita? Talvez não valesse nada, se o autor não soubesse do que fala. Mas este é Anton Tchékhov, alguém que tem o que dizer. Um gênio do conto, reconhecido entre seus pares. Autor de clássicos, dentro daquela definição de clássico que tanto prezo:

Clássico é aquele livro que, tendo a dizer muito à sua época, tem também muito a dizer a qualquer época. Um abraço!