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segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Resenha Nº 208 - Alguém Para Correr Comigo, de David Grossman



Título original: Mishehu larutz itô

Autor: David Grossman

Tradutor: George Schlesinger

Edição: TAG/Companhia das Letras

Edição: 1ª

Copyright: 2000

ISBN: 978-65-5921-368-9

Gênero literário: Romance

Origem: Israel (hebraico)

 

David  Grossman nasceu na cidade de Jerusalém, no ano de 1954. Formou-se em filosofia e teatro e é hoje um dos nomes de destaque em seu país, quando o assunto é literatura. Sua obra é mundialmente conhecida pelo tom pacifista; ele acredita que a literatura pode ser um poderoso recurso para resgatar o aspecto humano do conflito.

Seus trabalhos abrangem ficção e não ficção. Relaciono aqui apenas os livros de ficção: Duelo (1982), The Smile of The Lamb (1983), Amor (1986), O Livro da Gramática Interior (1991), O Garoo Zigue Zague (1994), Em Carne Viva (1998), Alguém para Correr Comigo (2000), Her Body Knows: Two Novellas (2003), Desvario, Até O Fim da Tarde A Mulher Foge (2008), Fora do Tempo (2012), Um Cavalo Entra num Bar (2017) e A Vida Brinca Comigo.

“Um cão galopa pelas ruas, e atrás dele corre um rapaz. Uma longa corda une os dois e se embaraça nas pernas das pessoas, que ficam passando de um lado a outro, e se irritam e xingam: o rapaz murmura sem parar: “Desculpe, desculpe” e, em meio às desculpas, grita para o cachorro: “Pare! Stop!”, e uma vez, cúmulo da vergonha, escapa-lhe também um “Porra!”. E o cachorro continua correndo.” (página 9)

Este parágrafo inicial abre o romance com a técnica que se convencionou nomear com a expressão latina in medio res, isto é, “a ação no meio”. Melhor explicado: não há uma progressiva introdução, como nos romances antigos, em que personagens primeiro eram apresentados e se procurava estabelecer a ligação entre eles. Depois, vinha a ação. Aqui, o cachorro e o menino, em desabalada carreira, são apresentados e não sabemos quem são, do que correm e nem por quê.

Este arco narrativo se alonga por boa parte do livro; entretanto, nas páginas 92 acontece a introdução de outro arco, que também se estenderá:

“Tamar levantou-se da floreira de pedra e ficou em silêncio refletindo. Por um instante teve a impressão de haver sido sequestrada para um lugar distante, e seus olhos se arregalaram ainda mais, fixos no espaço vazio. E só quem acredita em coisas sobrenaturais diria que, numa fração de segundo, um raio atingiu seu cérebro e, sem que ela entendesse, foi tomada por uma estranha e vaga profecia: que após um tempo não muito longo, a quatro semanas de hoje, ela perderia sua Dinka, e que um rapaz que ela não conhecia sairia à sua procura seguindo cada um de seus passos por toda Jerusalém.” (página 92)

Podemos agora preencher alguns porquês. O rapaz que corre atrás do cão chama-se Assaf e trabalha na prefeitura local. O animal foi encontrado perambulando pelas ruas da cidade e foi capturado. Como ele portava identificação na coleira, Assaf foi incumbido de uma missão: encontrar o dono do cachorro, fazê-lo preencher um questionário e cobrar dele uma espécie de multa.

O cão, de início, parece facilitar o trabalho de Assaf; leva-o a vários pontos conhecidos, na procura aflita de sua dona. E se aproxima, pouco a pouco, de um endereço importante – uma propriedade antiga, onde há uma torre em que reside uma freira de nome Teodora. A esta altura, já descobrimos que o cão não é um cão, é uma cadela. E a placa de identificação da coleira diz o nome: Dinka. E mais, a cachorra enlouquece de alegria ao receber as carícias de Teodora.

O parágrafo que abre o segundo arco narrativo adianta algumas coisas. Dinka pertence a Tamar. É ela que Assaf terá de encontrar, para lhe devolver o animal, ao qual já se afeiçoa, fazê-la preencher o tal questionário guardado em seu bolso e cobrar-lhe a tal multa.

Entretanto, se o parágrafo junta partes, estabelece outras questões cruciais para o prosseguimento do romance. Por que Tamar está ali, parada, tão reflexiva? Por que ela tem a impressão de ter sido sequestrada? Por que ela perdeu Dinka? O que, exatamente, ela está fazendo?

Tamar é uma cantora e se apresenta nas ruas de Jerusalém:

“Mesmo sem abrir os olhos, ela consegue sentir como a rua se parte ao meio, não no comprimento nem na largura, e sim entre a rua que existia antes de ela cantar e a rua que existe depois. É uma sensação clara e precisa, e ela se sente segura. Não precisa olhar. A pele está sentindo: as pessoas aos poucos vão parando, outros dão a volta e retornam hesitantes ao lugar de onde vem o som. Parados. Atentos. Esquecem-se de si próprios ao ouvir sua voz.” (página 93)

Voltemos ao arco anterior, o de Assaf e Dinka. Eis que Assaf é preso por dois policiais – um homem e uma mulher. Levam-no à delegacia para colher depoimento, levam também Dinka, sem que o rapaz entenda o que está acontecendo.

“Uma chave girou na fechadura, e Assaf pulou do chão para o banco. O investigador entrou e chegou a ver o pulo assustado, e Assaf imediatamente sentiu-se culpado. Junto com o investigador entrou uma mulher jovem e simpática. Disse seu nome a Assaf, Sigal ou Sigalit, ele não entendeu bem, acrescentando que era encarregada da investigação, especializada em delinquência juvenil, e que iria conversar come junto com o investigador. Perguntou se ele queria que algum parente fosse chamado para estar presenta ao interrogatório, e Assaf, apavorado, quase gritou que não.” (página 110/111)

Assaf não entende nada, a princípio. O que fizera ele? Por que está detido? As perguntas não demoram a ser respondidas:

“Ouça bem”, disse [o investigador] após um segundo, “já estou há sete anos nesse sérvio, e, todo mundo sabe, tenho memória fotográfica. O seu cachorro fedorento, eu já vi, não faz um ano, nem dois, faz menos de um mês. E ele estava junto com uma garota, de quinze anos, mais ou menos, talvez dezesseis. Cabelo cacheado, preto, comprido, mais ou menos um metro e sessenta, rosto bonito.” O investigador falava nesse momento voltado para a mulher, e sem dúvida tentava impressioná-la com sua memória: “E ela já estava nas minhas mãos, no meio de uma transação com o anão da praça Zion, e se não fosse esse cachorro filho da p...” (página 111)

Assaf fora preso por causa de Dinka. Fica claro que Tamar estava envolvida em algo errado e, ao ser abordada, a cadela reagira, mordendo a pena do investigador. Entretanto, Assaf consegue se safar desta, ao ser identificado como funcionário da prefeitura em missão de devolução do bicho a alguém de direito e, portanto, inocente do que o acusavam.

Mas ficamos com a pulga atrás da orelha. Então Tamar estava envolvida em alguma coisa suspeita? O problema é o que acontece durante os shows dos agenciados, como fica explícito nesta passagem:

“Minha carteira, com todo o dinheiro e os documentos.” Ela tinha um rosto gordo e vermelho, veias saltando em torno do nariz enorme e na cabeça uma torre de cabelos loiros cintilantes. “Hoje o patrão me deu trezentos shekels para o casamento da minha filha. Trezentos shekels! Ele nunca dá tanto dinheiro! E no caminho eu escuto você cantar, paro só um momento, oy!, sou uma idiota! Agora... nada, não tem mais nada!” Sua voz foi morrendo de pesar e incompreensão.

Sem hesitar, Tamar lhe estendeu todo o dinheiro que havia no chapéu. “Pegue.” (página 168-169)

Cortemos de novo. Tamar tem um contato com dois agenciadores de talentos. Mantém um local, onde dão abrigo e comida, em troca de os agenciados exporem suas artes ao público. As pessoas deixam dinheiro aos artistas de rua; estes têm de cumprir uma agenda, com shows em lugares públicos.

“O que você precisa conhecer? Eu sou a vovó, e ele, o vovô. Velhos! E há um rapaz lá. Pessach, que é o gerente, e ele é gente boa, pode acreditar, queridinha, é um garoto de ouro!” Tamar olho para os dois desesperada. Era isso mesmo. Esser era o nome que Shai mencionara quando lhe telefonou de lá. Pessach. O homem que lhe dera uma surra, que quase o matara de tanto bater. A velha prosseguiu: “E ele tem esse local exatamente para jovens como você”.

O grande problema aqui é o acontecimento enquanto Tamar  canta. Batedores de carteira roubam as pessoas.

Shai é o irmão desaparecido de Tamar. A nossa experiência com a estrutura do romance nos diz que, claro, os dois arcos narrativos vão se aproximar e, em dado momento, vão se misturar. É próprio de uma boa obra não deixar pontas desamarradas. Aqui deixo o leitor com o gostinho do quero-mais. Não sou um estraga-leitura...

Você, leitor que me lê, já sacou, este Alguém para correr comigo tem uma condução em zigue-zague. E Grossman faz este trabalho de maneira muito competente. Os deslocamentos temporais são precisos e com bons indicadores, que levam o leitor e entender os fatos anteriores e posteriores dos dois arcos.

Durante a leitura, me lembrei muito de Oliver Twist, de Charles Dickens – lido há muito tempo – e o ponto de contato entre as duas obras é a ambiência dos jovens num submundo que perverte a inocência e joga-os num mundo adulto do pior jeito possível. A revista da TAG, que acompanha este livro, confirma a aproximação.

A narrativa tem um tom delicado, as frases têm uma respiração tranquila, apesar da realidade crua do que narram, no mais baixo substrato social de uma cidade grande. Exploração de mão-de-obra juvenil, drogadição:

“Porque, ela pensou, o que eu sou em comparação a eles? Uma menina boazinha, caseira, um passo ou outro fora da linha. E eles, com que coragem se recusavam a ser parte do jogo cínico e hipócrita do mundo, do jogo de força e ambição... Naquele momento realmente teve inveja deles – da liberdade, da coragem de quebrar as regras, de se revoltar assim, até o fim de renunciar à segurança da casa, dos pais, da família, que, de toda forma não passavam de uma grande ilusão, um tipo diferente de droga tranquilizante, capaz de eliminar os medos...” (página 278)

Alguém para correr comigo é uma leitura marcante. Sem termos difíceis, é um projeto em que o autor deseja encontrar o seu leitor sensível ao tema. Olha o mundo com tristeza, olha a natureza humana com os olhos marejados.

Afinal, concluo eu, se condeno a humanidade, condeno-me como parte incontornável dessa mesma humanidade. E há dois caminhos: ter esperança e batalhar para que ela, a esperança, não morra ou entregar os pontos de vez.

Tamar manteve a esperança. Assaf manteve a esperança. Ou Tamar não procuraria resgatar o irmão. Ou Assaf teria desistido de cumprir a missão que tomara nos braços.