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quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Resenha nº 139 - A Virtude da Raiva, de Arun Gandhi


Resultado de imagem para livro a virtude da raivaTítulo original: The Gift Of Anger
Título em português: A Virtude da Raiva
Autor: Arun Gandhi
Tradutora: Débora Chaves
Editora: Sextante
Copyright: 2017
ISBN: 978-85-431-0537-6
174 páginas
Gênero: Autoajuda
Bibliografia do autor (incompleta): Legado de Amor, 2014; The Forgotten Woman, 1981; Meu Avô Gandhi, 2014; Daughter of Midnight, 1998.

Autoajuda: um gênero detestado e rentável. Livros deste tipo são aqueles reconhecidos como os que vendem horrores. Entretanto, mais recentemente, minhas tantas leituras me dizem o seguinte: há livros de autoajuda muito diferentes entre si. O conceito é elástico demais. Assim, na minha visão, a Bíblia é autoajuda, literatura pode ser autoajuda, seguindo esta tendência da obra Farmácia Literária, de Ella Berthoud e Susan Elderkin. Nenhuma dúvida; nós, os que lemos muito, sabemos da importância de um livro certo lido num momento correto. E gostei muito deste A Virtude da Raiva. Achei a proposta de transformar o sentimento da raiva em algo potencialmente bom, um impulso para realizar coisas muito apropriadas. Sim, porque esse negócio de dizer que não devemos sentir raiva, não devemos dar acolhida a este sentimento destruidor, me parece assim meio quixotesco. Ora, somos animais irritáveis, não há como não ter raiva pelo menos alguma vez na nossa vida. Transformar, neste caso, me parece mais factível do que evitar. E outra coisa que gostei demais no livro: ele me trouxe o Mahatma Gandhi bem para pertinho de mim, me deu um panorama de como este fantástico homem pacifista pensava. A não violência gandhiana não era só não brigar com alguém, ser grosseiro. É também não se deixar levar pela raiva, transformando-a em algo bom. Não imaginava.

Arun Manilal Gandhi nasceu em 1934. É neto de ninguém menos que Mohandas Gandhi e cresceu num ashram (uma espécie de local para retiro espiritual) na África do Sul. Viajou para o ashram de Gandhi ainda menino, quando sua família foi visitar o parente ilustre. Aprendeu a filosofia de não violência diretamente da fonte e no livro parte deste convívio é narrada. Depois de adulto, viajou para os Estados Unidos para o lançamento do filme Gandhi, de Richard Attenborough, com Ben Kingsley no papel principal. À época, ele ficou sabendo que o filme havia custado vinte e cinco milhões de dólares ao governo da Índia. Escreveu um artigo, posicionando-se contra tal custo, argumentando que este dinheiro seria melhor gasto se aplicado para ajudar muitos indianos pobres.

Entretanto, quando assistiu o filme, mudou de ideia. Apesar de algumas infidelidades, no todo o filme dava uma ideia muito boa sobre seu avô, prestando-lhe uma justa homenagem e mais que isso, levando a pessoas do mundo inteiro a filosofia da não violência.

Gandhi, todos sabemos, foi um dos grandes personagens da independência da Índia, que pertencia ao jugo inglês. Gandhi ganhou notoriedade exatamente por enfrentar as autoridades inglesas de peito aberto, mas sem ser violento. Não deu um tiro sequer. E acabou influenciando cabeças como as de Martin Luther King, Nelson Mandela e a famosa série televisiva de ficção científica, Jornada Nas Estrelas (Star Trek).

Num tom bastante descontraído, é assim que Arun começa o prefácio do livro:
“Estávamos indo visitar vovô. Para mim, ele não era o grande Mahatma Gandhi que o mundo reverenciava, mas apenas “Bapuji”, o avô afetuoso de quem meus pais sempre falavam. Sair de nossa casa, na África do Sul, para ir visita-lo na Índia era uma longa jornada. Tínhamos acabado de enfrentar uma viagem de 16 horas num trem lotado que paratira de Mumbai, apertados numa cabine de terceira classe que fedia a cigarro, suor e fumaça do motor a vapor da locomotiva. Estávamos todos cansados quando o trem resfolegou na estação de Wardha. Foi bom me livrar do pó de carvão, descer na plataforma e respirar ar fresco.” (página 9)
E, um pouco mais adiante, ainda no generoso prefácio, ele começa a traçar o perfil do avô famoso:
“O exemplo de não violência do meu avô nunca teve a ver com passividade ou fraqueza. Na realidade, ele considerava a não violência uma forma de nos tornarmos mais fortes em termos morais e éticos e mais capazes de avançar em direção a uma sociedade com mais harmonia. Quando estava promovendo as primeiras campanhas de não violência, ele pediu que o ajudassem a sugerir a palavra sânscrita sadagraha, que significa “firmeza em uma boa causa”. Bapuji gostou, mas decidiu modifica-la um pouco e transformá-la em satyagraha, ou “firmeza para a verdade”. Posteriormente, o termo passou a ser traduzido como “força da alma”, o que nos lembra que a verdadeira força vem do cultivo dos valores corretos na busca da transformação social.” (páginas 12/13)
Gandhi não se considerava perfeito, mas não se deixava iludir pela fama a ele atribuída. Por onde passava, uma multidão o acompanhava, sequiosa de suas palavras. Entretanto, nem sempre fora assim. Gandhi formou-se como advogado, trabalhando em Londres, vestindo ternos cortados sob medida, com caimento perfeito. Um dos muitos casos aconteceu num trem:
“Alguns anos mais tarde, depois de se mudar para a África do Sul, precisou pegar o trem noturno para Pretória por causa de um dos casos em que estava trabalhando. Entrou  no vagão de primeira classe com o bilhete correto, mas um homem branco alto e grosseiro reclamou de sua presença ali.
— Saia daqui, cule – gritou o homem, usando um insulto racista da época.
— Tenho um bilhete válido de primeira classe – respondeu meu avô.
— Não me interessa o que você tem. Se não sair, vou chamar a polícia.
— Esse é um privilégio seu – retrucou  meu avô, que se sentou calmamente, sem intenção de ir para o vagão de terceira classe, reservado para não brancos.
O homem saiu do trem  e voltou com um policial e um funcionário da viação férrea. Os três literalmente jogaram vovô para fora do trem.” (página 36)
Arun relaciona dez lições a seguir, que vão configurar a filosofia de não violência:
  • Use a raiva para o bem;
  • Não tenha medo de expressar sua opinião;
  • Aprecie a solidão;
  • Conheça seu valor;
  • Mentiras levam a mais mentiras;
  • O desperdício é uma violência;
  • Eduque seus filhos sem violência;
  • Humildade é força;
  • Os cinco pilares da não violência:
  •             Respeito.
  •             Compreensão.
  •             Aceitação.
  •             Apreciação.
  •             Compaixão.
  • Você será testado.

O autor explana cada uma destas dez lições, fazendo comparações com os dias de hoje. Critica, por exemplo, o uso exagerado que se faz dos smartphones, apontando que as famílias vão perdendo o prazer de estarem juntas, numa refeição, sentadas à mesa e podendo cada uma contar suas histórias.

O livro relaciona, também os “sete pecados sociais”, segundo Gandhi:
  • Riqueza sem trabalho;
  • Prazer sem consciência;
  • Comércio sem moral;
  • Ciência sem humanidade;
  • Conhecimento sem caráter;
  • Devoção sem sacrifício (não de animais, mas de riqueza);
  • Política sem princípios.

Ainda quero incluir, nesta resenha, duas passagens que me deixaram bastante propenso a reflexões (vou reler este livro). A primeira é sobre como enfrentamos as injustiças. Comentando aquela passagem de seu avô ter sido retirado à força do trem, na África do Sul, por ele não ter cedido à imposição do homem branco do avô transferir-se para a terceira classe, Arun anota:
“Mas, quando contou aos outros indianos o que tinha acontecido, muitos simplesmente deram de ombros. Se as pessoas brancas não o queriam na primeira classe, por que ele simplesmente não se mudou para o outro vagão?
— Porque é injusto – repetiu Bapuji. – Não podemos nos submeter e aceitar a injustiça.
Mas as reações apáticas também fizeram com que ele percebesse que “ninguém nos oprime mais do que nós mesmos”. Paramos de perceber as injustiças que sofremos e que são infligidas aos outros. Preocupados com nossa vida cotidiana e com o desejo de seguir em frene, paramos de prestar atenção. Comportamentos que deveriam causar indignação começam a nos parecer normais.
Bapuji nos diria que todo mundo precisa acordar imediatamente para as desigualdades e injustiças do mundo. Não temos que aceitar o preconceito. Precisamos lutar em todos os níveis. Ao encorajar as pessoas a agirem, no entanto, Bapuji reconhecia que não adianta combater o ódio com ódio e raiva com raiva. Isso apenas multiplica os próprios problemas que queremos eliminar.” (página 158)
A segunda passagem, igualmente importante, toca a psicologia humana de grupo:
“Psicólogos descobriram que, quando as pessoas são designadas aleatoriamente para um determinado grupo, elas imediatamente o elegem e afirma que ele é melhor do que os outros. Isso vale independentemente de quão desimportante seja a distinção. Dê a algumas pessoas uma camiseta vermelha e a outras uma camiseta azul e veja as alianças se formando.” (página 163)
Esta última questão é extremamente importante para ser examinada no processo eleitoral pelo qual passou o Brasil. Sem dúvida foi a eleição mais bipolar da história deste país. E, tomando pela mão o enunciado acima, cada grupo mergulhou numa violência, num ódio de assustar. Famílias até então unidas se desuniram por questões partidárias; amigos antigos romperam relações por diferença de apoio a candidatos; uns chamando a contraparte de burros.

A leitura deste A Virtude da Raiva nos alerta para trabalharmos melhor este impulso primário. Admitamos sua existência; transformemo-lo depois. A raiva não trabalhada nos transforma em loucos momentâneos. É preciso não deixarmos isto acontecer.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Enfiando O Pé Na Jaca III


Black Friday é irresistível, no tocante a livros. Todos os anos, faço promessas de joelhos a mim mesmo, não vou comprar nada! Tantas promessas feitas, tantas desobedecidas. O que me acalenta é que não estou sozinho, todas as booktubers que conheço também pisam na jaca. Eis o que aconteceu nesta última “breque fraidi” tupiniquim:

Resultado de imagem para livro crime e castigoCrime e Castigo, de Dostoiévski

Há muito tempo desejava comprar este livro. Conta com uma primorosa tradução direta do russo, de Paulo Bezerra. Ele é um dos nossos três “russos”, junto de Bóris Schnaiderman e Paulo de Figueiredo. Tenho traduções antigas, feitas de segunda mão, vindas a nós de traduções intermediárias do francês. Acontece que as traduções francesas antigas terminaram por mexer muito nos textos de Dostoiévski. Será uma outra aventura ler esta tradução da Editora 34 (que, diga-se de passagem, faz um belo trabalho com a sua coleção Leste Europeu).
Resultado de imagem para livro cem anos de solidãoCem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez

Esta edição está um luxo. Bela capa, texto integral em bom papel e boa diagramação. Finalmente, pretendo entrar em contato com a família Buendía e a cidade onde habitam, Macondo. Gabo – como  Gabriel Garcia Márquez é conhecido – escreveu um clássico moderno. Este exemplar conta ainda com textos de apoio muito proveitosos. Simplesmente, irresistível!
Rua do Odéon, de Adrienne Monnier

Este é um livro que conta um pouco da famosa livraria da Rua do Odéon, La Maison des Amis des Livres, de propriedade de Adrienne Monnier, em Paris. Por ela passaram figuras como Ernest Hemingway, André Gide, James Joyce. E, ainda, Adrienne conheceu outra famosa livreira, a americana Sylvia Beach, fundadora da Shakespeare and Company, cujo endereço original era também na Rua do Odéon. Adrienne nos fornece um retrato intelectual da Paris de um período fascinante.
Resultado de imagem para livro historias da gente brasileiraHistórias da Gente Brasileira, em três volumes, de Mary del Priore

A autora dispensa apresentação. Mary del Priore era professora universitária, com doutorado e tudo. Resolveu deixar a carreira acadêmica para escrever livros de história do Brasil em que a leveza textual, apoiada muitas vezes numa narrativa cativante é a tônica. Um trabalho maravilhoso, aliado a uma pesquisa primorosa.
O Evangelho de Maria Madalena, de José Lázaro Boberg

Boberg estuda o evangelho apócrifo de Maria de Magdala (ou Maria Madalena), baseado em textos antigos encontrados em Nag Hamadi. O livro promete ser muitíssimo interessante, oferecendo-nos uma visão diferente sobre a personagem centro de interpretações que acabaram se solidificando com o tempo, como a de que ela era uma meretriz. Boberg nos propõe uma revisão destas interpretações à luz de novos textos descobertos mais recentemente.
Resultado de imagem para livro socialismo e espiritismoSocialismo e Espiritismo, de Léon Denis

Livro polêmico até hoje, escrito por Léon Denis. Trata-se de uma compilação de textos originalmente publicados na Revista Espírita dirigida por Allan Kardec, que circulou na França por doze anos seguidos. Léon Denis, dizem, era um orador poderoso e muito preparado. A polêmica acontece pela aproximação do socialismo com o espiritismo.


domingo, 25 de novembro de 2018

Resenha nº 138 - O Segredo do Oratório, de Luize Valente


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Título Original: O Segredo do Oratório
Autora: Luize Valente
Editora: Record
Edição: 4ª
Copyright: 2012
ISBN: 978-85-01-09854-2
318 páginas
Gênero: Romance (Histórico)
Bibliografia da autora – Documentários – Israel: Notas e Raízes (em coautoria com Elaine Eiger), 1999; Caminhos da memória: A trajetória dos judeus em Portugal (em coautoria com Elaine Eiger), 2002; A estrela oculta do sertão (em coautoria com Elaine Eiger), 2005; Romances – O Segredo do Oratório, 2012; Uma praça em Antuérpia, 2015; Sonata em Auschwitz, 2017. Prêmios: Melhor documentário no Festival de Cinema Judaico de São Paulo, com A Estrela Oculta do Sertão, 2005; Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, com o romance O Segredo do Oratório, 2013.

A leitura do livro em mãos não estava engrenando. Sofri para concluir as trinta primeiras páginas. Não que o livro fosse ruim, longe disso. O primeiro conto já evidenciava a qualidade do texto. Mas, às vezes, é um livro certo num momento errado. Ou o tema, que no momento não nos sensibiliza. O fato é que mudei de livro, fui ler este O Segredo do Oratório, de Luize Valente. Já havia lido e resenhado o Uma  Praça em Antuérpia (resenha 124, neste blogue) e gostado muito. Lá estava o romance histórico, evidenciando muita pesquisa, mas com a mesma pegada de suspense. Desta vez, a história envolvia a legitimidade de uma descendente judia; ela queria reconhecida sua ascendência de cristã-nova, no Brasil. E enquanto nos atínhamos ao enredo empolgante, aprendíamos muita coisa a respeito deste tais cristãos-novos.

Luize Mendes Pinheiro Valente nasceu no Rio de Janeiro e é de ascendência portuguesa e alemã. Formada em jornalismo e pós-graduada em Literatura pela PUC-RJ, é fascinada por História, notadamente ligada às questões judaicas e os refugiados dos tempos de guerra. Como se vê em sua bibliografia acima, escreveu três romances: O Segredo do Oratório, Uma praça em Antuérpia e Sonata em Auschwitz. Seus livros já foram editados fora do Brasil; Uma praça em Antuérpia ganhou edição portuguesa pela editora Saída de Emergência, integrando a coleção História de Portugal em Romances. O Segredo do Oratório ganhou uma tradução holandesa pela Nieuw Amsterdam.

Em 2017, os direitos cinematográficos de O Segredo do Oratório e de Uma praça em Antuérpia foram adquiridos pelos produtores Breno Silveira (de 2 Filhos de Francisco) e Paula Fiuza (diretora do documentário Sobral).

Enredo: A professora Ethel Mendelstein vai a Recife dar uma conferência sobre os judeus submetidos à inquisição no Brasil, levando Ana como sua assessora. Mal sabe Ana que o destino lhe reserva uma verdadeira aventura, colocando-a em contato exatamente com Ioná, uma descendente judia que também já pesquisava, por conta própria, sua ascendência. Ioná quase derruba Ana na rua, sem saber quem ela é. Mais tarde, ao tentar um lugar para a conferência de Ethel, Ioná consegue fazer chegar por Ana um bilhete a ser entregue à conferencista. É o começo de tudo:
“Pegou a caneta e o bloco que sempre carregava na mochila. A perna como apoio, começou a escrever um bilhete. Tinha que ser breve para que ela não desistisse de ler só de olhar, tinha que ser instigante para que ela ficasse curiosa.
“Cara professora Ethel Mendelstein,
Meu nome é Ioná. Sou médica, nascida na Paraíba, e há um ano descobri que pertenço a uma família cristã-nova. Nenhuma grande surpresa para a senhora, já que os conversos chegaram ao território paraibano desde as primeiras expedições da colonização. O que me fez escrever este bilhete foi a revelação feita por uma tia-avó...” (página 32)
A professora Ethel, entretanto, não poderá dar atenção ao caso, por estar com viagem marcada para os EUA. Designa, então, sua assessora para ficar e apurar o que Ioná terá para dizer. Ana vê aquilo como uma possibilidade para, finalmente, deixar os muitos livros sobre o assunto e mergulhar numa pesquisa de campo.

Assim, Ana oferece ir de carro com Ioná para a cidadezinha de Córrego do Seridó, no interior paraibano. Uma viagem de 400 quilômetros, duas quase-estranhas dentro de um carro. E, enquanto viajam, Ana se inteira da história daquela marrana, que é como também são conhecidos os cristãos-novos.

A pressa de Ioná se justifica: ela recebera uma mensagem, no sentido de que viesse logo para aquela cidade, pois sua tia-avó (também de nome Ioná, como ela) estava à beira da morte. Apesar de todo o esforço, quando elas chegam a Córrego do Seridó, a parenta já havia falecido; conseguem apenas participar do enterro, em que vários rituais judaicos são reconhecidos por Ioná.
Mais tarde, ela fica sabendo que a tia-avó, prevendo a possibilidade de a sobrinha-neta não chegar a tempo, deixara-lhe instruções:
“— Sua tia-avó esperou o mais que pôde, mas Deus quis levá-la antes de sua chegada... Ontem, quando os anjos se aproximavam e quase se ouviam as trombetas do céu, pediu que as cantadeiras, o médico e o padre saíssem. Apontou o retrato e me fez prometer que o entregaria somente a você.” (página 110)
Os eventos a seguir levam Ana e Ioná a se hospedarem na casa do prefeito (que não por acaso é parente de Ioná) e depois, a visitarem uma propriedade erma, que em tempos melhores fora uma fazenda próspera. O atual proprietário, uma espécie de ermitão insociável e esquisitão faz parte do quebra-cabeça do passado de Ioná.

A obsessão por decifrar seu passado e ser reconhecida como judia convertida levam a protagonista médica até os Estados Unidos, mais especificamente na cidade de New York, onde ela rastreia sobreviventes dos primeiros judeus egressos do Brasil, quando o governo holandês de Maurício de Nassau terminou em nosso país.

Esta parte da história tem-se que explicar melhor. Os cristãos-novos no Brasil vieram de Portugal. Nossos irmãos lusitanos eram bastante tolerantes com os judeus, durante a inquisição. Entretanto, quando Portugal se associa à Espanha, uma das cláusulas para tal aliança era os lusos submeterem os judeus ao Tribunal da Inquisição. A saída possível foi a imposição de os judeus perseguidos serem aceitos, desde que jurassem publicamente fidelidade ao catolicismo, renegando sua fé, sendo chamados, a partir daí, de judeus conversos ou cristãos-novos.

Mas mesmo este arranjo teve problemas. Para ficarem “definitivamente” a salvo de qualquer ameaça de extermínio, vieram em massa para o Brasil, sobretudo para a área do nordeste. A Holanda sempre foi um país que lhes garantia sobrevivência; assim, foram se proteger, em nossas terras, sob a força política de Maurício de Nassau, holandês.

Para se garantirem – só estavam a salvo nas áreas em que o poder holandês era forte, sobretudo nas cidades grandes – os cristãos-novos se “camuflaram” de católicos, numa espécie de sincretismo religioso, obedecendo publicamente a preceitos católicos, mas na intimidade de seus lares abraçando a fé judaica.

Defenderam-se dos católicos constituindo endogamias, ou seja, casamentos entre os da própria família – tios distantes com sobrinhas, primos com primas – a fim de preservarem seus costumes e sua fé manifestada nos recessos dos lares. Isto justificou porque Ioná encontrou, em Córrego do Seridó, tantos parentes em casamentos consanguíneos.

Outro personagem importante, além dos já apresentados (a professora Ethel, Ana e Ioná), é Pedro, um genealogista (alguém que é especialista no estudo das origens das famílias e na confecção de árvores genealógicas) e por quem Ana se afeiçoa. Um outro relacionamento confuso, complicado, acontece entre Ioná e Daniel – outro personagem, mas sem a importância de Pedro. Pedro vai auxiliar em muito a pesquisa das duas, pois não só tem profundos conhecimentos de genealogia dos judeus, como também tem bons relacionamentos com outros profissionais.

Já na cidade de New York, Ioná se hospeda na casa da  brasileira Eva. Ela a leva até um dos locais icônicos dos judeus egressos do Brasil:
“— O primeiro cemitério — continuou Eva — fica na parte baixa da ilha, em Chinatown. Foi fundado ainda no século XVII, em alguns anos depois da chegada dos judeus  fugidos do Recife – como você bem sabe – em 1654! Já  este aqui é de 1805 mas foi desativado com menos de trinta anos... e parte dele destruída por causa das obras de expansão  que cortaram a 11th. Muitos corpos foram transferidos para um outro cemitério da comunidade portuguesa, o terceiro, que fica  a dez ruas daqui, na 21st. Resistiu até meados do século XIX... por volta de 1850 a prefeitura proibiu enterros em Manhattan... a partir daí os cemitérios foram para o Queens, do outro lado do rio!” (página 260)
O que Ioná em crise busca na Big Apple, como ficou conhecida a grande cidade americana, é seu reconhecimento oficial como cristã-nova e, para isto, marca uma reunião com o tribunal rabínico, o Beit Din, onde poderá conseguir seu intento, apresentando sua história, seus argumentos e seus documentos.

A história poderia terminar por aqui e já seria uma boa história. Investigações, viagens, descobertas, a obsessão de Ioná, os problemas particulares de Ana, a aura de mistério a ser decifrado, envolvendo o oratório que aparece na fotografia deixada pela tia-avó que falecera, o estranho pedido desta para que Ioná fosse rezar por uma menina morta e enterrada na propriedade do primo esquisitão...

Mas Luize Valente é uma ótima escritora, sabe das estratégias de se escrever um romance; e, quase no final (não é um spoiler), a figura apaixonante do velho cristão-novo Menachen – em quem Ioná tinha esbarrado antes, se desculpando em português e com surpresa recebendo uma resposta dele também em português – uma pessoa para quem o acúmulo dos anos vividos trouxe uma sabedoria a toda prova:
“— Mas que coincidência encontrar o senhor aqui! Confesso  que ouvir o português na Sephardic House me deixou emocionada! No dia seguinte voltei lá mas acabei não entrando... – falou Ioná, sem jeito.
— Eu não acredito em coincidências, acredito em destino – respondeu ele sem estranhamento, como um velho conhecido. — E se você está aqui neste exato momento, a poucos minutos do surgimento da primeira estrela no céu, é um sinal para que este velho ermitão a convide para o Shabat! É uma honra ter em minha casa uma conterrânea de meus antepassados, da terra em que nunca estive! – As palavras saíram precisas, com forte acento português.
Ioná custou a acreditar que estivesse em frente de um judeu nascido nos Estados Unidos que nunca tinha cruzado o Atlântico ou descido as Américas.” (páginas 283/284)
O Segredo do Oratório, um grande romance histórico, feito por quem já havia mergulhado, em regime de coautoria, em algumas produções de documentários sobre os judeus. Este é um capítulo importante da história do Brasil, infelizmente desconhecido dos estudantes. Eu mesmo desconhecia quase por completo esta parte da história; fico feliz por resgatá-la, por meio de um romance tão bom.

Narrativas históricas têm esta característica: nos ensinam história de uma maneira prazerosa, humana. Não é à-toa que gostei tanto de ter lido o tijolaço Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, em que outra importante fatia de nossa história é desbravada, a revolta dos malês.

Coloco apenas um senão, algo que me soou como uma informação desnecessária para o leitor: Luize Valente insiste na importância de um ferro de marcar gado, visto na varanda da casa do prefeito de Córrego do Seridó. O leitor constata, a certa altura do texto, que tal ferro de marcar tem o feitio de uma chave, se se descartar a parte que queima o couro dos animais. Tal informação não serve para nada. Morre aí. Implicância minha? Pode ser, afinal, todos nós temos nossas perspectivas de leitura. É que eu esperava, sinceramente, induzido pelo clima de mistério do romance, que tal chave, disfarçada de ferro de marcar, servisse afinal para abrir alguma revelação até então oculta. O pretenso deslize em nada desmerece O Segredo do Oratório.

Recomendo esta leitura a quantos leiam este modesto blogue. Não acho, como li em um parecer de uma leitora, que este livro só interesse a quem seja judeu ou cristão-novo, ou a quem tenha interesse específico no assunto tratado. Não, é um livro muito bom, a gente o lê com prazer estético e histórico.

Talvez, no mês de dezembro seja a hora de ler o terceiro livro de Luize (já estou querendo fazê-lo), Sonata em Auschwitz. Tenho certeza, vou gostar; as leituras de Uma Praça em Antuérpia e O Segredo do Oratório me garantem isso.


sábado, 17 de novembro de 2018

Resenha nº 137 - A Conquista da Opinião Pública, de Patrick Charaudeau


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Título original: La Conquêt du Pouvoir : Opinion, Persuasion, Valeur
Título em português: A Conquista da Opinião Pública
Autor: Patick Charaudeau
Tradutor: Ângela M. S. Corrêa
Editora: Contexto
Copyright: 2016
ISBN: 978-85-7244-960-1
Gênero: Análise do Discurso (Político)
Bibliografia do autor (incompleta): Langage et discourse: élements de semiolinguistique, 1983; A Palavra Confiscada: um gênero televisivo, 1997; Grammaire du Sens et de l’expression, 1992; Discurso das Mídias, 1997; Dicionário de Análise do Discurso, 2002; Linguagem e Discurso: Modos de Oranização, 2008;  Discurso Político, 2008.

Motivado pelo recente processo eleitoral brasileiro, adquiri este A Conquista da Opinião Pública – Como o discurso manipula as escolhas políticas. A leitura de um livro acadêmico requer sempre um investimento em esforço intelectual; portanto, deverá ser uma leitura mais detida, reflexiva. Há que se entender conceitos, argumentações e o arcabouço teórico no qual tais reflexões se darão. Muita gente acha extremamente chato este tipo de leitura. Concordo, ele requer disciplina e nos prende ao campo sisudo da teorização metódica. Mas, nem por isso deverá ser chato. E, à medida que o lia, ia me encantando com a excelência do livro que tinha em mãos. Afinal, o livro pertence à minha área de formação e eu já contava com conhecimentos de Análise de Discurso – vertente francesa. Patrick Charaudeau é um especialista no assunto e criador mesmo desta tendência a que pertence o exemplar, a semiolinguística.

Patrick Charaudeau é um linguista francês, especialista em Análise de Discurso. Nasceu em 1939, contando hoje, portanto, com 79 anos de idade. É fundador da Teoria Semiolinguística de Análise de Discurso. É professor da Universidade Paris-Nord (Paris XIII). Junto com outro linguista de peso, Dominique Maingueneau, publicou o Dicionário de Análise de Discurso.

Mas, afinal de contas, o que é essa tal de Análise de Discurso, me indagará o leitor deste blogue. E aí está uma dificuldade, meu caro leitor. Não é intenção deste blogue tratar de assuntos acadêmicos, ainda mais da área linguística, vasta e desconhecida do grande público. Mas, este é um dos livros que li e, seguindo este contrato - resenhar livros que leio -, pensei em resenhá-lo. Vamos tentar, portanto, dar uma ideia desta importante teoria que hoje não se restringe mais aos estudantes de Letras e se derrama sobre as Ciências da Comunicação e as Ciências Políticas.

Segundo o próprio Dicionário de Análise do Discurso, no verbete próprio,
“análise do discurso [é uma] disciplina relativamente recente, que constitui o objeto deste dicionário. À análise do discurso podem-se atribuir definições as mais variadas: muito amplas, quando ela é considerada como equivalente de “estudos do discurso”, ou restritivas quando, distinguindo diversas disciplinas que toma o discurso como objeto, reserva-se essa etiqueta para uma delas.” (página 43, op.cit.)
Não adiantou muito, não é mesmo? Vamos ver se damos uma ideia melhor.

Análise do discurso é uma área dos estudos da linguagem que aborda o que se diz e o que se escreve do ponto de vista da mensagem que se quer passar, examinando o que foi dito, o que não está dito, mas compõe a intencionalidade do sujeito, levando em conta a cultura (contextualização) da produção do texto; estuda como esta mesma mensagem poderá ser recepcionada pelo ouvinte.

 Examina o discurso produzido pelas pessoas mais ou menos como um psicanalista examina o discurso do seu paciente, fazendo relações entre o que ele está dizendo, o que ele não quer dizer, mas cujos rastros o denunciam e até mesmo suas manipulações verbais.

O campo em que esta teoria é particularmente interessante é exatamente na interação entre uma ou mais pessoas e seu público. O discurso político se presta a este tipo de análise, porque o político, pelo próprio jogo sócio-discursivo, submete seu público a intencionalidades ocultas, no sentido de obter determinado resultado favorável a ele. Então, tentará não se expor demais, não dizer mesmo coisas que possam comprometer sua campanha:
“A questão do político – ou da política – é, ao mesmo tempo, simples e complexa. Simples, se for abordada pelo viés da opinião: trata-se de ser a favor ou contra um projeto de sociedade, a favor ou contra tal partido, a favor ou contra um determinado político (homem ou mulher). Se essa opinião for expressa num voto, na participação em uma manifestação, numa ação militante ou simplesmente durante uma discussão, a questão política se reduz à de uma tomada de posição mais ou menos argumentada.” (página 9)
Ora, concepção muito cara à análise do discurso é que quando nos comunicamos, o fazemos considerando determinado papel e dizemos o que esta instância social deve dizer. Se sou um professor no exercício da profissão, digo as coisas que devo dizer como profissional, uma vez que a sociedade (pais, alunos, outros profissionais) espera de mim exatamente isso. Já no exercício de pai, por exemplo, assumo outro discurso que me valide como pai.

Portanto, podemos deduzir disto duas coisas: primeiro, exerço vários papéis dentro de cenários sociais cambiantes; segundo, para cada um destes papéis tenho discursos diferentes. E mais, como nem sempre posso dizer tudo aquilo que em off penso, importa que todo discurso é uma manipulação do interlocutor.

Manipulação é uma palavra que ganhou sentido bastante pejorativo, como um meio de alguém enganar o outro. Não é esse sentido em que ela é usada aqui; para Aristóteles, manipulação era uma estratégia para se fazer o bem. Realmente, há coisas inadequadas para se dizer dentro de certo cenário social. Já pensou, leitor, se um presidente for para os meios de comunicação e, num rasgo de sincericídio, dizer abertamente: “meus caros eleitores, o Brasil está com a economia completamente quebrada”? Ao contrário, esconderá esta constatação e emitirá votos de confiança na recuperação econômica do país (e, se você for bom entendedor, constatará que sim, a própria emissão de votos de confiança na recuperação é evidenciação de que ela vai mal).

Patrick Charaudeau examina a questão da nossa identidade. Diz ele que
“A questão da nossa identidade, entre o individual e o coletivo, não é simples. Desejaríamos ser únicos, mas dependemos dos outros. Acreditamos ter uma opinião pessoal, mas logo percebemos que ela não é exclusivamente nossa. Em outros momentos queremos nos sentir em comunhão com os outros, mas, ao mesmo tempo, ao ver como funciona o grupo, temos medo de perder nossa singularidade. É uma ilusão acreditar que nossa identidade é única e homogênea. Somos, simultaneamente, o que não é o outro e o que ele é. E mesmo quando gostaríamos de nos ver como únicos, o olhar do outro se encarrega de nos enviar uma imagem de nós mesmos, um aspecto de nossa identidade que varia em função dos diferentes olhares que pousam sobre nós.” (páginas 23/24)
Todos nós manipulamos e somos manipulados. Pelo nosso discurso e pelo discurso do outro. A tal pretendida “transparência”, dentro da ótica da análise do discurso, não é possível. O jogo de esconde-mostra, do dito e do não dito, faz parte da atuação em sociedade. Muitas vezes, e você mesmo já deve ter notado isto em algum momento de sua vida, semiocultamos algo porque não queremos ferir a suscetibilidade de alguém, mas queremos passar a mensagem para outra pessoa, próxima. Nosso discurso sai ambíguo, mas com pistas para que a terceira pessoa, fora do diálogo, perceba o que quero dizer.

Para tornar o que digo um pouco mais claro, transcrevo um excelente trabalho de um dos humoristas mais inteligentes deste país, Millôr Fernandes:
A Vaguidão Específica

"As mulheres têm uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica."Richard Gehman

- Junto com as outras?
- Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia.
- Sim senhora. Olha, o homem está aí.
- Aquele de quando choveu?
- Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo.
- Que é que você disse a ele?
- Eu disse pra ele continuar.
- Ele já começou?
- Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse.
- É bom?
- Mais ou menos. O outro parece mais capaz.
- Você trouxe tudo pra cima?
- Não senhora, só trouxe as coisas. O resto não trouxe porque a senhora recomendou para deixar até a véspera.
- Mas traga, traga. Na ocasião nós descemos tudo de novo. É melhor, senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra noite.
- Está bem, vou ver como.
       - Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte.

Para além do humor evidente do texto, perceba como um diálogo pode ser fortemente obscuro, com os falantes alternando, a seu turno, falas cheias de “buracos de entendimento”. É a intimidade das pessoas, a interação entre sujeitos que se conhecem bastante, que completa o que falta, que preenche esses buracos.

Em toda democracia há um contrapoder. Temos o poder exercido pelos governantes, pelo poder constituído, mas sempre será necessário a estes representantes eleitos uma necessidade de não dizer mais do que será preciso, sob pena de fornecer lenha à fogueira:

“Não existe democracia sem contrapoder. Mas de onde vem o contrapoder? Ele não vem somente do que se chama de “oposição”. Num regime democrático, por não ser majoritária, seu peso fica enfraquecido. A oposição pode ter sempre uma certa influência, de cima para baixo, quando do trabalho das comissões parlamentares, ao votar ou não votar emendas às leis, e pelos comentários que pode fazer sobre ações do governo, comentários aos quais as mídias darão mais ou menos visibilidade. O contrapoder também, e talvez principalmente, o que vem da instância cidadã. Este é o lugar da opinião, que discute e é mandatária de representantes segundo um princípio de confiança.” (páginas 157/158)
Outro dia, vi um representante do futuro governo emitir o parecer que “as pesquisas não retratam a verdade, precisam de mudança de metodologia”. É parte do problema. As pesquisas têm validade relativa, elas apenas são um instantâneo, mostram uma fotografia de um momento. Basta que tal candidato pise na bola e diga algo que seu eleitorado não goste para, num momento pouco adiante, ele cair nas pesquisas. Além do mais, os institutos de opinião e pesquisa parecem, deliberadamente, não considerar que seus pesquisados podem mentir. E mentem: se a explicitação do voto ao candidato que se quer lhe trouxer problemas (candidato com alto índice de rejeição, por exemplo), o consultado ocultará sua verdadeira intenção de voto.

Para que você, caro leitor, não fique tristinho com tantas reflexões, incomodado com a ideia da manipulação, transcrevo um último trecho, para sua degustação (e possível vingancinha):
“A massa não constitui mais um amálgama homogêneo de indivíduos com opinião e comportamento únicos. A massa explodiu numa multiplicidade de grupos que tomaram consciência de sua existência, de seus direitos e, assim, de seu direito de reivindicar, e, fenômeno ainda mais recente, graças à cumplicidade das mídias, de seu poder de pressão junto à autoridade política. À medida que o nível de vida aumenta, que a educação se desenvolve e que o saber se expande, a consciência cidadã torna-se mais esclarecida, mas ao mesmo tempo mais complexa.” (página 168)
Excelente leitura, a deste A Conquista da Opinião Pública. Não é livro para andar na mão de leitores iniciantes, é certo. Mas sempre se poderá tirar algum proveito dele, mesmo em não se sendo da área de linguística. Pode-se não ter compreensão do alcance da teoria da análise do discurso; entretanto, para aqueles que gostam de ler textos argumentativos bem escritos, este é uma mão na roda para se inteirar melhor do que está em jogo nas campanhas, nos processos políticos postos a funcionar.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Resenha nº 136 - O Homem Mais Inteligente da História, de Augusto Cury


Título original: O Homem Mais Inteligente da História
Autor: Augusto Cury
Editora: Sextante
Copyright: 2016
ISBN: 978-85-431-0435-5
Gênero literário: Romance
272 páginas
Bibliografia do autor (incompleta): Pais Brilhantes, Professores Fascinantes, 2003; Filhos Brilhantes, Alunos Fascinantes, 2007; O Mestre dos Mestres, vol. 1, O Mestre da Sensibilidade, vol. 2, O Mestre da Vida, vol. 3, O Mestre do Amor, vol. 4, O Mestre Inesquecível, vol. 5 – todos de 2006; O Vendedor de Sonhos: O Chamado, 2008; O Vendedor de Senhos e A Revolução dos Anônimos, 2009; O Semeador de Ideias, 2009. De Gênio e Louco Todo Mundo Tem Um Pouco, 2009; O Código da Inteligência, 2008; O Código da Inteligência: Guia de Estudo, 2009; O Código da Inteligência e A Excelência Emocional, 2011; Ansiedade – Como Enfrentar o Mal do Século, 2013; Ansiedade – Como Enfrentar o Mal do Século, para Filhos e Alunos, 2015; Ansiedade – Autocontrole – Como Controlar o Estresse e Manter o Equilíbrio, 2016; Os Segredos do Pai-Nosso, 2007; A Sabedoria Nossa de Cada Dia: Os Segredos do Pai-Nosso, 2007; Petrus Logus – O Guardião do Tempo, 2014; Petrus Logus – Os Inimigos da Humanidade, 2016; O Homem Mais Inteligente da História, 2016; O Homem Mais Feliz da História, 2017; Amor e Sacrifício, 2018.

Uma querida amiga me emprestou este O Homem Mais Inteligente da História, de Augusto Cury. Conheço o autor superficialmente, de tanto ver seus livros expostos em gôndolas de livrarias e pela frequência dele entre os livros mais lidos do ano. É indiscutivelmente, um autor que tem seu público, respeito isso. Entretanto, provavelmente, se minha amiga não o tivesse emprestado, não o teria lido, por impulso próprio. Teria perdido, desta forma, uma boa oportunidade de conhecer Augusto Cury; normalmente, o autor é relacionado a livros de autoajuda e este não é, decididamente, um gênero que eu frequente. O Homem Mais Inteligente da História, lido sem qualquer tipo de preconceito, foi uma grata surpresa. Tanto assim, que estou considerando seriamente se compro um exemplar para releitura, seguido do volume dois, O Homem Mais Feliz da História e do volume três, Amor e Sacrifício. Estou pensando.

Augusto Jorge Cury nasceu em 02/10/1958, em Colina, São Paulo. Fez o curso de medicina pela Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, tem doutorado internacional em Administração de Empresas pela Florida Christian University (2013). Possui, ainda, título livre em psicanálise e dedicou-se à pesquisa sobre as dinâmicas da emoção. Conta também com pós-graduação pelo Centre Medical Marmottan, em Paris, e na PUC de São Paulo. É considerado o autor mais lido dos últimos dez anos no Brasil; recebeu o prêmio de melhor ficção do ano de 2009 da Academia Chinesa de Literatura, pelo livro O Vendedor de Sonhos, adaptado para o cinema em 2016, em produção brasileira dirigida por Jayme Monjardim.

Com a publicação de Inteligência Multifocal, em 1999, ele apresentou mais de trinta elementos essenciais para a formação da inteligência humana, como o processo de interpretação e fluxo vital da energia psíquica. Desenvolveu o projeto Escola da Inteligência, que tem como principal objetivo a formação de pensadores por meio de aprendizagem das funções intelectuais e emocionais mais importantes, como pensar antes de agir, proteger a emoção, colocar-se no lugar dos outros, expor e não impor as ideias.

O psiquiatra Marco Polo é famoso e respeitado; cientista especializado no funcionamento da mente e autor do primeiro programa mundial de gestão de emoção, participa de uma reunião na ONU. É desafiado a estudar a inteligência de ninguém menos que Jesus Cristo. O dificultador: Marco Polo é ateu.

Quando a plateia o instiga, ele decide abraçar o desafio, impondo a condição de fazerem uma abordagem à luz da ciência e não da religião. É seu mote: "quando a fé entra, a ciência sai". Mergulha fundo nos estudos sobre a mente e a personalidade de Jesus; parte para um debate com Michael, neurocientista, Dr. Alberto, teólogo católico, Dr. Thomas, teólogo protestante e Sofia, secretária de Marco Polo e moderadora do evento.

Partirão do estudo do Evangelho de Lucas, numa interessante composição interpretativa entre dois teólogos e dois ateus:
“Chegando ao local do evento, sentaram-se na última fileira como no dia anterior. Sofia respirou lentamente. Olhou para Marco Polo e o viu tenso. Havia 55 pessoas presentes. Logo reconheceram os preletores: o professor doutor Alberto Mullen, teólogo do Vaticano, tão respeitado que algumas pessoas torciam para que um dia ele fosse papa. O outro conferencista era Thomas Hilton, protestante, doutor em teologia por Harvard, escritor renomado.” (página 56)
A eles se juntará, a convite de Marco Polo, o neurocientista Dr. Michael Herman.

A proposta de análise de Marco Polo partirá de um conjunto de dez habilidades básicas de Jesus:
  1. Habilidades de gestão e emoção;
  2. Capacidade de filtrar estímulos estressantes;
  3. Competência para debelar focos de tensão e se reinventar no caos;
  4. Capacidade para libertar seu imaginário e desenvolver a criatividade;
  5. Resiliência e limiar para suportar frustrações;
  6. Prazer sustentável e capacidade de contemplar o belo;
  7. Capacidade de pensar antes de reagir e autocontrole;
  8. Capacidade de ser empático e de construir pontes interpessoais;
  9. Habilidade de formar pensadores e mentes brilhantes;
  10. Capacidade de ser autor da própria história e consciência crítica.

Em sua vida particular, entretanto, Marco Polo vive seus problemas. Sua esposa contrai uma doença rara, de difícil tratamento. Seu filho adolescente, Lucas, em decorrência de tais dificuldades, torna-se um usuário de drogas.

No plano mais geral da narrativa, o debate entre os quatro convidados começa; aos poucos, as análises de Marco Polo vão dando o tom, não de ateus contra religiosos, mas numa integração de pareceres que convergem para uma avaliação firmada sob a psicologia, sociologia e psicopedagogia.

A personalidade de Marco Polo se impõe, na condução do debate:
“Marco Polo era um pesquisador raro. Usava muito mais do que o método socrático para fomentar perguntas: usava a arte da dúvida como um bisturi para penetrar em camadas mais profundas dos textos que lia, para revivê-los, dissecar suas implicações e enxergar seus limites e alcances. Tudo isso para ver os fatos com a menor contaminação possível. Por isso não se poupava, questionava suas proposições a cada instante. Queria enxergar o mundo como ele é, não como gostaria que fosse.” (página 162)
As análises sobre Jesus vão, pouco a pouco, transformando não só a concepção comum sobre o Cristo, como também vão mexendo em suas vidas – do ponto de vista intelectual e emocional. Afinal, reverem o que sabem sobre o nazareno altera tanto a vida daquelas cinco pessoas diretamente envolvidas no debate, quanto as de milhares de outras, que acompanham os estudos via internet.

Uma pitada de suspense é acrescentada à narrativa: atentados começam a acontecer, no sentido de fazer aquela sequência de revisões sobre a figura intocável de Jesus cessarem:
“O tumulto foi grande, pessoas caíram umas por cima das outras. Pânico, choro, gritos por todos os lados. Marco Polo teve de proteger Sofia para ela não ser pisoteada. Felizmente ninguém se machucou. Mas, se não fosse pelo atraso, as consequências seriam terríveis. Não apenas os debatedores estariam mortos, mas muitos membros da plateia também.
A polícia especializada em ataques terroristas teve de revistar cada canto da universidade. Era a primeira vez que uma bomba explodia dentro da instituição. Os debatedores foram longamente interrogados. Sofia chorava apoiando-se no ombro de Marco Polo.” (página 250)
O Homem Mais Inteligente da História foi nitidamente concebido como primeiro elemento de uma série, pois termina, isto é, não termina, com a suspensão da narrativa em um enorme “gancho”, a ser retomado no segundo volume, O Homem Mais Feliz da História. Esta forma de compor uma série é diferente da de formatar as séries modernas: atualmente, mesmo fazendo parte de uma trilogia, cada volume tem o seu final, constituindo um volume independente.

Este livro é o que podemos chamar de roman à thèse:

« Le roman à thèse est une expression utilisée en littérature pour classer des romans dans lesquels la réflexion philosophique, politique, scientifique ou religieuse prime sur l'histoire. Ce sont des romans mettant en scène des personnages destinés à illustrer ou représenter des concepts ou des courants philosophiques. Il s'agit d'un genre didactique qui naît principalement au xviiie siècle, avec les Lumières, à travers des auteurs tels que Denis Diderot ou Voltaire. L’œuvre se veut réaliste, « fondée sur une esthétique du vraisemblable et de la représentation » (Wikipedia).

“Romance de tese é uma expressão utilizada em literatura para classificar os romances nos quais a reflexão filosófica, política, científica ou religiosa preponderam sobre a história. Estes são os romances que põem em cena personagens destinados a ilustrar ou representar os conceitos ou as correntes filosóficas. Trata-se de um gênero didático que nasce principalmente no século XVIII, com os iluministas, por meio de autores tais como Denis Diderot ou Voltaire. A obra se quer realista, “fundada sobre uma estética da verdade e da representação.” (tradução livre)

E, por conta desta característica de roman à thèse, temos alguns problemas neste O Homem Mais Inteligente da História, segundo minha leitura.

Alguns diálogos me pareceram terrivelmente artificiais, como por exemplo:
“Países ricos podem ter um povo com baixos níveis de felicidade e vice-versa. O que acham da tese da FIB?
— Fascinante – disse Sofia.
— Encantadora – assegurou o Dr. Thomas.
— Espetacular – confirmou o Dr. Alberto.
— Admirável – declarou Michael.” (página 260)
Durante o debate, contando com ateus e religiosos, mesmo em se tendo proposto que Jesus seria analisado sob a luz da ciência, tanto os ateus quanto os religiosos abrem mão, generosamente demais, de suas posições longa e densamente construídas diante da argumentação apresentada por Marco Polo. Que ele, ateu, tenha se convencido, após profundo estudo, é aceitável; não será, do meu ponto de vista, o aceite sem intensa contra argumentação dos outros, no calor do debate.

Outro ponto a discutir, sempre dentro da minha leitura, é que não temos propriamente personagens, mas sim tipos. Explico-me: a diferença entre personagens, propriamente ditos e os tais tipos, é que aqueles são mais densos, mais individualizados; já estes, são planos, sem densidade psicológica. Isso é normal acontecer num roman à thèse e é exatamente por isso que, em sentido amplo, esta classificação acaba por se contagiar de um sentido pejorativo. Enredo e construção de personagens perdem para a defesa de ideias ou ideais.

Você leitor esperto, já identificou no tamanho do drama avaliativo em que me meti com a leitura deste O Homem Mais Inteligente da História. Não demora, e você dispara:

E aí, gostou do livro?

A resposta parece vir de cima do muro: sim e não. Vou tentar colocar ordem na casa, sem saber se o convenço ou não.

Gostei, sim: a análise da inteligência de Jesus é muito interessante, traz para a discussão uma série de observações em que não pensáramos antes. As propostas são inteligentes, feitas com propriedade, por quem milita com o assunto.

Não, não gostei: como romance, do ponto de vista de um artefato literário, o livro sofre de alguns pontos mal realizados. Alguns, já abordei: personagens planos demais, parecem uns extensão dos outros; além do mais, as cenas ditas dramáticas não têm a carga de dramaticidade que deveriam ter; o enredo tem flutuações ao longo da história, com muitos altos e baixos.

Pela apresentação das ideias, pelas análises, eu compraria a trilogia toda – ou talvez preferisse os cinco volumes de não ficção, a caixa contendo os “Mestres” (aborda, à maneira de ensaio as teses de Cury) relacionada na bibliografia de Augusto Cury.

Difícil emitir uma opinião mais embasada sobre o autor, pois não li outros volumes ficcionais dele, tão lido e publicado no exterior. Parece que o melhor dos seus trabalhos é O Vendedor de Sonhos. Virou filme, que também não vi.

Enfim, se você é um leitor curioso como eu, que aceita ler alguma interpretação diferente da canônica sobre a figura sempre interessantíssima de Jesus Cristo, leia o livro. É o que tenho para hoje.