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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Resenha nº 69 - Sapiens - Uma Breve História da Humanidade

Resultado de imagem para livro sapiens uma breve história da humanidadeNo tocante à biografia, vamos deixar falar a orelha do livro: “Yuval Noah Harari é doutor em história pela Universidade de Oxford, especializado em história mundial e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém. Sua linha de pesquisa gira em torno de questões abrangentes, tais como: qual a relação entre história e biologia? Existe justiça na história? As pessoas se tornam mais felizes com o passar do tempo?

Sapiens – uma breve história da humanidade foi lançado originalmente em Israel, em 2011, e logo se tornou um best-seller internacional, sendo publicado em quase quarenta países. Milhares de pessoas fizeram o curso on-line do professor Harari sobre a história da humanidade, e suas palestras no YouTube tiveram centenas de milhares de visualizações em todo o mundo. Em 2012, ele recebeu o Prêmio Polonsky por Criatividade e Originalidade nas Disciplinas Humanísticas.”

Esta não é uma obra de ficção e, por esse motivo, um livro difícil de ser lido, na concepção de um grande público não afeito a trabalhos dissertativos de grande fôlego. Note-se, também, que ele não é exatamente um texto acadêmico característico, usando todo um aparato técnico-conceitual, no qual o autor se preocupa quase que exclusivamente em provar suas teses, demonstrar raciocínios, levantar hipóteses e tirar conclusões. Filia-se ao conceito algo vago de “divulgação científica”, a caracterizar uma obra que, sem perder seu foco dissertativo, “doma” os termos técnicos, é parcimoniosa no uso de gráficos e fórmulas matemáticas e se direciona ao público leigo.

Harari produz um trabalho exemplar. Não é à-toa o seu sucesso de crítica e de público – a L&PM, editora do livro, faz questão de destacar sobre a capa branca da obra uma tarja vermelho-cheguei com os dizeres “Best-seller Internacional”, em letras garrafais. Como um texto que tinha tudo para ser árido, como se depreende do subtítulo “uma breve história da humanidade” pode ter se tornado um êxito editorial junto ao público? Veremos o porquê mais tarde.

O fato é que Yuval Noah Harari é originalíssimo em sua tese central e igualmente nos argumentos que levanta para defendê-la. Sapiens – uma breve história da humanidade é muito bem escrito, bem articulado; de acordo com The Times, “Harari sabe escrever [...] de verdade, com gosto, clareza, elegância e um olhar clínico para a metáfora.”

Responda rápido, amigo leitor, qual é o único lugar onde os conteúdos (disciplinas) são tratados de modo estanque? Resposta imediata: na escola! Em qualquer outra situação, nossos conhecimentos de geografia, biologia, história, língua – vários conteúdos, portanto –, são requisitados no processo de leitura. Uns conteúdos mais, outros menos, mas serão sempre vários. E aí está o primeiro trunfo do livro: o professor Yuval consegue articular uma massa de conteúdos, harmoniosamente interligados. Tanto assim que é tarefa quase impossível a classificação do livro. É uma obra de história? Biologia? Articula conhecimentos de linguística, de geografia, antropologia, sociologia.

Sua tese central: o homem conseguiu sua supremacia incontestável sobre qualquer outra espécie nesse planeta devido à sua capacidade de criar e compartilhar mitos. Ou seja, sua capacidade de criar ficção. E é aí que, literalmente, o bicho pega!

O autor divide a história da humanidade em algumas etapas que, para ele, foram decisivas: A Revolução Cognitiva, A Revolução Agrícola, A Unificação da Humanidade, A Revolução Científica. Nas páginas 7/8 há uma cronologia, uma planta baixa de todo o trabalho de Harari.

Surge o homo sapiens sobre a face do planeta, mas a primeira grande etapa, ocorrida há uns 70 mil anos, é a Revolução Cognitiva. O nascimento da linguagem ficcional modifica tudo. O Homem passa a contar com a possibilidade de narrar histórias, criar ficção, relacionar-se com seus deuses, obter conhecimento e falar sobre suas experiências; os homo sapiens se espalham a partir do continente africano. Aqui, essa nova humanidade, mais inteligente em relação aos existentes e mais atrasados neandertais, ainda é composta de caçadores-coletores. Isto é, vivem do que conseguem obter em termos de caça e coleta de vegetais. São nômades, ainda não formam propriamente uma sociedade. Logo suplantam por completo os neandertais.

Há aproximadamente 12 mil anos, aqueles caçadores-coletores passam por outra etapa decisiva em sua história: a Revolução Agrícola. Aqui, já os encontramos em assentamentos permanentes, com a domesticação de animais e de plantas. Acontece a invenção do dinheiro, dos impérios, das grandes religiões.

A Revolução Industrial data de 200 anos. Por toda a parte, e cada vez mais, as máquinas criadas pelo homem fazem o trabalho que era deles. A família e a comunidade se enfraquecem e são substituídas pelo poder do Estado e do mercado. Há extinção em massa de plantas e animais. Os humanos transcendem os limites do planeta Terra, as armas nucleares se tornam uma ameaça efetiva à sobrevivência da humanidade. Os organismos são moldados não mais pela chamada seleção natural, mas pela interferência do homem (design inteligente).

Essa massiva supremacia do Homem começou, como dito, lá atrás, na Revolução Cognitiva. Ao ser capaz de criar mitos e de propagá-los, modificou o modo de ver o mundo. Somos o único animal que acredita em coisas que não existem, construtos abstratos, como nação, povo, dinheiro, benefícios previdenciários, e Harari não hesita em apontar, também as religiões como coisas pertencentes ao domínio da abstração.

Nossa linguagem – um número infinito de sons – é extremamente versátil:

“Um macaco-verde pode gritar para seus camaradas: “Cuidado! Um leão!”, mas um humano moderno pode dizer aos amigos que esta manhã, perto da curva do rio, ele viu um leão atrás de um rebanho de bisões. Pode então descrever a localização exata, incluindo os diferentes caminhos que levam à área em questão. Com essas informações, os membros do seu bando podem pensar juntos e discutir se devem se aproximar do rio, expulsar o leão e caçar bisões.” (página 31)

A partilha dos mitos levou os humanos à cooperação e, consequentemente, ao crescimento de suas realizações:

“Toda cooperação humana em grande escala – seja um Estado moderno, uma igreja medieval, uma cidade antiga ou uma tribo arcaica – se baseia em mitos partilhados que só existem na imaginação coletiva das pessoas. As igrejas se baseiam em mitos religiosos partilhados. Dois católicos que nunca se conheceram podem, no entanto, lutar juntos em uma cruzada ou levantar fundos para construir um hospital porque ambos acreditam que Deus encarnou em um corpo humano e foi crucificado para redimir nossos pecados. Os Estados se baseiam em mitos nacionais partilhados. Dois sérvios que nunca se conheceram podem arriscar a vida para salvar um ao outro porque ambos acreditam na existência da nação sérvia, da terra natal sérvia e da bandeira sérvia. Sistemas judiciais se baseiam em mitos jurídicos partilhados. Dois advogados que nunca se conheceram podem unir esforços para defender um completo estranho porque acreditam na existência de leis, justiça e direitos humanos – e no dinheiro dos honorários.” (página 36)

Harari afirma, a certa altura do texto, que as guerras de grandes proporções não têm como acontecer no mundo de hoje, não porque as pessoas tenham se tornado melhores, mas porque tais conflitos não seriam rentáveis. Além do mais, os “tesouros” a conquistar migraram do natural (petróleo, ouro, por exemplo) para o mítico/intelectual (a informação, as pesquisas, o conhecimento). Outra razão, sempre de acordo com Yuval, é que os países, ao se tornarem globalizados, também se tornaram interdependentes e ninguém, efetivamente, lucraria com uma guerra de proporções planetárias – porque todos sairiam perdendo. Além do mais, o arsenal nuclear, cujo poder destrutivo faria desaparecer o planeta, construiu uma “pax atômica”, que refreia qualquer anseio de dominação por meio de armas.

Respondamos agora à questão: por que Sapiens – uma breve história da humanidade se tornou um best-seller, apesar do assunto pretensamente árido? Yuval Harari escreve com absoluto domínio textual. Um trabalho dissertativo, mesmo aqueles mais palatáveis ao gosto do grande público, não deixa de ter alguma aridez. Mas este é um trabalho que se enquadra bem nesses tempos do pós-moderno: é um texto de características híbridas, pois combina o rigor da exposição e da argumentação tipicamente dissertativas com sarcasmos, piadas, brincadeiras semânticas tipicamente narrativas. Vejamos algumas passagens.

A presença do sarcasmo se evidencia:

“Contudo, o profeta Mani não fez qualquer tentativa de oferecer uma fórmula matemática que pudesse ser usada para prever escolhas humanas por meio da quantificação da força respectiva dessas duas forças. Ele nunca calculou que “a força atuando sobre um homem é igual à aceleração de seu espírito dividida pela massa de seu corpo.” (página 265)

Um tipo de deslocamento semântico, como os usados pelo nosso Machado de Assis pode soar estranho num trabalho dissertativo:

“Truman decidiu usar a nova bomba. Duas semanas e duas bombas atômicas depois, o Japão se rendeu incondicionalmente, e a guerra chegou ao fim.” (página 272)

Por deslocamento semântico entende-se essa aproximação, dentro de uma mesma frase, de duas categorias de palavras diferentes, numa mesma função sintática “semanas” e “bombas atômicas”, uma circunstância e um substantivo, onde seria de se esperar uma circunstância (de tempo) seguida de outra circunstância (de tempo).

Uma piada, insolitamente, vai aparecer lá na página 294, incluída por Harari:

“Em 20 de julho de 1969, Neil Armstrong e Buzz Aldrin aterrissaram na superfície da Lua. Nos meses que antecederam sua expedição, os astronautas da Apollo 11 treinaram em um deserto remoto similar ao da Lua, no oeste dos Estados Unidos. A área é o lar de várias comunidades indígenas, e existe uma história – ou lenda – descrevendo um encontro entre os astronautas e um dos habitantes locais.
Um dia, enquanto estavam treinando, os astronautas se depararam com um velho índio. O homem lhes perguntou o que eles estavam fazendo. Eles responderam que eram parte de uma expedição de pesquisa que em breve viajaria para explorar a Lua. Quando o velho escutou isso, ficou em silêncio por alguns instantes e então perguntou aos astronautas se eles poderiam lhe fazer um favor.
— O que você quer? –, eles perguntaram.
— Bem – disse o velho –, as pessoas da minha tribo acreditam que a Lua é habitada por espíritos sagrados. Eu estava pensando se vocês poderiam transmitir a eles uma mensagem importante do meu povo.
— Qual mensagem? – perguntaram os astronautas.
O homem proferiu algo em sua língua tribal e então pediu que os astronautas repetissem de novo e de novo, até memorizarem corretamente.
— O que significa? – os astronautas perguntaram.
— Ah, não posso lhes dizer. É um segredo que só a nossa tribo e os espíritos da Lua podem saber.
Quando voltaram à base, os astronautas procuraram e procuraram até que encontraram alguém que sabia falar a língua tribal e lhe pediram para traduzir a mensagem secreta. Quando repetiram o que haviam memorizado, o tradutor começou a gargalhar. Quando se acalmou, os astronautas perguntaram o que significava. O homem explicou que a frase que eles haviam memorizado com tanto cuidado queria dizer: “Não acredite em uma única palavra do que essas pessoas estão lhe dizendo. Eles vieram roubar suas terras”.

As 462 páginas deste livro englobam, ainda, um índice remissivo, notas relativas a vários trechos dos capítulos e uma sólida bibliografia acadêmica.

Se você é um fiel de qualquer religião, pode se sentir incomodado com o tratamento que Yuval Noah Harari dá às religiões de um modo geral, à católica de um modo restrito, caracterizando-as como mera imaginação coletiva. Lembre-se, entretanto, por mais que Sapiens – uma breve história da humanidade seja um texto leve, gostoso de ler, é um trabalho acadêmico. Ciência e religião são como óleo e água – não costumam se misturar. Dê o desconto devido; se lhe aprouver, relaxe e aproveite. Esse livro muda a maneira ingênua como vemos o mundo e os seres de carbono que vemos neles, nossos pares.

HARARI, Yuval Noah. Sapiens – uma breve história da humanidade. Editora L&PM. Rio Grande do Sul, RS: 2012


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