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quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Resenha nº 174 - O Céu da Meia-Noite, de Lily Brooks-Dalton






Título original: Good Morning, Midnight

Título em português: O Céu da Meia-Noite

Autora: Lily Brooks-Dalton

Tradutora: Ana Guadalupe

Editora: Morro Branco/TAG

Copyright: 2016

ISBN: 978-65-86015-10-2

Gênero literário: Romance (Ficção Científica)

Origem: Literatura americana


A experiência de ler O Céu da Meia-Noite é intensa. Já vou avisando, principalmente aos fãs da ficção científica: não esperem um livro convencional, dentro do costumeiro deste gênero literário. Por conta disto, muitos poderão não gostar dele; a própria autora, Lily Brooks-Dalton, declara ter um gosto pelos filmes sci-fi “diferentes”. Um de seus personagens cita A Mão Esquerda da Escuridão, de Úrsula K. Le Guin.

Antes, propriamente, de entrar nas considerações sobre o livro, talvez seja útil partir do que julgo ter sido o projeto narrativo da escritora. Pode-se depreendê-lo da história contada. Partindo-se do pressuposto de que um bom escritor deve ter tanto domínio quanto possível sobre a obra que escreve, não será tão difícil a tarefa.

Não é uma ficção científica de ação. Na verdade, o enredo não conta com viradas rocambolescas; ao contrário, quase não há surpresas emocionantes. Um romance assim aposta em outros elementos. De fato, este livro pertence às análises psicológicas de personagens. Carrega na revelação intimista. Tem ritmo lento, por este motivo.

Há dois núcleos narrativos: o primeiro, com o cientista Augustine, último representante da humanidade na Terra pós-apocalipse. Vive retirado numa estação de estudos no Círculo Ártico. O segundo núcleo nos dá a conhecer o que acontece a bordo da nave espacial Aether. Ela está voltando à Terra, após uma série de estudos nas luas de Júpiter.

O planejamento de O Céu da Meia-Noite propõe uma narrativa intimista, com já disse. Não há cargueiros espaciais, naves estelares em guerra, pirataria espacial ou coisas do gênero. A autora, de posse de uma pesquisa rigorosa e bem-montada, fala-nos da psique dos seres humanos. Transparece de maneira contundente a solidão dos personagens, a perda sofrida por todos eles, suas escolhas e suas consequências. Só por isto, caro leitor, você já perceberá tratar-se de uma obra fora dos padrões do gênero literário a que se filia.

A introdução marca, pela precisa descrição da paisagem, a solidão do primeiro personagem que aparece, o cientista Augustine:

“Quando o sol enfim retornou ao Círculo Ártico e manchou o céu cinza com riscos de um cor-de-rosa incandescente, Augustine estava lá fora, esperando. Ele não sentia a luz solar no rosto havia meses. O brilho róseo se derramou sobre o horizonte e se infiltrou no azul gélido da tundra, projetando sombras anil pela neve. A alvorada subiu como um muro de fogo implacável, o cor-de-rosa delicado ganhando a profundidade do laranja, consumindo as grossas camadas de nuvem uma a uma até que o céu inteiro começasse a arder. Ele se deixou banhar por aquele brilho suave, sentindo a pele formigar.

Não era comum que o céu ficasse encoberto assim durante a primavera. O local do observatório havia sido escolhido por seu tempo limpo, pela atmosfera polar fina e pela elevação da Cordilheira Ártica. Augie se afastou dos degraus de concreto e seguiu pela passagem entalhada na encosta íngreme da montanha – descendo até as instalações anexas que ficavam aglomeradas contra o declive da montanha, depois as ultrapassando.” (página 13)

Uma brancura total até onde a vista alcança, de qualquer ângulo que se veja. Augustine é um homem idoso, bastante turrão. Recusara deixar a Terra com a última leva de pessoas a abandonar o planeta. Sozinho com seus fantasmas, ficamos sabendo que ele fez a opção por uma carreira exitosa de cientista, abandonando a mulher que supostamente amava e deixando-lhe claro que não pretendia ser pai.

Isto não o impede de ter contato com Iris, uma menina que, por alguma forma, fora deixada na Terra e, por algum motivo misterioso até este ponto da narrativa, está escondida nas dependências do observatório. Ela não fala muito, mas depende dele e evidencia o extremo mal jeito dele com relações interpessoais. Augie se dedica ao trabalho e à tentativa de entrar em contato com outros seres humanos. A resposta aos seus sinais eletromagnéticos é sempre o silêncio. Mesmo os contatos com a nave espacial que se aproxima da Terra é difícil: os outros meios mais modernos estão obsoletos e o que lhe resta é o rádio.

E o rádio tem alcance limitado e, quando a Terra gira em sua órbita, interpondo-se entre o local em que Augie está e a nave, de nome Aether, as comunicações se emudecem e só resta estática e chiados.

A bordo da Aether estão Sully, Devi, Thebes, Ivanov, Harper e Tal. Retornam à Terra, após fazerem várias prospecções em Io, Ganimedes, Calisto e Europa – luas de Júpiter:

“O relógio de Sully mostrava 0700 GT – quatro horas à frente de Houston, quatro horas atrás de Moscou. O tempo não significa quase nada no espaço profundo, mas ela se obrigou a acordar mesmo assim. O regime que o Controle da Missão havia prescrito para a tripulação da nave espacial Aether era preciso e detalhado, e, embora o Controle não estivesse mais disponível para administrá-lo, os astronautas continuavam seguindo a maioria das recomendações. Sully levou a mão à única fotografia afixada à parede de estofado macio do compartimento em que dormia, um hábito, e se ajeitou, sentando-se na cama. Passando os dedos pelos cabelos escuros, que não eram cortados desde que a jornada começara, um ano atrás, ela começou a fazer uma trança, ainda pensando no sonho agradável que acabara de ter.” (página 35, capítulo dois)

Comum a todos estes personagens, tanto Augustine quanto a tripulação da nave, todos relatam perdas, escolhas difíceis e sofridas para assumirem suas carreiras; profissionais altamente especializados, perpassados por uma aguda solidão.

Na Terra, Augie, por escolha própria, resolvera ficar em seu posto; na Aether, mergulhada no frio e no vazio do espaço profundo, os seis tripulantes, também por escolha própria, optaram por uma viagem longa e monótona:

“Em seu tempo designado para a recreação, Sully e Harper geralmente jogavam baralho. Para ela, era cansativo sentir todo o peso de seu corpo depois de passar o dia inteiro flutuando na cabine de comunicações, mas era importante continuar aclimatada. Os efeitos da gravidade não eram de todo maus. As cartas ficavam sobre a mesa, a comida ficava no prato e o lápis, atrás de sua orelha, ela quase conseguia esquecer o vazio lá de fora, os milhões de bilhões de anos-luz de espaço inexplorado que os cercava. Quase conseguia fingir que estava novamente na Terra, a poucos passos do chão e das árvores e de um toldo azul de céu. Quase.” (página 46)

A consequência massacrante de lidar com o vazio, com a solidão escolhida ou autoimposta é a perda da própria identidade. A tese que, sutilmente, é defendida na narrativa é que nossas relações com os outros, em sociedade, nos ajuda a perceber quem somos. Em decorrência desta ideia, nossas percepções são construções coletivas. Percebo-me, porque percebo o outro. Construindo o outro, construo-me a mim mesmo, numa espécie de jogo de espelhos.

Em uma obra extremamente introspectiva, o narrador deste romance é impiedoso, arrancando de seus personagens analisados constatações sob camadas de proteção, como transparece nestas duas passagens abaixo.

Sobre Augustine:

“Observava naquelas mulheres emoções que ele mesmo nunca tinha sentido, testemunhando a dor que causara sem o mínimo lampejo de compaixão. Tentava se lembrar: será que havia amado sua mãe ou só a havia manipulado em nome do próprio conforto? Será que, mesmo naquela época, conduzia experimentos com ela para ver o que funcionava e o que não funcionava? Será que ele sempre tinha sido daquele jeito? O fato de essa possibilidade não chegar a perturbá-lo parecia tornar tudo ainda mais plausível.” (página 185)

Sobre Sully:

“Trabalhar era um alívio. Sully não queria fazer intervalos para não correr o risco de perder a concentração absoluta em que vinha mantendo seu pensamento confinado, mas estava tão exausta que a atenção lhe escapara. Thebes tinha trabalhado a seu lado na cabine de comunicações por boa parte da manhã. Eles não tinham falado nada sobre a caminhada espacial – não tinham falado sobre nada, que não fosse a tarefa daquele momento.” (página 216)

Algo que muitos leitores não gostaram neste romance é que a autora, em momento algum, nos informa, nem por uma tênue pista, sobre o que teria acontecido ao planeta Terra. Todos se evadiram dele, mas nem os tripulantes da Aether têm qualquer informação sobre o que teria acontecido.

Não sigo a ideia de que esta é uma falha da narrativa. Em duas passagens, a autora deixa claro ter sido esta uma opção sua, fazendo seus personagens terem apenas suspeitas, desenvolvendo raciocínios especulativos:

“— Melhor do que eu esperava. Esses postos de pesquisa têm um estoque impressionante. Não sei se foi guerra nuclear ou química ou sabe-se lá o quê, mas os efeitos aqui nesta região são imperceptíveis. A vida selvagem continua saudável, nenhum sinal de radiação. Câmbio.” (página 248)

“— Queria estar brincando – desse ele. – Pensem nisso. Se esse cara está tentando fazer contato por todo esse tempo e não conseguiu ouvir nadinha até agora... Sei lá, se alguma catástrofe aconteceu, quais seriam os lugares mais seguros... os lugares com menos radiação? Seriam os polos. Pois é. Exatamente onde ele está. É possível que ele seja a última pessoa viva.” (página 254)

Outro ponto anotado por alguns leitores, como defeito, os personagens não são revoltados contra o que os prende. São sem arrependimentos por suas opções que, afinal, se revelam complicadas. Nenhum deles tenta mudar nada, impondo mudanças. Mas aí é que está: não seremos, na maioria, como eles? Gastamos nossas vidas em trabalhos que não nos retornam satisfação, fazemos coisas de que não gostamos. Daí, talvez, nosso incômodo com personagens que não reagem.

O Céu da Meia-Noite é uma narrativa que me incomodou. Talvez, com a sensibilidade algo à flor da pele por conta de um longo período de quarentena, nesta pandemia de Coronavírus, uma imersão num livro sobre solidão tenha me afetado mais do que o previsto.

Uma ficção científica “diferentona”, tem vários pontos de contato com 2001 – Uma Odisseia no Espaço, ou mesmo Contato, baseado no livro de Carl Sagan. Aliás, isto é dito com todas as palavras na entrevista da autora, na revista da TAG.

Uma experiência leitora deve valer a pena, de alguma forma. Esta valeu. Certamente, não é uma obra perfeita. Em várias passagens, apesar de estar consciente de ser proposta da autora, achei o ritmo narrativo um pouco lento. A trama também poderia ter sido melhor trabalhada; não há surpresas. Mesmo a revelação final – calma aí com o spoiler! – não é surpresa. Quem tem costume de ler não se surpreende. O maior valor da obra é propor-se a ser uma ficção científica diferente.

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Resenha nº 173 - Notas para uma definição do leitor ideal, de Alberto Manguel

 

 




Título: Notas Para Uma Definição Do Leitor Ideal

Autor: Alberto Manguel

Tradutores: Rubia Goldoni e Sérgio Molina

Editora: SESC

Copyright: 2020

ISBN: 978-65-86111-19-4

Gênero: Ensaios


 

Este é o terceiro livro de Alberto Manguel que resenho neste blogue. Os anteriores são: A Biblioteca à noite e O leitor como metáfora. O leitor poderá até me questionar por que, aparentemente, gosto tanto deste autor, não sendo ele um ficcionista. Não espero que minha resposta o convença, meu caro amigo.

Alberto Manguel diz coisas muito pertinentes, este o meu primeiro motivo. Ele fala sobre livros e leitura com bastante amplitude de visão, este o meu segundo. E, se houver necessidade de um terceiro, Manguel escreve muito, muito bem; sempre aprendo alguma coisa com ele.

Isto posto, vamos ao livro. É um conjunto de ensaios sobre livros – reunião de ensaios proferidos em tempos e circunstâncias diferentes. De um tempo para cá, quando vou fazendo minha leitura, com o hábito definitivamente estabelecido de resenhá-la, vou colando post-its contendo várias observações. Não gosto de rabiscar meus livros, nem mesmo com lápis. Por si só, isto já evidencia meu apreço pelo objeto livro. Dou-me ao luxo de fazer anotações a caneta, sem estragar os livros.

No presente caso, vou optar por transcrever várias destas passagens interessantes da obra. Alberto Manguel foi leitor de um ícone da ficção, Jorge Luís Borges. Foi diretor da Biblioteca Nacional da Argentina.

Sem mais delongas, comecemos, pois.

“É verdade: num desconcertante jogo de espelhos, todas as palavras utilizadas para definir uma determinada palavra num dicionário qualquer devem, elas mesmas, estar definidas nesse mesmo dicionário. Se somos, conforme acredito, a língua que falamos, os dicionários são nossas biografias.” (Elogio ao dicionário, página 33)

“Desde o tempo de Gilgamesh, os escritores sempre se queixaram da mesquinharia dos leitores e da avareza dos editores. E no entanto, todo escritor encontra, ao longo de sua carreira, alguns notáveis leitores e alguns generosos editores. ‘Vendi sete exemplares’, diz o protagonista de Nightmare Abbey, de Thomas Love Peacock. ‘Sete é um número místico, e o augúrio é excelente. Se eu encontrar os sete leitores que compraram meus sete exemplares, serão como sete candelabros de ouro com que iluminarei o mundo inteiro.” (Autor, editor, leitor, página 39)

“Se a encadernação artesanal, ainda hoje, dá a um livro uma identidade única e particular, as capas impressas, sobretudo a partir do século XIX, passam a ilusão de uma uniformidade democrática. Curiosamente, porém, essa mesma uniformidade pode dar a um livro uma nova vida. Com outra capa, com outro design, certo texto torna-se original.” (Breve história das capas, página 43)

“Até que, em 1566, Aldo Manuzio, o jovem neto do grande impressor veneziano a quem devemos a invenção do livro de bolso, definiu o ponto no seu manual da pontuação, o Interpugendi ratio. Com seu latim claro e inequívoco, Manuzio descreveu pela primeira vez seu papel e aspecto definitivo. Pensava preparar um manual para tipógrafos, não tinha como saber que estava legando a nós, futuros leitores, os dons do sentido e da música para toda a literatura posterior: Hemingway e seus staccati, Becket e seus recitativos, Proust e seus longos sostenuti.” (O ponto, página 46)

“Todo leitor se reflete em suas leituras de duas maneiras. Primeiro, porque a escolha dos títulos e a ordem em que se encontram revelam a lógica e a estética do leitor; segundo, porque as páginas obviamente lidas, marcadas com sinais e observações, apontam trechos em que esse leitor sentiu sua própria voz, suas próprias alegrias e temores, descobertos e traduzidos por palavras.” (Censura e sociedade, página 49)

“A sociedade de consumo não tolera os leitores, os verdadeiros leitores; quer apenas leitores diletantes, consumidores da papinha de bebê, pessoas convencidas de que não são suficientemente inteligentes para ler a chamada literatura séria. Essa é outra forma de censurar os livros: fazer-nos acreditar que não os merecemos.” (Censura e sociedade, página 50)

“Todo leitor, em geral, quando criança, faz uma descoberta fundamental: que o lobo que ameaça Chapeuzinho é e, ao mesmo tempo, não é um animal feroz e real, que Chapeuzinho é e, ao mesmo tempo, não é o próprio leitor que segue pela página, que o lenhador que resgata a menina é e, ao mesmo tempo, não é uma promessa de redenção. Esse entendimento duplo do mundo, essa descoberta de que a inteligência e a imaginação de cada um de nós são os instrumentos mais preciosos para desentranhar o mundo que nos rodeia, essa revelação que nos é dada através de palavras que narram uma história inventada, mas que sabemos nossa, concreta e verdadeira, isso é algo que só os livros, magicamente, podem nos dar.” (Censura e sociedade, página 55)

“A saga do boneco é a da educação de um cidadão, o velho paradoxo da pessoa que quer ser aceita na sociedade normal enquanto, ao mesmo tempo, tenta descobrir quem ela é na verdade, não como parece aos olhos dos outros, mas aos seus próprios. Pinóquio quer ser um menino de verdade, mas não um menino qualquer, não uma versão obediente e em miniatura do cidadão ideal. Pinóquio quer ser o que ele é por baixo da madeira pintada.” (Como Pinóquio aprendeu a ler, página 58)

“A linguagem pode permitir ao falante permanecer na superfície do pensamento, repetindo lemas dogmáticos e lugares-comuns em branco e preto, transmitindo mensagens em vez de significados, pondo o peso epistemológico no ouvinte (como na frase “você sabe do que estou falando”). Ou pode ajudá-lo a recriar uma experiência, dar forma a uma ideia, explorar profundamente, e não apenas na superfície, a intuição de uma revelação.” (Como Pinóquio aprendeu a ler, página 61)

“Há um feroz paradoxo no seio de todo sistema escolar. Uma sociedade deve transmitir a seus cidadãos o conhecimento dos códigos que a regem, de modo que todos possam participar ativamente dela; mas o conhecimento desses códigos, além da mera capacidade de decifrar um slogan político, um anúncio publicitário ou um manual de instruções, permite a esses mesmos cidadãos questionarem a sociedade, exporem seus males e buscarem uma mudança.” (Como Pinóquio aprendeu a ler, página 65)

“É notoriamente sabido que Cervantes afirma que sua invenção é uma tentativa de acabar com as tolices difundidas pelos livros de cavalaria, histórias, diz ele, “fingidas e desatinadas”. Não sabemos se ele atingiu esse declarado propósito: afinal, o que são Batman e o Homem-Aranha senão êmulos do Cavaleiro da Ardente Espada e de Florismarte de Hircânia? O que sabemos, sim, é que sua criação superou essa tentativa moralizante e escapou dela, o que faz de D. Quixote muito mais que uma paródia de má literatura.” (A leitura como ato fundador, página 72)

“A tarefa infinita do leitor, que é percorrer a biblioteca universal em busca de um texto que o defina e subvertê-lo, multiplica-se (se é que o infinito pode se multiplicar) quando esse leitor assume sua condição de tradutor. Então todo texto resgatado da página se desdobra numa miríade de outros, transformados nos vocabulários desse leitor, redefinidos em outros contextos, outras experiências, outras memórias ordenadas em outras estantes.” (A outra escrita, página 78)

“O reverso do mito de Babel é o reconhecimento de que viver juntos implica utilizar a linguagem para conviver, já que é uma função que exige tanto a consciência de si mesmo como a consciência do outro, entender que há um eu que transmite a informação a um tu para dizer “Este sou eu, é assim que eu te vejo, estas são as normas e os acordos que nos mantêm unidos através do espaço e acima do tempo.” (A construção da torre de Babel, página 154)

“Há três tipos de leitores: primeiro, o que desfruta sem julgar; terceiro, o que julga sem desfrutar, entre os dois, o que julga enquanto desfruta e desfruta enquanto julga. Esse último tipo recria a obra de arte de forma nova e verdadeira; não forma um grupo numeroso." (Goethe, em carta a Johann Friedrich Rochlitz, páginas 165/166)

Alberto Manguel é, ele mesmo, meu modelo de leitor. Consegue tirar ilações usando a obra que tem em mãos, a um tempo, extrapolando-a e respeitando-a. Afinal, como nos dizia outro autor sensacional, o semiólogo Umberto Eco, o bom leitor respeita os limites do texto. Em outras palavras, não serve qualquer construção de raciocínio interpretativo, mas sim aquele que guarda o princípio de coerência.

Complexa questão que vai muito além do que propunham os formalistas russos, para quem a interpretação deveria estar estritamente orientada pela forma. Há o contexto. Entretanto, magicamente, o bom leitor articula conhecimentos contextualizados, autorizados pelo texto que lê.

Para quem considera as complexidades do fenômeno da leitura, este Notas para uma definição do leitor ideal, de Alberto Manguel, é mais uma pérola de reflexão sobre o ato de ler.