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sábado, 17 de novembro de 2018

Resenha nº 137 - A Conquista da Opinião Pública, de Patrick Charaudeau


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Título original: La Conquêt du Pouvoir : Opinion, Persuasion, Valeur
Título em português: A Conquista da Opinião Pública
Autor: Patick Charaudeau
Tradutor: Ângela M. S. Corrêa
Editora: Contexto
Copyright: 2016
ISBN: 978-85-7244-960-1
Gênero: Análise do Discurso (Político)
Bibliografia do autor (incompleta): Langage et discourse: élements de semiolinguistique, 1983; A Palavra Confiscada: um gênero televisivo, 1997; Grammaire du Sens et de l’expression, 1992; Discurso das Mídias, 1997; Dicionário de Análise do Discurso, 2002; Linguagem e Discurso: Modos de Oranização, 2008;  Discurso Político, 2008.

Motivado pelo recente processo eleitoral brasileiro, adquiri este A Conquista da Opinião Pública – Como o discurso manipula as escolhas políticas. A leitura de um livro acadêmico requer sempre um investimento em esforço intelectual; portanto, deverá ser uma leitura mais detida, reflexiva. Há que se entender conceitos, argumentações e o arcabouço teórico no qual tais reflexões se darão. Muita gente acha extremamente chato este tipo de leitura. Concordo, ele requer disciplina e nos prende ao campo sisudo da teorização metódica. Mas, nem por isso deverá ser chato. E, à medida que o lia, ia me encantando com a excelência do livro que tinha em mãos. Afinal, o livro pertence à minha área de formação e eu já contava com conhecimentos de Análise de Discurso – vertente francesa. Patrick Charaudeau é um especialista no assunto e criador mesmo desta tendência a que pertence o exemplar, a semiolinguística.

Patrick Charaudeau é um linguista francês, especialista em Análise de Discurso. Nasceu em 1939, contando hoje, portanto, com 79 anos de idade. É fundador da Teoria Semiolinguística de Análise de Discurso. É professor da Universidade Paris-Nord (Paris XIII). Junto com outro linguista de peso, Dominique Maingueneau, publicou o Dicionário de Análise de Discurso.

Mas, afinal de contas, o que é essa tal de Análise de Discurso, me indagará o leitor deste blogue. E aí está uma dificuldade, meu caro leitor. Não é intenção deste blogue tratar de assuntos acadêmicos, ainda mais da área linguística, vasta e desconhecida do grande público. Mas, este é um dos livros que li e, seguindo este contrato - resenhar livros que leio -, pensei em resenhá-lo. Vamos tentar, portanto, dar uma ideia desta importante teoria que hoje não se restringe mais aos estudantes de Letras e se derrama sobre as Ciências da Comunicação e as Ciências Políticas.

Segundo o próprio Dicionário de Análise do Discurso, no verbete próprio,
“análise do discurso [é uma] disciplina relativamente recente, que constitui o objeto deste dicionário. À análise do discurso podem-se atribuir definições as mais variadas: muito amplas, quando ela é considerada como equivalente de “estudos do discurso”, ou restritivas quando, distinguindo diversas disciplinas que toma o discurso como objeto, reserva-se essa etiqueta para uma delas.” (página 43, op.cit.)
Não adiantou muito, não é mesmo? Vamos ver se damos uma ideia melhor.

Análise do discurso é uma área dos estudos da linguagem que aborda o que se diz e o que se escreve do ponto de vista da mensagem que se quer passar, examinando o que foi dito, o que não está dito, mas compõe a intencionalidade do sujeito, levando em conta a cultura (contextualização) da produção do texto; estuda como esta mesma mensagem poderá ser recepcionada pelo ouvinte.

 Examina o discurso produzido pelas pessoas mais ou menos como um psicanalista examina o discurso do seu paciente, fazendo relações entre o que ele está dizendo, o que ele não quer dizer, mas cujos rastros o denunciam e até mesmo suas manipulações verbais.

O campo em que esta teoria é particularmente interessante é exatamente na interação entre uma ou mais pessoas e seu público. O discurso político se presta a este tipo de análise, porque o político, pelo próprio jogo sócio-discursivo, submete seu público a intencionalidades ocultas, no sentido de obter determinado resultado favorável a ele. Então, tentará não se expor demais, não dizer mesmo coisas que possam comprometer sua campanha:
“A questão do político – ou da política – é, ao mesmo tempo, simples e complexa. Simples, se for abordada pelo viés da opinião: trata-se de ser a favor ou contra um projeto de sociedade, a favor ou contra tal partido, a favor ou contra um determinado político (homem ou mulher). Se essa opinião for expressa num voto, na participação em uma manifestação, numa ação militante ou simplesmente durante uma discussão, a questão política se reduz à de uma tomada de posição mais ou menos argumentada.” (página 9)
Ora, concepção muito cara à análise do discurso é que quando nos comunicamos, o fazemos considerando determinado papel e dizemos o que esta instância social deve dizer. Se sou um professor no exercício da profissão, digo as coisas que devo dizer como profissional, uma vez que a sociedade (pais, alunos, outros profissionais) espera de mim exatamente isso. Já no exercício de pai, por exemplo, assumo outro discurso que me valide como pai.

Portanto, podemos deduzir disto duas coisas: primeiro, exerço vários papéis dentro de cenários sociais cambiantes; segundo, para cada um destes papéis tenho discursos diferentes. E mais, como nem sempre posso dizer tudo aquilo que em off penso, importa que todo discurso é uma manipulação do interlocutor.

Manipulação é uma palavra que ganhou sentido bastante pejorativo, como um meio de alguém enganar o outro. Não é esse sentido em que ela é usada aqui; para Aristóteles, manipulação era uma estratégia para se fazer o bem. Realmente, há coisas inadequadas para se dizer dentro de certo cenário social. Já pensou, leitor, se um presidente for para os meios de comunicação e, num rasgo de sincericídio, dizer abertamente: “meus caros eleitores, o Brasil está com a economia completamente quebrada”? Ao contrário, esconderá esta constatação e emitirá votos de confiança na recuperação econômica do país (e, se você for bom entendedor, constatará que sim, a própria emissão de votos de confiança na recuperação é evidenciação de que ela vai mal).

Patrick Charaudeau examina a questão da nossa identidade. Diz ele que
“A questão da nossa identidade, entre o individual e o coletivo, não é simples. Desejaríamos ser únicos, mas dependemos dos outros. Acreditamos ter uma opinião pessoal, mas logo percebemos que ela não é exclusivamente nossa. Em outros momentos queremos nos sentir em comunhão com os outros, mas, ao mesmo tempo, ao ver como funciona o grupo, temos medo de perder nossa singularidade. É uma ilusão acreditar que nossa identidade é única e homogênea. Somos, simultaneamente, o que não é o outro e o que ele é. E mesmo quando gostaríamos de nos ver como únicos, o olhar do outro se encarrega de nos enviar uma imagem de nós mesmos, um aspecto de nossa identidade que varia em função dos diferentes olhares que pousam sobre nós.” (páginas 23/24)
Todos nós manipulamos e somos manipulados. Pelo nosso discurso e pelo discurso do outro. A tal pretendida “transparência”, dentro da ótica da análise do discurso, não é possível. O jogo de esconde-mostra, do dito e do não dito, faz parte da atuação em sociedade. Muitas vezes, e você mesmo já deve ter notado isto em algum momento de sua vida, semiocultamos algo porque não queremos ferir a suscetibilidade de alguém, mas queremos passar a mensagem para outra pessoa, próxima. Nosso discurso sai ambíguo, mas com pistas para que a terceira pessoa, fora do diálogo, perceba o que quero dizer.

Para tornar o que digo um pouco mais claro, transcrevo um excelente trabalho de um dos humoristas mais inteligentes deste país, Millôr Fernandes:
A Vaguidão Específica

"As mulheres têm uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica."Richard Gehman

- Junto com as outras?
- Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia.
- Sim senhora. Olha, o homem está aí.
- Aquele de quando choveu?
- Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo.
- Que é que você disse a ele?
- Eu disse pra ele continuar.
- Ele já começou?
- Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse.
- É bom?
- Mais ou menos. O outro parece mais capaz.
- Você trouxe tudo pra cima?
- Não senhora, só trouxe as coisas. O resto não trouxe porque a senhora recomendou para deixar até a véspera.
- Mas traga, traga. Na ocasião nós descemos tudo de novo. É melhor, senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra noite.
- Está bem, vou ver como.
       - Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte.

Para além do humor evidente do texto, perceba como um diálogo pode ser fortemente obscuro, com os falantes alternando, a seu turno, falas cheias de “buracos de entendimento”. É a intimidade das pessoas, a interação entre sujeitos que se conhecem bastante, que completa o que falta, que preenche esses buracos.

Em toda democracia há um contrapoder. Temos o poder exercido pelos governantes, pelo poder constituído, mas sempre será necessário a estes representantes eleitos uma necessidade de não dizer mais do que será preciso, sob pena de fornecer lenha à fogueira:

“Não existe democracia sem contrapoder. Mas de onde vem o contrapoder? Ele não vem somente do que se chama de “oposição”. Num regime democrático, por não ser majoritária, seu peso fica enfraquecido. A oposição pode ter sempre uma certa influência, de cima para baixo, quando do trabalho das comissões parlamentares, ao votar ou não votar emendas às leis, e pelos comentários que pode fazer sobre ações do governo, comentários aos quais as mídias darão mais ou menos visibilidade. O contrapoder também, e talvez principalmente, o que vem da instância cidadã. Este é o lugar da opinião, que discute e é mandatária de representantes segundo um princípio de confiança.” (páginas 157/158)
Outro dia, vi um representante do futuro governo emitir o parecer que “as pesquisas não retratam a verdade, precisam de mudança de metodologia”. É parte do problema. As pesquisas têm validade relativa, elas apenas são um instantâneo, mostram uma fotografia de um momento. Basta que tal candidato pise na bola e diga algo que seu eleitorado não goste para, num momento pouco adiante, ele cair nas pesquisas. Além do mais, os institutos de opinião e pesquisa parecem, deliberadamente, não considerar que seus pesquisados podem mentir. E mentem: se a explicitação do voto ao candidato que se quer lhe trouxer problemas (candidato com alto índice de rejeição, por exemplo), o consultado ocultará sua verdadeira intenção de voto.

Para que você, caro leitor, não fique tristinho com tantas reflexões, incomodado com a ideia da manipulação, transcrevo um último trecho, para sua degustação (e possível vingancinha):
“A massa não constitui mais um amálgama homogêneo de indivíduos com opinião e comportamento únicos. A massa explodiu numa multiplicidade de grupos que tomaram consciência de sua existência, de seus direitos e, assim, de seu direito de reivindicar, e, fenômeno ainda mais recente, graças à cumplicidade das mídias, de seu poder de pressão junto à autoridade política. À medida que o nível de vida aumenta, que a educação se desenvolve e que o saber se expande, a consciência cidadã torna-se mais esclarecida, mas ao mesmo tempo mais complexa.” (página 168)
Excelente leitura, a deste A Conquista da Opinião Pública. Não é livro para andar na mão de leitores iniciantes, é certo. Mas sempre se poderá tirar algum proveito dele, mesmo em não se sendo da área de linguística. Pode-se não ter compreensão do alcance da teoria da análise do discurso; entretanto, para aqueles que gostam de ler textos argumentativos bem escritos, este é uma mão na roda para se inteirar melhor do que está em jogo nas campanhas, nos processos políticos postos a funcionar.

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