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sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Resenha nº 153 - A Natureza da Mordida, de Carla Madeira


Título original: A Natureza da Mordida
Autora: Carla Madeira
Editora: Quixote + Do Editoras Associadas
Edição: 1ª
Copyright: 2018
ISBN: 978-85-66256-35-2
Origem: Literatura brasileira
Gênero Literário: Romance
Bibliografia da autora: Tudo é Rio, 2014; A Natureza da Mordida, 2018.

A Natureza da Mordida é um romance que vai se revelando aos poucos, a cada encontro entre Biá e Olívia. O primeiro encontro se dá num sebo, cheio de livros usados que contam suas histórias. Livros de sebo não contam apenas as histórias que inundam suas páginas; contam também aquelas das pessoas por cujas mãos eles passaram. Dedicatória aqui, uma assinatura ali, anotações e sublinhamentos acolá. Que emoções geraram estes exemplares? Quais histórias de vida tocaram? Se é verdade que ninguém conseguiu, até hoje, caracterizar um modo de fazer literatura que seja genuinamente feminino, este A Natureza da Mordida é um livro de que transborda a sensibilidade feminina. À medida que a narrativa prosseguia, construída pelo que se dizem as duas mulheres, eu ia me lembrando daquelas que, de algum modo, tocaram minha própria vida. Sou grato a elas. E o livro ainda nos reserva mais um brinde: é uma ode à literatura, a começar da primeira locação – um sebo. Carla é autora de outro ótimo romance, Tudo é Rio, anteriormente resenhado aqui no blogue. Por razões puramente do coração, gostei mais desta segunda obra. Atrasei meus compromissos para terminar a leitura do volume.

Remeto quem se interessar pela biografia de Carla Madeira à resenha nº 146 deste blogue, do livro Tudo é Rio. Não há muitos dados disponíveis por enquanto. Prevejo que, no futuro, cada vez mais se falará desta autora mineira.

“Eu vi Olívia. Ela estava na última mesa, depois de algumas outras mesas ocupadas, sozinha escrevendo. Em volta, um silêncio que as mesas barulhentas, os carros que passavam, as pessoas que corriam, não podiam interromper. Ela escrevia sem fazer a menor ideia de que aquele era o meu lugar. Era onde eu me sentia melhor, era meu por obrigação de me sentir melhor. Onde eu me esquecia menos. Lembrar se tornou prioridade absoluta. Pensei: vou pedir que ela me devolva, ou que me ceda, para não ser agressiva, o lugar onde me sinto melhor. Tenho uma recomendação expressa de meu médico de me sentir melhor sempre que possível. E seria possível se ela saísse de lá e me deixasse sentar e folhear os livros do sebo, que tão bem me fazem quando me lembram que sempre haverá uma outra realidade para onde me retirar. Pensei em ir até ela pedir gentilmente que saísse, mas vi que se entregava consumida a uma escrita sem pausas.” (página 9, Anotações de Biá)
É assim que, mineiramente, começa este livro. Chego até a me sentir na pele de Olívia, a que escreve sem pausas. O sebo é meio atemporal – o tempo ali se anula um pouco pela convivência com livros de variadas edições e variados tempos e gêneros ficcionais. Lá fora, o tempo corre; cá dentro, o tempo para. Lá fora, as pessoas passam, os camelôs gritam, os ônibus aceleram; cá dentro, as pessoas caminham despreocupadas, prevalece o silêncio, os corredores formados por estantes repletas são as únicas ruas onde moram os livros.

Sebo é memória. Interessante anotar isto e mais tarde direi por quê.

Biá, que aliás não é Biá, mas batizada Emma – com aquela personagem-título de Jane Austen – observa Olívia, a que escreve sem pausas. Ao prestar atenção, vê que Olívia chora. Uma perda recente. E Biá, bem mais velha do que ela, a aborda e começam a conversar. A interpeladora tem o poder de fazer com que Olívia conte suas dificuldades.
“Avancei e espantosamente segura de que faria aquilo, me apresentei: “Oi.” Oi e ponto. Oi e mais nada. Ela me olhou, sem saber se deveria me reconhecer, e disse “Oi.” Oi e ponto. Oi e daí? Daí, ela ainda com os punhos molhados, supus, depois de um silêncio que deveria ter me deixado sem lugar, me convidou para sentar. Ela me convidou para sentar talvez porque eu tivesse as mãos apoiadas na cadeira à sua frente, sem esboçar o mais remoto interesse em me afastar.” (páginas 10/11)
Estruturado em encontros entre Biá e Olívia, e em sua maioria, cada encontro precedido de “Anotações de Biá”, pouco a pouco vamos tendo reveladas parte das vidas destas personagens. Brincadeiras de infâncias, namoricos, o despertar dos hormônios e sensações, a idade adulta, vão perpassando diante dos nossos olhos.
Olívia conta a Biá como era sua mãe, seu pai e a relação entre eles:
“Para conquistar minha mãe, que era cobiçada com fervor por outros rapazes, inclusive por um dos diretores do banco, meu pai dizia ter usado uma técnica infalível: a ousadia. Pediu a ela uma receita de bolo! Minha mãe contava rindo que o xeque-mate do meu pai levava leite condensado. Mas na verdade o que a conquistou mesmo é que ele não a tratava só como uma mulher a ser conquistada, mas como uma pessoa a quem queria conhecer. Se interessava pelo que ela vestia e também pelo que pensava. Comentava a cor do esmalte em suas mãos, mas também queria saber suas opiniões sobre política. Trocavam livros, discos bilhetes e receitas de bolo. Naquele ambiente conservador e machista do banco, com todos aqueles homens submetidos a uma lisa enorme do que é do que não é coisa de homem, cheios de certo e errado, de pode e não pode, meu pai, completamente apaixonado, se viu rapidamente correspondido.” (página 113)
À medida que a história se desenrola, vamos percebendo que existem trechos repetidos, sempre referidos por Biá. São relatos cheios de lacuna, onde faltam informações, que depois aparecem, muitas delas repetidas. Por que será que a autora fez isto?

Por um motivo muito simples: Biá sofre de perda de memória. Não é um spoiler, está relatado na orelha do livro. E aqui é que se dá um mecanismo muito interessante: enquanto, paulatinamente, Biá perde sua memória, Olívia, através de seus relatos, recupera memória de sua vida, recupera coisas de há muito esquecidas ou não ditas. Entra aqui o realce que dei à questão do sebo como memória: o sebo é como se fosse um gigantesco cérebro ficcional, onde cada segmento de recordação fosse garantido por cada um dos livros que o compõem. É ali que Biá (perdendo a memória) e Olívia (recuperando a sua história) se encontram. Significativo, não, caro leitor?

Certa competição, tipicamente feminina, se estabelece entre Olívia e sua amiga, Rita:
“Nas primeiras férias que passei com eles fiquei menstruada pela primeira vez. Um aperto inesquecível. Eu era simplesmente louca para ficar menstruada. Ter peito, ter pelo, encorpar. Quase fiz promessa para ficar mocinha antes de Rita. Esse era um detalhe essencial. Na verdade, eu rezava para não ficar depois de Rita. Não queria que ela soubesse como era ser uma moça, sendo eu, ainda, tecnicamente, uma criança. Rita já tinha uma autoestima insuportável – nem quando mijou na igreja, na rente de todo mundo, se abalou. Já eu, Biá, era bem mais insegura. Para começar, eu era ruiva. Sardenta. Muito diferente das outras meninas. Não era tímida, mas tinha uma preocupação excessiva sobre o que pensavam de mim, o que me tornava cautelosa e por vezes retraída.” (página 132/133)
Não só o nome verdadeiro de Biá – Emma – é uma referência literária. Várias delas acontecem durante o desenrolar da história. Citados nominalmente, temos Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez, Crime e Castigo, de Dostoiévski. Outras se seguem, misturadas ao texto, sem aspas ou qualquer outra marcação. Estas são, depois, arroladas ao fim do livro, numa enorme lista de créditos que vão de Guerra e Paz, de Léon Tolstói, passando por Os Miseráveis, de Victor Hugo, seguindo pelo conto A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa.

Não é um recurso que me pareça esnobe, com a clara intenção de “vomitar cultura”, mas tais falas são parte integrante das falas de Biá, uma leitora assídua, voraz. Sei disso porque a mim também me ocorrem assim, vozes em segundo plano dentro dos meus pensamentos, vindas dos muitos livros que já li na vida. São, antes, um tributo belo à força da literatura; vozes de autores queridos, de obras queridas, que dizem melhor do que nós diríamos, aquilo que devem dizer.

As personagens do livro são muito bem desenvolvidas, na medida correta. Desfilam com autoridade Biá, Olívia, Rita, Laura (mãe de Olívia), Luciana (mãe de Rita), Teodoro (pai de Biá), a mãe de Biá...

Este A Natureza da Mordida é um livro que recomendo àquele leitor diletante de narrativas mais reflexivas, mais sensíveis no sentido de valorizar e explorar os sentimentos humanos. Coloco-o bem próximo, por exemplo, de Arroz de Palma, de Francisco Azevedo, também já resenhado neste blogue.

Peço-lhe licença, meu caro leitor, mas não posso terminar esta resenha sem transcrever um trecho que me impressionou pela beleza das ideias e da expressão dos sentimentos. É um diálogo entre Teodoro e a filha. É longa, bem sei. Entretanto, a estética textual – com a devida vênia de quem me lê – autoriza a transcrição:
“Vi se esboçar nele um desmoronamento, um gemido que a todo custo tentou conter, enquanto meu coração se enchia de imediato remorso. Quando ele voltou a falar, tinha envelhecido.
— Será, minha filha, que eu posso dizer que foram mesmo só sonhos, se quando eu acordava eles acordavam comigo? Escovavam os dentes comigo, tomavam o café da manhã, e entravam no meu carro e era preciso freiá-los energicamente, para que a música, que tocava no rádio, não os libertassem como costuma fazer com os sonhos bons? E entre uma ligação e outra, enquanto eu falava de horários e honorários, eles apareciam dizendo oi com suas vozes sem escrúpulos e suas imagens que me repugnavam e que também me arrastavam? E antes de dormir, lá no fundo de minha alma apavorada, de minha consciência em alerta, eu desconfiava horrorizado de que havia esperado por aquele momento em que, mais uma vez, eu me entregaria a eles, no lugar onde me entregar era permitido? Será, minha filha, maior amor de minha vida a quem eu jamais faria mal estando acordado, por quem eu morreria, será que ainda assim posso dizer que foi apenas sonho, tendo-me dado conta de que esses sonhos produziam uma espécie de realidade em que passei a viver? (páginas 239/240)

12 comentários:

Alexya disse...

Muito bom! Ansiosa para ler o livro.

Anônimo disse...

Com certeza irei ler! Ótima resenha.

Anônimo disse...

Não entendi, ele sonhava com a filha?

Blog do Cleuber disse...

Enk, que bom que você gostou da resenha! Carla vem despontando com sua literatura, tanto que seus livros vêm sendo lançados por uma grande editora brasileira. Até agora, ela escreveu "Tudo é rio", "A natureza da mordida" e "Véspera". Todos são ótimos romances.

Blog do Cleuber disse...

Respondendo ao Anônimo: não, é um diálogo entre pai e filha. O pai se lembra de fatos passados no relacionamento com a filha e os comenta, conversando com ela.

Anônimo disse...

Ele tinha desejos sexuais pela filha ?

Anônimo disse...

Teodoro é pai de Teresa, era marido de Biá (Emma).

Anônimo disse...

Respondendo ao anônimo acima. Não, ao ler o livro você vai entender que Teodoro sofreu uma culpa muito grande por determinada situação e essa culpa era despertada na relação dele com a sua filha.

Anônimo disse...

Fenomenal esse livro. Eu li uma vez, não marquei um frase sequer, li a segunda vez, o livro esta cheio de marcações. Como não destacar trechos dos diálogos e das falas lindas da Bia? Estou lendo pela terceira vez os trechos marcados (parece loucura, e é sim, por essa linda
história que cada vez que leio descubro alguma coisa). Carla Madeira promete. Recomendo lerem Véspera.

Blog do Cleuber disse...

Anônimo, você já leu "Tudo é Rio", da Carla Madeira? Outro livraço, se puder, não deixe de ler. E tem o mais recente, "Véspera". Também ótimo. Um abraço e obrigado pelo seu comentário.

Unknown disse...

Também fiquei sem entender porque Biá o mandou embora. Será que ele estava apaixonado por Tereza?

Anônimo disse...

Mas por que tem um momento que Biá fala para Teresa nunca andar pelada na ponta dos pés?