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domingo, 19 de dezembro de 2021

Resenha Nº 178 - Todos Nós Adorávamos Caubóis, de Carol Bensimon

 

                                                       
 Título original: Todos Nós Adorávamos Caubóis

Autora: Carol Bensimon

Edição: TAG/Companhia das Letras

Copyright: 2013

ISBN: 978-85-359-3245-4

Gênero literário: Romance

Origem: literatura brasileira

 


 



Carol Bensimon é natural de Porto Alegre, Rio Grande do Sul e aí nasceu, em 1982. Ingressou no curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2000 e o concluiu em 2005. Tem textos publicados em várias revistas, tais como Piauí, Galileu, Superintessante, Bravo!; nos jornais, suas publicações saíram em O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha de São Paulo, Zero Hora.

Ela é também tradutora, mas é como escritora que seu trabalho é mais conhecido. Carol publicou Pó de parede, 2008; Sinuca embaixo d’água, 2009; Todos nós adorávamos caubóis, 2013; Uma estranha na cidade, 2015; O clube dos jardineiros de fumaça, 2017. A maioria destas obras está traduzida para outras línguas.

Na introdução deste Todos nós adorávamos caubóis, a crítica literária e professora Noemi Jaffe (resenhei o livro de Noemi Jaffe, O que ela sussurra, aqui, no blogue) propõe que este trabalho de Carol se insere, a um só tempo, como um Bildungsroman e uma road novel. Expliquemos.

Bildungsroman é a designação em alemão que se dá ao chamado romance de formação. É uma narrativa que acompanha, pormenorizadamente, a trajetória de um personagem, desde muito cedo (por exemplo, desde a sua infância) até a idade adulta ou velhice. São, no mais das vezes, personagens comuns, sem heroísmos ou genialidade. De certa forma, estas obras bebem nas águas da biografia romanceada. O termo usado vem em alemão porque a obra inauguradora desta forma de compor narrativas é Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, do consagrado autor germânico Johann Wolfgang von Goethe.

Entre os romances de formação podemos citar, até para leitores interessados em explorar tal característica: O apanhador no campo de centeio, de Salinger; Demian, de Herman Hesse; As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain; Norwegian Wood, de Haruki Murakami; David Copperfield, de Charles Dickens.

Já uma road novel é outra forma de narrar, o enredo acontece enquanto o protagonista se desloca em viagem. O efeito criado é o de que não haja preocupação do autor com qualquer planejamento para um enredo; que os fatos vão sendo relacionados enquanto o personagem viaja. Claro, é só um efeito. As road novels (literalmente, romances de estrada) marcaram a literatura americana. Como exemplos, temos o On the road (Pé na estrada), de Jack Kerouac; A estrada, de Cormac McCarthy; The price of salt, de Patricia Highsmith.

O encaixe em uma road novel já se anuncia no parágrafo de abertura do livro de Bensimon:

“Tudo o que fizemos foi tomar a BR-116, passando sob pontes com slogans de cidade que não tínhamos a mínima intenção de visitar, ou que falavam na volta de Cristo e na contagem para o fim do mundo. Deixamos para trás as ruas suburbanas cujo início é marcado pela rodovia, que depois vão se perder em um parque industrial e nos casebres jogados em volta de um arroio, onde os cachorros vadios se arrastam e quase nunca latem, e seguimos, seguimos até a reta virar curva. Eu dirigia. Julia estava com os pés sobre o painel. Eu raramente podia olhar para ela. Quando ela não sabia a letra das músicas, cantarolava. ‘Tu mudou o cabelo’, eu disse, olhando de relance para a franja dela. Julia respondeu: ‘Há mais ou menos dois anos, Cora’. Nós rimos enquanto subíamos a serra. Isso foi o começo da nossa viagem.” (página 13)

Cora e Júlia, então, são as duas mulheres ao redor das quais todo o enredo é construído. Cora é um tanto urbana, tendo já passado por Paris, de onde vem para conhecer seu meio-irmão, filho do segundo casamento do pai. Nega-se a este compromisso; ao chegar, inicia sua viagem sem fim determinado.

Júlia é o contraponto, um tanto interiorana, embora haja morado em Montreal, Canadá. Ela e Cora tiveram um caso, no passado, mas tal fato é considerado por Júlia como uma fase, um momento. Reencontram-se agora, nesta viagem sem destino. A relação das duas é claramente lésbica, mas a sexualidade de Cora é fluida.

Cora é a narradora do romance; nossa avaliação de Júlia, as reflexões sobre a vida, as relações, são as mesmas de Cora, pois o olhar do leitor é conduzido pela protagonista:

“Entre os dezoito e os vinte e um anos, acho que a gente tinha planejado a famosa viagem sem planejamento uma centena de vezes. E quando uma coisa dessas se repete tanto assim, com suas variações mínimas, é natural que se compacte tudo em uma única memória poderosa, cujo cenário é determinado de modo aleatório – basta ter acontecido uma única vez no lugar em questão –, enquanto sua carga dramática vem da soma de todas as noites que acabam nos levando à ideia da viagem, mais o número de anos que nos separam daquelas noites.” (página 24)

E Cora nos informa sua interpretação sobre Júlia:

“Parece que a desvantagem de crescer no interior é que todo mundo pode estar conversando sobre você ou sobre seus pais em todas as salas de jantar iluminadas em um raio de três quilômetros. Por isso o melhor é não dar munição para o falatório, ou ao menos era o que Julia dizia quando eu perguntava sobre como tinha sido passar a adolescência inteira em um lugar daquele tamanho. Eu estava interessada nos desvios, uma pessoa entediada acaba fazendo coisas estúpidas, essa era minha crença e talvez meu estilo de vida, mas aparentemente não havia desvio algum, uma vida regular com uma família regular, a mãe uma das últimas donas de casa de que eu teria notícia, o pai media a ascensão social pelo tamanho da garagem, o irmão cuja futura esposa não por acaso havia sido sua única namorada.” (páginas 29/30

Este desconforto, esta insegurança em relação ao que procurar acompanha Cora. Mas, ao viver intensamente esta busca, ela termina por alcançar, durante o livro, a maturidade.

No processo de autodescoberta, Cora reflete sobre a própria sexualidade, aliás, um dos componentes importantes sobre, afinal, quem ou o quê somos:

“Sim, eu me sentia atraída por garotas. Tecnicamente, eu era bissexual. Minha linha do tempo teria todos os indícios.” (página 51)

“Mas eu disse bissexual. Garotas e alguns garotos. Ou, para ser mais exata: Garota. Garota. Garota. Garoto. Garota. Garota. Garoto. E daí seguindo usualmente essa proporção. Com os garotos, eu ficava por inércia. Com as garotas, por encantamento. Com os garotos, tudo transcorria como em um roteiro de comédia romântica para grande público (salvo que eu estava justamente fingindo o papel que me cabia). Com as garotas, tudo começava, continuava e acabava no mais puro melodrama.” (página 52)

“Mas quando você gosta de pessoas do mesmo sexo, continuei, a relação pode ficar realmente confusa, quero dizer, os sinais, os sinais são mais óbvios entre um homem e uma mulher, certo? Como flertar com sua melhor amiga e se fazer entender? “Isso é um problema universal, Cora”, disse Jean-Marc com um sorriso, enquanto pegava um elástico no bolso.” (página 84)

As observações de Cora sobre o que a cerca são, muitas vezes, escritas com humor, que não chega a ser negro ou desesperançado. É o que se depreende do trecho abaixo:

“Quando Jaqueline apareceu na vida do meu pai, eu demorei a me dar conta de que ela era o que ele estava procurando sem tirar nem pôr, em resumo, burra e jovem, pois naquela época eu estava muito ocupada sendo exatamente burra e jovem, eu apostava em qualquer cavalo manco que pusessem diante de mim, remoía histórias até elas ficarem gastas, dizia a mim mesma que não tinha expectativas, enquanto expectativas eram meu único combustível.” (página 75)

Carol Bensimon escreveu um bom romance contemporâneo e os dois aspectos evidenciados pela professora Noemi Jaffe, na introdução a esta obra, são altamente funcionais, se podemos dizer assim.

Para uma protagonista que se descobre aos poucos, tendo estado, como diz, “muito ocupada sendo exatamente burra e jovem”, calha o road novel – atirar-se ao mundo “sem lenço nem documento”, numa simbologia da busca de si mesma: o processo de descoberta externa anda passo a passo com o da descoberta interna.

O segundo aspecto – romance de formação – não sei se foi escolha intencional da autora, suspeito que sim, adaptou-se à perfeição à proposta da obra. Afinal, não se pode passar a vida inteira burra e jovem; há que se amadurecer. Todos nós adorávamos caubóis é, ele mesmo, um romance maduro de uma escritora com pleno domínio do seu fazer literário.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Resenha Nº 177 - O Mundo Se Despedaça, de Chinua Achebe

 

Título original: Things fall apart

Autor: Chinua Achebe

Tradutora: Vera Queiroz da Costa e Silva

Edição: TAG/Companhia das Letras

Copyright: 1958

ISBN: 978-85-359-3280-5

Gênero literário: Romance

Origem: romance africano em inglês




Albert Chinualumogu Achebe – mais conhecido como Chinua Achebe – nasceu no vilarejo de Ogidi, na parte oriental da Nigéria. Nasceu em 16/11/1930 e veio a falecer em Boston, EUA, em 21/03/2013. Romancista, poeta, crítico literário, foi um dos autores africanos mais conhecidos do século XX. Ao todo, foram 30 livros publicados, entre romances, contos, ensaios e poesias. Sua obra mais conhecida é este O mundo se despedaça, tendo sido publicada em 1958, quando nosso autor contava com 28 anos de idade. Achebe foi um crítico de como os autores estrangeiros representavam a África em seus trabalhos – notadamente, Coração das trevas, de Joseph Conrad.

Em 2007, ganhou o Prêmio Internacional Man Booker. Viajou várias vezes aos Estados Unidos, para lecionar até que resolveu mudar-se definitivamente para lá, após sofrer um acidente automobilístico que o deixou com dificuldades de locomoção.

O mundo se despedaça é uma obra extremamente importante para a literatura e cultura não só nigeriana, como para todo o continente africano. Na introdução ao volume, Alberto da Costa e Silva nos diz que

“Se perguntado sobre o livro em que mais se reconhece, é muito provável que um ibo responda: O mundo se despedaça, de Chinua Achebe. Não que se trate de um livro perfeito, acrescentará. Mas há obras imperfeitas que se tornam clássicas, criam um modelo, determinam caminhos. Como este O mundo se despedaça, de Chinua Achebe, que serve de fundação a grade parte do romance nigeriano contemporâneo.” (página 7)

Responsável pela fusão entre o romance de tradição europeia e a transmissão oral dos ibos, Chinua Achebe constrói um narrador que inicia da seguinte forma seu texto:

“Toda a gente conhecia Okonkwo nas nove aldeias e mesmo mais além. Sua fama assentava-se em sólidos feitos pessoais. Aos dezoito anos, trouxera honra à sua aldeia ao vencer Amalinze, o Gato, um grande lutador, campeão invicto durante sete anos em toda a região de Umuófia a Mbaino. Amalinze  recebera o apelido de o Gato porque suas costas jamais tocaram o solo. E foi ele quem Okonkwo derrotou, numa luta que, na opinião dos mais velhos, fora das mais renhidas desde a travada, durante sete dias e sete noites, entre o fundador da cidade e um espírito da floresta.” (página 23)

Percebem-se, neste parágrafo inicial, aspectos estilísticos que irão permear este romance. Frases longas e de vocabulário simples retratam bem o ritmo das narrativas orais. A valorização do inimigo (Amalinze não era um oponente qualquer, mas estava invicto há tempo), como meio de valorizar o feito do protagonista Okonkwo é também comum nas narrativas populares, e mesmo nas epopeias da antiguidade clássica (veja-se Odisseia, de Homero). Elementos místicos, aqui representados pela recorrência do número sete (a luta fora travada durante sete dias e sete noites) e que tanto marcam todas as narrativas fundantes em qualquer cultura têm seu lugar.

Okonkwo, o herói deste romance, “crescera qual incêndio na mata no tempo do harmatã (vento seco e frio, carregado de uma areia muito fina, que sopra do deserto do Saara sobre as savanas, os cerrados e as florestas da África Ocidental, como nos orienta o glossário no fim do livro).

Lá pelas páginas 26, anotei num post-it: nestas primeiras páginas já vai dando para perceber algumas coisas:

  • a quantidade de esposas dá a medida da prosperidade de um homem;
  • a noz de cola é algo muito importante dentro da cultura igbo (ou ibo), uma preciosidade que se dá ao outro, como prova de amizade ou apreço;
  • a música também é muito importante culturalmente. Elas transmitem não só a alegria, a comemoração por vitórias, como também propagam e asseguram a cultura.

Um trecho revelador dos costumes ancestrais está bastante presente abaixo:

“Mas essa noite em especial estava escura e silenciosa. E em todas as nove aldeias de Umuófia um pregoeiro com seu agogô pedia a cada um dos habitantes que estivesse presente ao encontro da manhã seguinte. Okonkwo, em sua cama de bambu, tentava imaginar qual seria a natureza da crise – guerra contra um clã vizinho? Essa parecia ser a hipótese mais provável, e ele não tinha medo de guerra. Era homem de ação, homem de guerra. Ao contrário do pai, era perfeitamente capaz de ver sangue. Durante a última guerra de Umuófia, fora o primeiro a trazer para casa uma cabeça humana. Era sua quinta cabeça; e ele ainda não era velho. Nas grandes ocasiões, como o funeral de alguma celebridade da aldeia, bebia o vinho de palma no primeiro crânio que cortara.” (página 30)

A cultura ibo é permeada pelo culto aos ancestrais e a seus deuses. Oráculos, feitiços poderosos fazem parte de sua mitologia. Há oferendas a esses deuses e a proximidade com as religiões de matriz africana do Brasil é bastante evidente. A economia gira ao redor do inhame e a criação de bodes.

O herói de nossa narrativa não descendia de família com posses; Unoka, pai de Okonkwo, não entendia por que sua vida não dava certo. Consultara, certa vez, a poderosa sensitiva de Agba:

“Há muitos anos, quando Okonkwo ainda era menino, seu pai, Unoka, fora consultar o oráculo de Agbala. Naquele tempo, a sacerdotisa era uma mulher de nome Chika. Estava cheia de poder de seu deus e era muito temida. Unoka ficou de pé diante dela e começou sua história.

— Todos os anos – disse ele, abatido – antes de colocar uma só semente na terra costumo sacrificar um galo a Ani, a deusa da terra. É a lei de nossos pais. Também sacrifico um galo no altar de Ifejioku, o deus dos inhames. Limpo o mato e lhe toco fogo, quando está seco. Planto os inhames depois da primeira chuva e os escoro, quando as gavinhas novas começam a aparecer. Capino as ervas dani...

— Cale-se! – gritou a sacerdotisa, com uma voz terrível, que ecoava no escuro vazio. – Você não ofendeu nem os deuses nem seus ancestrais. E quando um homem está em paz com os deuses e com seus antepassados, sua colheita será boa ou má, conforme a força de seus braços. Você, Unoka, é conhecido em todo o clã pela fraqueza de seu machete e de sua enxada. Enquanto seus vizinhos vão com seus machados derrubar as martas virgens, você planta inhames nas terras exaustas, que não dão trabalho algum para limpar. Seus vizinhos cruzam sete rios para fazer seus roçados; você fica em casa e oferece sacrifícios por um solo cansado. Vá para casa e trabalhe como homem!” (páginas 37/38)

Temos aqui, então, um trauma entre Okonkwo e seu pai, para dizer com Freud. Unoka representa tudo o que o protagonista desta história não deseja ser e, com isso, não é a coragem que orienta suas decisões, mas o medo. Medo de ser como o pai, por isso, reafirma-se diferente: corajoso, trabalhador, próspero.

Outro ponto a se notar é a importância dos provérbios e ditados populares, tão importantes dentro desta cultura. Têm como base uma verdade absoluta, aplicada às situações reais da vida. Emergem da perpetuação da autoridade dos mais velhos, dos ancestrais (refletem a sabedoria dos anciãos).

As narrativas fundadoras estão presentes, também:

“Lembrava-se da história, que sua mãe tantas vezes contara, da briga entre a Terra e o Céu, muito tempo atrás, e de como o Céu negou chuva durante sete anos, até que as plantações todas secaram e os mortos não mais puderam ser enterrados, porque as enxadas se partiam contra a Terra endurecida. Finalmente o Abutre foi enviado ao Céu, para suplicar-lhe perdão e amolecer-lhe a alma com uma cantiga em que se falava dos sofrimentos dos homens. Sempre que a mãe de Nwoye entoava essa canção, ele sentia-se transportado até aquela cena distante, no Céu, onde o Abutre, emissário da Terra, cantava, a implorar misericórdia. Por fim, o Céu apiedou-se e entregou ao Abutre chuva enrolada em folhas de cará. Mas, à medida que ele voava de volta para casa, suas garras pontiagudas iam perfurando as folhas; e a chuva caiu, como nunca dantes. Caiu tão pesadamente que o Abutre não regressou à casa para transmitir a mensagem, voando para um lugar muito distante, onde divisara uma fogueira. Quando lá chegou, viu que um homem oferecia um animal em sacrifício. Aqueceu-se junto à fogueira e comeu as entranhas da vítima.” (páginas 72/73)

Pouco a pouco, entretanto, uma nova ameaça se infiltra neste mundo. Uma ameaça que vem do exterior, a princípio não compreendida e, por isso mesmo, desdenhada:

“Quando, passados quase dois anos, Obierika fez uma nova visita ao amigo exilado, as circunstâncias eram outras, bem menos felizes. Os missionários tinham chegado a Umuófia. Ali construíram uma igreja, lograram algumas conversões e já começavam a enviar catequistas às cidades e aldeias vizinhas. Isso constituía motivo de grande pesar para os líderes do clã, embora muitos deles acreditassem que aquela estranha fé, bem como o deu do homem branco, não durariam. Nenhum dos convertidos era homem cuja palavra fosse levada em consideração nos comícios. Nenhum possuía título. Pertenciam, na maioria, àquela espécie de gente que costumavam chamar de efulefu, isto é, pessoas vazias, sem valor na linguagem do clã, um efulefu era um homem capaz de vender seu facão e usar a bainha para guerrear. Chielo, a sacerdotisa de Agbala, chamara os convertidos de excrementos da tribo, e a nova fé, para ela, era um cachorro raivoso que viera devorar os excrementos.” (página 163)

O catolicismo, levado pelo homem branco e, junto com esta nova religião, a cultura que a acolhia e a mantinha, começava a alterar o modo igbo de ser. O fenômeno da imposição de uma cultura de maior prestígio não se restringe, naturalmente, à África; ela se repetiu ao longo da História, por exemplo, com a superposição do Latim sobre o Grego. Várias estátuas de bronze, que representavam deuses pagãos foram derretidas para irem compor, sob nova forma, as colunas sustentadoras do Vaticano.

O mundo se despedaça é um ótimo título. Um verdadeiro clássico, como o disse Alberto da Costa e Silva, em sua introdução. Clássico no sentido de uma obra de referência importante. Se puder, leitor amigo, leia este livro, sem perda de tempo. Leia-o não só para entender um pouco da multifacetada e sofrida África. Ele nos ajuda a compreender como o homem se torna lobo do homem, não importando quais instrumentos sejam utilizados para tal dominação.

Mas – você me perguntará – o que acontece com Okonkwo? E com suas mulheres? Filhos, amigos? Sinto muito, não lhes posso revelar, desejo ser discreto. Não gosto de estragar a leitura dos outros. Para saber o que acontece com os personagens desta narrativa, leia o livro. Pode não ser perfeito, mas é muito bom. Recomendo.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Resenha nº 176 - O Que Ela Sussurra, de Noemi Jaffe

 

Título original: O que ela sussurra

Autora: Noemi Jaffe

Editora: Cia das Letras

Copyright: 2020

ISBN: 978-85-359-3324-6

Edição: 1ª

Gênero: romance

Origem: literatura brasileira

 


 Noemi Jaffe nasceu em São Paulo, no ano de 1962. Tem doutorado em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo, e atua também na área de crítica literária. É autora, entre outros títulos, de A verdadeira história do alfabeto (2012) – vencedor do prêmio Brasília de Literatura,  Írisz: As orquídeas (2015), Não está mais aqui quem falou (2017).

Já desejava resenhar algum livro desta escritora. Aconteceu de eu assistir a um vídeo do YouTube, em que a autora comentava alguns aspectos desta nova obra, O que ela sussurra. Logo fiquei interessado pelo que ouvia: Noemi valera-se de fatos da vida real, ou melhor, da vida do casal Óssip Mandelstam e Nadejda, na Rússia soviética.

Impressionei-me com o que ouvia: após a morte do marido, Nadejda recita todos os dias, para si mesma, os poemas do marido. O motivo: não deixar a obra dele cair no esquecimento, pelo valor de resistência expresso nos trabalhos. Foi assim que os poemas dele chegaram ao conhecimento dos dias atuais.

A resiliência desta mulher me fez comprar o volume e levá-lo para a praia, onde me dediquei à leitura entusiasmada; e a escrita de Noemi Jaffe conseguiu a proeza de trazer Nadejda para o meu metaverso literário.

A opressão do regime socialista, esmagando o indivíduo em favor de uma coletivização imposta, é o pano de fundo desta obra. Imagine, caro leitor – aqueles que viveram as experiências dos Anos de Chumbo aqui no Brasil me entenderão melhor – que qualquer das pessoas que frequentem a sua casa possa ser um delator disfarçado, um espião. Óssip e Nadejda restringem a recepção de amigos e vizinhos, mas a ameaça, ainda que sem contornos precisos, está por toda parte.

Incorporando versos do poeta, este texto, escrito a partir do discurso em primeira pessoa, da narradora Nadejda, é denso, como se pode depreender já na abertura do romance:

“Engano a passagem do tempo e quando ele passa por perto nem se dá conta, porque se deixa embalar pela minha voz, não entende direito o que eu digo, se distrai, esquece que deve passar e para. O que é um sussurro para o tempo? O que é o tempo para um sussurro que o desfaz e o tempo deixa de passar enquanto eu digo em voz baixa: ‘Como se eu pendesse de minhas próprias pestanas’. Quando sussurro, sou como os grilos, assoviando para que o medo não venha; não tão logo, que fique ainda longe, escorado por esse ruído mínimo. Falo devagar, enquanto passo a linha no caseador meio enguiçado: ‘Assim responde a criança:/Eu te darei a maçã’ – ou: ‘Não te darei a maçã’./ E seu rosto é a exata matriz da voz que estas palavras diz”. (página 9)

Lembra-me, até certo ponto, daquela Penélope, que durante o dia tece e durante a noite destece, enganando o tempo e os pretendentes a um novo casamento, enquanto aguarda o retorno do seu amado Ulisses. Aqui, Óssip não retornará; entretanto, Nadejda tece a permanência da obra, de certa forma, garantindo vida ao poeta.

Elemento importantíssimo dentro desta narrativa, em outro trecho ele é explicitado:

“Faço com o tempo o que fiz com o casaco: fico segurando. De vez em quando eu grito, sozinha, e nessas horas o tempo passa mas era isso mesmo que eu queria, ou você acha que é fácil ficar segurando o fluxo das coisas? Quase sempre eu gostaria mesmo é de morrer também; não aguento mais dar aulas para quem não se interessa por nada, eu também sendo perseguida só por estar viva, por ter sido tua mulher, porque a educação, para esses primatas do governo, é só louvação daquele dos dedos grossos e curtos.” (página 10)  

Há uma intensa simbiose entre a narradora Nadejda e o marido morto, Óssip Mandelstam. E é mesmo simbiose, definida como “associação íntima entre dois seres”. O canal que possibilita esta superposição de vozes, este imbricamento de seres é a Literatura (escrita assim mesmo, com maiúscula); e como qualquer obra de arte que consiga atravessar os espaços e atingir aquele que a frui, realiza também uma simbiose que une leitores, une aficionados da Arte.

Batizada Nadejda – nome que, em russo, significa “esperança” – a narradora constrói uma contextualização para seu nome de batismo, com alta voltagem poética, quando nos diz:

“Por que, na alvorada da nova era, no começo do século XX, eu recebi o nome de Nadejda? Foi a esperança que eles quiseram me nomear, para que eu ficasse condenada ao futuro, projetando-me para a frente, quando meu corpo só me puxa para trás. Sou o passado lançado para um futuro, cujo único conteúdo conhecido é continuar a sussurrar teus poemas.” (página 16)

Nas páginas 20 e 21, Nadejda tenta compreender o processo no qual está mergulhada. Tão intenso que, segundo ela,

“Os poemas que memorizo mas que também parecem me memorizar, como se eu só pudesse existir através deles, me levam para um passado que fica no futuro.”

Aqui temos, novamente, a ideia da simbiose através do sussurrar dos poemas e a própria fusão do tempo, expresso pela poesia de “um passado que fica no futuro”. Os limites se coagulam, escorrem, como naquele célebre quadro de Salvador Dalí, extraordinário pintor surrealista, em que o relógio escorre e com ele, as horas, o tempo.

O famoso escritor Máximo Gorki (ou simplesmente Gorki, como o preferirem) é visto como um inimigo, um vigarista. Pois, mantendo-se a coerência de uma narradora que se vê, a si mesma, e ao companheiro perseguidos pelo detestável regime político, outra não poderia ser sua concepção. Sabemos todos, os que gostam de literatura russa, Gorki foi a voz em defesa do comunismo, por excelência, dentro da literatura.

Nadejda Mandelstam tem uma primorosa reflexão sobre o seu feito, escrito com a mesma tinta poética que perpassa o texto todo:

“Só que não posso me dar ao luxo de morrer, nem posso controlar minha vida. Sussurrar teus poemas não é uma missão, nem sou uma espécie de heroína, cumpridora de um sacrifício pago com minha própria vida. Óssip, se for algo que passe mesmo perto disso, se mais tarde, quando teus poemas já estiverem salvos e publicados, alguém nem sequer pensar em mim como pessoa, essa que salvou tua vida, ou tua memória, então prefiro desistir de tudo agora.” (página 29)

Não, a simbiose não é completa, como de início supúnhamos. No trecho acima, Nadejda solta-se desta fusão e deseja sua individualidade e o reconhecimento exato do seu trabalho. Não deseja a glória das missões, não quer a fama das heroínas. Apenas o justo reconhecimento dos seus feitos.

Outra figura da resistência contra o regime socialista aparece nas páginas deste livro, a poetisa – hoje se diz poeta para uma autora, não? – Anna Akhmátova:

“Anna Akhmátova estava com a roupa errada para a temperatura de Moscou e, além disso, também irritada, porque, desajeitado como sempre, seu filho não tinha conseguido encontrá-la na estação. E não era só por isso, mas porque ela preferia que Óssip fosse buscá-la e que eles então viessem de lá até nossa casa contando piadas idiotas um para o outro. Sabe por que os judeus têm nariz grande? Porque o ar é de graça. Ou: um rato começa a correr loucamente e outro rato, correndo atrás dele, pergunta, por que você está nessa correria? E aí ele responde que ouviu dizer que os camelos vão ser castrados. Mas você não é um camelo! Está certo, então tente provar isso para a polícia! Ela era apressada enquanto Óssip era lento e um tentava convencer o outro de que a sua velocidade era a mais certa.” (página 37)

Óssip Mandelstam não fora um companheiro perfeito. Nadejda o reconhece no trecho abaixo, mas não se insurge contra ele:

“É. Pintora. Eu queria ter sido pintora e não fui. Por que não fui? Porque Óssip não queria e eu, eu queria o que ele queria. E Óssip não queria porque, por que nem sei, mas acho que ele me queria inteiramente dele, queria que eu me dedicasse a ouvir e escrever seus poemas, a suportar suas infidelidades suportáveis, a estar em casa quando ele chegasse, queria me ter como alguém que pudesse ficar atrás, do lado, por baixo dele. Às vezes acima. E eu aceitei, não sei por que aceitei, mas não me arrependo. Até disseram que eu teria futuro pintando, que podia entrar para alguma academia, sair daqueles cestos de frutas repetitivos, ir no caminho das vanguardas, pintar formas geométricas, pintar sobre a pintura, coisas de que eu poderia até vir a gostar um dia, depois que praticasse mais maçãs, laranjas e mamões. Nunca acreditei nisso. Fiz uns retratos e autorretratos também.” (página 73)

Há, ainda, o simbolismo da blusa branca, de rendas, feita à mão. Ela passa de mulher em mulher, sempre dentro da família. Símbolo do sofrimento e da resiliência feminina, Nadejda nos diz, sobre esta peça:

“Eu praticamente nunca a usei, mas gostava de vê-la pendurada no cabide, sozinha em meio a quase nada, um ou dois vestidos, um xale cinza de crochê, umas poucas blusas tão mais simples e vazias de história, um par de sapatos e um de botas.” (página 113)

E, mais adiante, numa inversão de valores, aos olhos da narradora:

“Como é estranhamente bom não ter nada e pensar em ter, falar sobre ter, brincar de ter. era assim com a blusa de renda de três gerações que um dia a polícia tirou do armário e rasgou e usou como proa da nossa condição burguesa. Possuíamos uma blusa de renda, denúncia de algum vizinho indignado, que se considerava poderoso por contribuir para o ‘confisco de uma propriedade de mais-valia”. (página 113)

Como o leitor já terá notado, o texto de Noemi Jaffe é profundo, poético e reflexivo. Não será um livro para se ler apressadamente; porque, como se pode ler um trecho como o que vai abaixo, sem a necessária releitura, não para degustação literária, mas para o encontro consigo mesmo, o famoso “conhece-te a ti mesmo”?

“Para nós, e até hoje para mim, a liberdade é a escolha de fazer o que se deve, já disse isto antes e sei que choca muita gente. Uma ética do dever, mais que do querer. Se for para fazer o que quero, preciso antes fazer o que devo. É assim que penso e podem pôr isso na conta do sofrimento, podem ser compreensivos e dizer: ah, para ela é diferente, considerando tudo o que passou, mas não concordo, acho que isso vale para quem sofreu e para quem não sofreu, vale para as pessoas que vivem não na sua proteção doméstica, mas na história, que é sempre cheia de dor. Eles deveriam considerar como mais-valia a licenciosidade, isso sim.” (página 114)

A Nadejda criada por Noemi Jaffe possivelmente não será, ipsis litteris, aquela pessoa de carne e osso, dirão alguns. Pouco importa, diante do projeto literário da escritora. A narradora vai crescendo na narrativa e, a partir de um certo ponto, aquela simbiose inicial se desfaz, Nadejda se sobressai da História, ressurge inteira. Ao enfatizá-la, Noemi cria uma figura de resistência como só mulheres muito sofridas e muito conscientes podem ser.

Maravilhoso livro, este O que ela sussurra. Na quarta capa dele, está escrito que Noemi Jaffe é “uma das autoras mais originais da literatura brasileira contemporânea”. Concordo plenamente. Cuidadosa pesquisa, conhecimento a respeito da história da literatura, voz autoral, texto profundo e bem-escrito. É um autêntico prazer repartir com meus leitores esta resenha.

domingo, 21 de novembro de 2021

Resenha nº 175 - Azazel, de Isaac Asimov

 



Título original: Azazel

Autor: Isaac Asimov

Tradutor: Ronaldo Sergio de Biasi

Editora: Record

Copyright: 1988

Edição: S/n

ISBN: 85-01-03808-3

Gênero: Fantasia (contos)

Origem: Estados Unidos

 

Não me lembro mais de qual destes contos eu li há muito, muito tempo, provavelmente numa revista de ficção científica. Apesar da falha mnemônica, não me esqueci do nome e das características deste personagem, que dá nome à coletânea presente.

Durante todo este tempo, tenho procurado em algum sebo um volume em bom estado de conservação, pois encontra-se esgotado e fora do catálogo da Record. Finalmente, achei um volume que preenchesse as minhas exigências de leitor, além do prazer de buquinar – algo que vem se tornando mais e mais frequente. O ato de buquinar (perambular por sebos buscando exemplares de interesse) rendeu-me, ainda, mais dois volumes: Neve, de Orham Pamuk e Um poema para Bárbara, de Mônica Sifuentes.

Mas voltemos ao Azazel. Trata-se de um demônio de 2 centímetros de altura, tendo chifres, rabo e coberto com pele vermelha; mora em algum mundo em algum universo paralelo. Seus poderes misteriosos são convocados por George, um linguista, por meios igualmente misteriosos.

George Bimnut havia encontrado manuscritos de um rei dinamarquês, datados do século XI, nas ruínas de um castelo inglês. Tal documento continha as instruções de como conjurar demônios e, ao proferir estranhas palavras, George arranca, momentaneamente, Azazel de seu planeta natal e o traz para a Terra.

As dezoito histórias – contos – que compõem esta obra têm uma estrutura que não muda: é apresentada, de início, sempre num diálogo entre o narrador (o próprio Isaac Asimov) e George. Constrói-se, então, uma “deixa”, um problema de alguma pessoa, a ser somente resolvida pelas intervenções mágicas do pequeno diabo. Que quase sempre resmunga contra as conjurações do linguista, pois a criatura fantástica não tem como desobedecer ao chamamento. É apanhado no meio de atividades hilariantes em seu próprio mundo.

Caracterizado o problema, Azazel intervém. George sempre está disposto a ajudar os outros, na (aparentemente) melhor disposição do “amor ao próximo”. Quando olhamos de perto, entretanto, percebemos que George não é – digamos – o melhor exemplo cristão.

Azazel é potente em suas intervenções. Mas há um complicador: o diabrete não entende as limitações humanas. Infalivelmente, suas ações corretas no início, terminam sempre dando errado e rendendo boas situações de humor.

Estes contos foram publicados em separado na revista Isaac Asimov’s Science Fiction Magazine. Posteriormente, foram reunidas em uma coletânea, como a que aqui se apresenta, em tradução para a língua portuguesa. Os títulos são: 1) O demônio de dois centímetros; 2) Uma noite de música; 3) O sorriso roubado; 4) Ao vencedor; 5) O ruído abafado; 6) Salvando a humanidade; 7) Uma questão de princípios; 8) Os males da bebida; 9) Tempo para escrever; 10) Deslizando na neve; 11) Lógica é lógica; 12) Mania de viajar; 13) Os olhos de quem vê; 14) Mais coisas no céu e na Terra; 15) A obra da mente; 16) As brigas da primavera; 17) Galateia; 18) Voo de imaginação.

Somente o primeiro conto foi escrito especificamente para este livro, apresentando aos não leitores da revista de science fiction editada por Asimov, os personagens destas histórias, a saber: George, o narrador e a estrela da companhia, Azazel. Todos os outros contos já haviam sido publicados antes.

O narrador é sempre em primeira pessoa (ou seja, é sob seu ponto de vista que a história se constitui), relatando-nos o que lhe conta George. Esta estrutura confere um caráter individual e suspeito no quesito veracidade do que é narrado; aliás, tudo aqui é dúbio, pois o próprio George e o que ele conta não tem fiabilidade:

“Eu me esforço para não acreditar no que meu amigo George me conta. Como dar crédito a alguém que afirma ter acesso a um demônio de dois centímetros de altura chamado Azazel, um demônio que é na realidade um ser extraterreno com poderes extraordinários, embora limitados?” (página 49, O Ruído abafado)

George é resmungão, com uma tendência para a mesquinhez e sempre disposto a não pagar a conta, cuja responsabilidade ele deixa para o amigo; aqui e ali, extorque cinco ou dez dólares dele, pendurando a dívida, anotada em papeizinhos, em algum lugar do seu quarto:

“George não era dessas almas tímidas que acham que ninguém tem o direito de criticar uma refeição pela qual não está pagando. Assim, informou-me que está decepcionado com o almoço, com todo o tato de que foi capaz, ou por outra, com todo o tato que achava que eu merecia, o que, naturalmente, não é a mesma coisa.” (página 128, Lógica é lógica)

O linguista sempre deprecia das qualidades do narrador:

“Não consigo entender, amigo velho, por que você se ressente do fato de que organizações respeitáveis estejam dispostas a lhe pagar milhares de dólares por uma palestra de uma hora. Afinal, já tive a oportunidade de ouvi-lo falar e acharia muito mais razoável que você falasse de graça e se recusasse a parar a menos que lhe pagassem milhares de dólares. Isso sem querer ofender seus sentimentos, se é que você tem algum.” (página 139, Mania de viajar)

Azazel sempre faz pouco-caso da espécie humana, a qual ele considera completamente primitiva e obtusa. Na maioria dos contos, ele suspira de tédio por ser levado a intervir entre os homens:

“— Você tem um cérebro pequeno, verme primitivo, mas às vezes pode ser tortuoso e portanto útil a pessoas como eu, dotadas de qualidades mentais superiores mas incapazes de um pensamento que se afaste da retidão. De que tipo de ajuda está precisando?” (página 189, As brigas da primavera)

A gente sempre fica em dúvidas se as impressões um do outro têm algum tipo de perspicácia ou se se baseiam simplesmente na depreciação automática. George fala mal do amigo velho, com quem conversa constantemente – e de quem fila o almoço – não tem o diabrete em alta conta, apesar de ser ele o interventor que resolve as situações inusitadas, o pequeno Azazel, apesar de gostar de ajudar, considera muito mal os seres humanos a quem serve:

“Azazel, como sempre, estava de péssimo humor quando chegou. Sua cauda estava levantada em um ângulo estranho. Quando lhe perguntei o que havia acontecido, começou a fazer comentários desairosos a respeito dos meus antepassados... que, diga-se de passagem, eram totalmente falsos.

Deduzi que alguém pisara na sua cauda. Azazel é uma criatura muito pequena; não deve ter mais que dois centímetros de altura, sem contar com a cauda. Mesmo no seu mundo, suspeito que sua estatura está abaixo da média, o que, sem dúvida, devia ter contribuído para aquele incidente tão humilhante.” (página 212, Voo de imaginação)

Certamente, pelo menos na minha opinião, este não é o melhor trabalho de Isaac Asimov, como escritor de ficção científica. Na prateleira de cima estão o excelente romance fix-up (narrativa formada por contos que interagem, como capítulos de um romance) Eu, Robô ou o monumental Fundação.

Desconfio mesmo que este volume Azazel não deve ter tido boa acolhida pelo público aqui, no Brasil e, por este motivo, não houve outra edição. Não me arrependi de procurá-lo pelos sebos afora. É divertido; não divertido naquele sentido de você dar sonoras risadas pelo humor que perpassa todas as histórias. Mas aquele sorriso à inglesa, uma diversão competente que afaga o prazer de ler, certamente houve.

Os adjetivos atribuídos a Azazel por George, um emérito puxa-saco quando quer obter favores do centimétrico amigo, são um capítulo à parte: Poderoso Ser a Quem todo o Universo Presta Homenagem, Mente Colossal, Sábio dos Sábios, Ser Sublime, etc.

No mesmo plano expressional, mas com o sinal trocado, Azazel prega em George adjetivos como: Massa Repugnante de Carne Inútil, Inseto Infeliz, e coisas mais. Bons amigos, em suma.

Este livro é bastante não característico de Asimov. Está mais para uma fantasia – motivo pelo qual o autor foi resistente à publicação dos contos em sua revista de sci-fi. Em tudo perpassa o humor escrachado, entretanto, como dito pelo próprio Isaac na introdução,

“Eu disse a ela, “Shawna, essas histórias de George e Azazel são contos de fantasia, e a IASFM [Isaac Asimov Science Fiction Magazine] é uma revista de ficção científica.”

Ela replicou: “Então, transforme o pequeno demônio e sua mágica em um pequeno ser extraterrestre com uma tecnologia avançada e venda as histórias para mim.”

Eu fiz isso, e como gostava das histórias de George e Azazel, continuei a escrevê-las, de modo que agora posso incluir dezoito delas neste livro, que chamei de Azazel.” (página 10, Introdução)

Isaac Asimov se divertiu ao escrever este livro. Pode haver um motivo melhor para se escrever algo, qualquer coisa? 

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Resenha nº 174 - O Céu da Meia-Noite, de Lily Brooks-Dalton






Título original: Good Morning, Midnight

Título em português: O Céu da Meia-Noite

Autora: Lily Brooks-Dalton

Tradutora: Ana Guadalupe

Editora: Morro Branco/TAG

Copyright: 2016

ISBN: 978-65-86015-10-2

Gênero literário: Romance (Ficção Científica)

Origem: Literatura americana


A experiência de ler O Céu da Meia-Noite é intensa. Já vou avisando, principalmente aos fãs da ficção científica: não esperem um livro convencional, dentro do costumeiro deste gênero literário. Por conta disto, muitos poderão não gostar dele; a própria autora, Lily Brooks-Dalton, declara ter um gosto pelos filmes sci-fi “diferentes”. Um de seus personagens cita A Mão Esquerda da Escuridão, de Úrsula K. Le Guin.

Antes, propriamente, de entrar nas considerações sobre o livro, talvez seja útil partir do que julgo ter sido o projeto narrativo da escritora. Pode-se depreendê-lo da história contada. Partindo-se do pressuposto de que um bom escritor deve ter tanto domínio quanto possível sobre a obra que escreve, não será tão difícil a tarefa.

Não é uma ficção científica de ação. Na verdade, o enredo não conta com viradas rocambolescas; ao contrário, quase não há surpresas emocionantes. Um romance assim aposta em outros elementos. De fato, este livro pertence às análises psicológicas de personagens. Carrega na revelação intimista. Tem ritmo lento, por este motivo.

Há dois núcleos narrativos: o primeiro, com o cientista Augustine, último representante da humanidade na Terra pós-apocalipse. Vive retirado numa estação de estudos no Círculo Ártico. O segundo núcleo nos dá a conhecer o que acontece a bordo da nave espacial Aether. Ela está voltando à Terra, após uma série de estudos nas luas de Júpiter.

O planejamento de O Céu da Meia-Noite propõe uma narrativa intimista, com já disse. Não há cargueiros espaciais, naves estelares em guerra, pirataria espacial ou coisas do gênero. A autora, de posse de uma pesquisa rigorosa e bem-montada, fala-nos da psique dos seres humanos. Transparece de maneira contundente a solidão dos personagens, a perda sofrida por todos eles, suas escolhas e suas consequências. Só por isto, caro leitor, você já perceberá tratar-se de uma obra fora dos padrões do gênero literário a que se filia.

A introdução marca, pela precisa descrição da paisagem, a solidão do primeiro personagem que aparece, o cientista Augustine:

“Quando o sol enfim retornou ao Círculo Ártico e manchou o céu cinza com riscos de um cor-de-rosa incandescente, Augustine estava lá fora, esperando. Ele não sentia a luz solar no rosto havia meses. O brilho róseo se derramou sobre o horizonte e se infiltrou no azul gélido da tundra, projetando sombras anil pela neve. A alvorada subiu como um muro de fogo implacável, o cor-de-rosa delicado ganhando a profundidade do laranja, consumindo as grossas camadas de nuvem uma a uma até que o céu inteiro começasse a arder. Ele se deixou banhar por aquele brilho suave, sentindo a pele formigar.

Não era comum que o céu ficasse encoberto assim durante a primavera. O local do observatório havia sido escolhido por seu tempo limpo, pela atmosfera polar fina e pela elevação da Cordilheira Ártica. Augie se afastou dos degraus de concreto e seguiu pela passagem entalhada na encosta íngreme da montanha – descendo até as instalações anexas que ficavam aglomeradas contra o declive da montanha, depois as ultrapassando.” (página 13)

Uma brancura total até onde a vista alcança, de qualquer ângulo que se veja. Augustine é um homem idoso, bastante turrão. Recusara deixar a Terra com a última leva de pessoas a abandonar o planeta. Sozinho com seus fantasmas, ficamos sabendo que ele fez a opção por uma carreira exitosa de cientista, abandonando a mulher que supostamente amava e deixando-lhe claro que não pretendia ser pai.

Isto não o impede de ter contato com Iris, uma menina que, por alguma forma, fora deixada na Terra e, por algum motivo misterioso até este ponto da narrativa, está escondida nas dependências do observatório. Ela não fala muito, mas depende dele e evidencia o extremo mal jeito dele com relações interpessoais. Augie se dedica ao trabalho e à tentativa de entrar em contato com outros seres humanos. A resposta aos seus sinais eletromagnéticos é sempre o silêncio. Mesmo os contatos com a nave espacial que se aproxima da Terra é difícil: os outros meios mais modernos estão obsoletos e o que lhe resta é o rádio.

E o rádio tem alcance limitado e, quando a Terra gira em sua órbita, interpondo-se entre o local em que Augie está e a nave, de nome Aether, as comunicações se emudecem e só resta estática e chiados.

A bordo da Aether estão Sully, Devi, Thebes, Ivanov, Harper e Tal. Retornam à Terra, após fazerem várias prospecções em Io, Ganimedes, Calisto e Europa – luas de Júpiter:

“O relógio de Sully mostrava 0700 GT – quatro horas à frente de Houston, quatro horas atrás de Moscou. O tempo não significa quase nada no espaço profundo, mas ela se obrigou a acordar mesmo assim. O regime que o Controle da Missão havia prescrito para a tripulação da nave espacial Aether era preciso e detalhado, e, embora o Controle não estivesse mais disponível para administrá-lo, os astronautas continuavam seguindo a maioria das recomendações. Sully levou a mão à única fotografia afixada à parede de estofado macio do compartimento em que dormia, um hábito, e se ajeitou, sentando-se na cama. Passando os dedos pelos cabelos escuros, que não eram cortados desde que a jornada começara, um ano atrás, ela começou a fazer uma trança, ainda pensando no sonho agradável que acabara de ter.” (página 35, capítulo dois)

Comum a todos estes personagens, tanto Augustine quanto a tripulação da nave, todos relatam perdas, escolhas difíceis e sofridas para assumirem suas carreiras; profissionais altamente especializados, perpassados por uma aguda solidão.

Na Terra, Augie, por escolha própria, resolvera ficar em seu posto; na Aether, mergulhada no frio e no vazio do espaço profundo, os seis tripulantes, também por escolha própria, optaram por uma viagem longa e monótona:

“Em seu tempo designado para a recreação, Sully e Harper geralmente jogavam baralho. Para ela, era cansativo sentir todo o peso de seu corpo depois de passar o dia inteiro flutuando na cabine de comunicações, mas era importante continuar aclimatada. Os efeitos da gravidade não eram de todo maus. As cartas ficavam sobre a mesa, a comida ficava no prato e o lápis, atrás de sua orelha, ela quase conseguia esquecer o vazio lá de fora, os milhões de bilhões de anos-luz de espaço inexplorado que os cercava. Quase conseguia fingir que estava novamente na Terra, a poucos passos do chão e das árvores e de um toldo azul de céu. Quase.” (página 46)

A consequência massacrante de lidar com o vazio, com a solidão escolhida ou autoimposta é a perda da própria identidade. A tese que, sutilmente, é defendida na narrativa é que nossas relações com os outros, em sociedade, nos ajuda a perceber quem somos. Em decorrência desta ideia, nossas percepções são construções coletivas. Percebo-me, porque percebo o outro. Construindo o outro, construo-me a mim mesmo, numa espécie de jogo de espelhos.

Em uma obra extremamente introspectiva, o narrador deste romance é impiedoso, arrancando de seus personagens analisados constatações sob camadas de proteção, como transparece nestas duas passagens abaixo.

Sobre Augustine:

“Observava naquelas mulheres emoções que ele mesmo nunca tinha sentido, testemunhando a dor que causara sem o mínimo lampejo de compaixão. Tentava se lembrar: será que havia amado sua mãe ou só a havia manipulado em nome do próprio conforto? Será que, mesmo naquela época, conduzia experimentos com ela para ver o que funcionava e o que não funcionava? Será que ele sempre tinha sido daquele jeito? O fato de essa possibilidade não chegar a perturbá-lo parecia tornar tudo ainda mais plausível.” (página 185)

Sobre Sully:

“Trabalhar era um alívio. Sully não queria fazer intervalos para não correr o risco de perder a concentração absoluta em que vinha mantendo seu pensamento confinado, mas estava tão exausta que a atenção lhe escapara. Thebes tinha trabalhado a seu lado na cabine de comunicações por boa parte da manhã. Eles não tinham falado nada sobre a caminhada espacial – não tinham falado sobre nada, que não fosse a tarefa daquele momento.” (página 216)

Algo que muitos leitores não gostaram neste romance é que a autora, em momento algum, nos informa, nem por uma tênue pista, sobre o que teria acontecido ao planeta Terra. Todos se evadiram dele, mas nem os tripulantes da Aether têm qualquer informação sobre o que teria acontecido.

Não sigo a ideia de que esta é uma falha da narrativa. Em duas passagens, a autora deixa claro ter sido esta uma opção sua, fazendo seus personagens terem apenas suspeitas, desenvolvendo raciocínios especulativos:

“— Melhor do que eu esperava. Esses postos de pesquisa têm um estoque impressionante. Não sei se foi guerra nuclear ou química ou sabe-se lá o quê, mas os efeitos aqui nesta região são imperceptíveis. A vida selvagem continua saudável, nenhum sinal de radiação. Câmbio.” (página 248)

“— Queria estar brincando – desse ele. – Pensem nisso. Se esse cara está tentando fazer contato por todo esse tempo e não conseguiu ouvir nadinha até agora... Sei lá, se alguma catástrofe aconteceu, quais seriam os lugares mais seguros... os lugares com menos radiação? Seriam os polos. Pois é. Exatamente onde ele está. É possível que ele seja a última pessoa viva.” (página 254)

Outro ponto anotado por alguns leitores, como defeito, os personagens não são revoltados contra o que os prende. São sem arrependimentos por suas opções que, afinal, se revelam complicadas. Nenhum deles tenta mudar nada, impondo mudanças. Mas aí é que está: não seremos, na maioria, como eles? Gastamos nossas vidas em trabalhos que não nos retornam satisfação, fazemos coisas de que não gostamos. Daí, talvez, nosso incômodo com personagens que não reagem.

O Céu da Meia-Noite é uma narrativa que me incomodou. Talvez, com a sensibilidade algo à flor da pele por conta de um longo período de quarentena, nesta pandemia de Coronavírus, uma imersão num livro sobre solidão tenha me afetado mais do que o previsto.

Uma ficção científica “diferentona”, tem vários pontos de contato com 2001 – Uma Odisseia no Espaço, ou mesmo Contato, baseado no livro de Carl Sagan. Aliás, isto é dito com todas as palavras na entrevista da autora, na revista da TAG.

Uma experiência leitora deve valer a pena, de alguma forma. Esta valeu. Certamente, não é uma obra perfeita. Em várias passagens, apesar de estar consciente de ser proposta da autora, achei o ritmo narrativo um pouco lento. A trama também poderia ter sido melhor trabalhada; não há surpresas. Mesmo a revelação final – calma aí com o spoiler! – não é surpresa. Quem tem costume de ler não se surpreende. O maior valor da obra é propor-se a ser uma ficção científica diferente.

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Resenha nº 173 - Notas para uma definição do leitor ideal, de Alberto Manguel

 

 




Título: Notas Para Uma Definição Do Leitor Ideal

Autor: Alberto Manguel

Tradutores: Rubia Goldoni e Sérgio Molina

Editora: SESC

Copyright: 2020

ISBN: 978-65-86111-19-4

Gênero: Ensaios


 

Este é o terceiro livro de Alberto Manguel que resenho neste blogue. Os anteriores são: A Biblioteca à noite e O leitor como metáfora. O leitor poderá até me questionar por que, aparentemente, gosto tanto deste autor, não sendo ele um ficcionista. Não espero que minha resposta o convença, meu caro amigo.

Alberto Manguel diz coisas muito pertinentes, este o meu primeiro motivo. Ele fala sobre livros e leitura com bastante amplitude de visão, este o meu segundo. E, se houver necessidade de um terceiro, Manguel escreve muito, muito bem; sempre aprendo alguma coisa com ele.

Isto posto, vamos ao livro. É um conjunto de ensaios sobre livros – reunião de ensaios proferidos em tempos e circunstâncias diferentes. De um tempo para cá, quando vou fazendo minha leitura, com o hábito definitivamente estabelecido de resenhá-la, vou colando post-its contendo várias observações. Não gosto de rabiscar meus livros, nem mesmo com lápis. Por si só, isto já evidencia meu apreço pelo objeto livro. Dou-me ao luxo de fazer anotações a caneta, sem estragar os livros.

No presente caso, vou optar por transcrever várias destas passagens interessantes da obra. Alberto Manguel foi leitor de um ícone da ficção, Jorge Luís Borges. Foi diretor da Biblioteca Nacional da Argentina.

Sem mais delongas, comecemos, pois.

“É verdade: num desconcertante jogo de espelhos, todas as palavras utilizadas para definir uma determinada palavra num dicionário qualquer devem, elas mesmas, estar definidas nesse mesmo dicionário. Se somos, conforme acredito, a língua que falamos, os dicionários são nossas biografias.” (Elogio ao dicionário, página 33)

“Desde o tempo de Gilgamesh, os escritores sempre se queixaram da mesquinharia dos leitores e da avareza dos editores. E no entanto, todo escritor encontra, ao longo de sua carreira, alguns notáveis leitores e alguns generosos editores. ‘Vendi sete exemplares’, diz o protagonista de Nightmare Abbey, de Thomas Love Peacock. ‘Sete é um número místico, e o augúrio é excelente. Se eu encontrar os sete leitores que compraram meus sete exemplares, serão como sete candelabros de ouro com que iluminarei o mundo inteiro.” (Autor, editor, leitor, página 39)

“Se a encadernação artesanal, ainda hoje, dá a um livro uma identidade única e particular, as capas impressas, sobretudo a partir do século XIX, passam a ilusão de uma uniformidade democrática. Curiosamente, porém, essa mesma uniformidade pode dar a um livro uma nova vida. Com outra capa, com outro design, certo texto torna-se original.” (Breve história das capas, página 43)

“Até que, em 1566, Aldo Manuzio, o jovem neto do grande impressor veneziano a quem devemos a invenção do livro de bolso, definiu o ponto no seu manual da pontuação, o Interpugendi ratio. Com seu latim claro e inequívoco, Manuzio descreveu pela primeira vez seu papel e aspecto definitivo. Pensava preparar um manual para tipógrafos, não tinha como saber que estava legando a nós, futuros leitores, os dons do sentido e da música para toda a literatura posterior: Hemingway e seus staccati, Becket e seus recitativos, Proust e seus longos sostenuti.” (O ponto, página 46)

“Todo leitor se reflete em suas leituras de duas maneiras. Primeiro, porque a escolha dos títulos e a ordem em que se encontram revelam a lógica e a estética do leitor; segundo, porque as páginas obviamente lidas, marcadas com sinais e observações, apontam trechos em que esse leitor sentiu sua própria voz, suas próprias alegrias e temores, descobertos e traduzidos por palavras.” (Censura e sociedade, página 49)

“A sociedade de consumo não tolera os leitores, os verdadeiros leitores; quer apenas leitores diletantes, consumidores da papinha de bebê, pessoas convencidas de que não são suficientemente inteligentes para ler a chamada literatura séria. Essa é outra forma de censurar os livros: fazer-nos acreditar que não os merecemos.” (Censura e sociedade, página 50)

“Todo leitor, em geral, quando criança, faz uma descoberta fundamental: que o lobo que ameaça Chapeuzinho é e, ao mesmo tempo, não é um animal feroz e real, que Chapeuzinho é e, ao mesmo tempo, não é o próprio leitor que segue pela página, que o lenhador que resgata a menina é e, ao mesmo tempo, não é uma promessa de redenção. Esse entendimento duplo do mundo, essa descoberta de que a inteligência e a imaginação de cada um de nós são os instrumentos mais preciosos para desentranhar o mundo que nos rodeia, essa revelação que nos é dada através de palavras que narram uma história inventada, mas que sabemos nossa, concreta e verdadeira, isso é algo que só os livros, magicamente, podem nos dar.” (Censura e sociedade, página 55)

“A saga do boneco é a da educação de um cidadão, o velho paradoxo da pessoa que quer ser aceita na sociedade normal enquanto, ao mesmo tempo, tenta descobrir quem ela é na verdade, não como parece aos olhos dos outros, mas aos seus próprios. Pinóquio quer ser um menino de verdade, mas não um menino qualquer, não uma versão obediente e em miniatura do cidadão ideal. Pinóquio quer ser o que ele é por baixo da madeira pintada.” (Como Pinóquio aprendeu a ler, página 58)

“A linguagem pode permitir ao falante permanecer na superfície do pensamento, repetindo lemas dogmáticos e lugares-comuns em branco e preto, transmitindo mensagens em vez de significados, pondo o peso epistemológico no ouvinte (como na frase “você sabe do que estou falando”). Ou pode ajudá-lo a recriar uma experiência, dar forma a uma ideia, explorar profundamente, e não apenas na superfície, a intuição de uma revelação.” (Como Pinóquio aprendeu a ler, página 61)

“Há um feroz paradoxo no seio de todo sistema escolar. Uma sociedade deve transmitir a seus cidadãos o conhecimento dos códigos que a regem, de modo que todos possam participar ativamente dela; mas o conhecimento desses códigos, além da mera capacidade de decifrar um slogan político, um anúncio publicitário ou um manual de instruções, permite a esses mesmos cidadãos questionarem a sociedade, exporem seus males e buscarem uma mudança.” (Como Pinóquio aprendeu a ler, página 65)

“É notoriamente sabido que Cervantes afirma que sua invenção é uma tentativa de acabar com as tolices difundidas pelos livros de cavalaria, histórias, diz ele, “fingidas e desatinadas”. Não sabemos se ele atingiu esse declarado propósito: afinal, o que são Batman e o Homem-Aranha senão êmulos do Cavaleiro da Ardente Espada e de Florismarte de Hircânia? O que sabemos, sim, é que sua criação superou essa tentativa moralizante e escapou dela, o que faz de D. Quixote muito mais que uma paródia de má literatura.” (A leitura como ato fundador, página 72)

“A tarefa infinita do leitor, que é percorrer a biblioteca universal em busca de um texto que o defina e subvertê-lo, multiplica-se (se é que o infinito pode se multiplicar) quando esse leitor assume sua condição de tradutor. Então todo texto resgatado da página se desdobra numa miríade de outros, transformados nos vocabulários desse leitor, redefinidos em outros contextos, outras experiências, outras memórias ordenadas em outras estantes.” (A outra escrita, página 78)

“O reverso do mito de Babel é o reconhecimento de que viver juntos implica utilizar a linguagem para conviver, já que é uma função que exige tanto a consciência de si mesmo como a consciência do outro, entender que há um eu que transmite a informação a um tu para dizer “Este sou eu, é assim que eu te vejo, estas são as normas e os acordos que nos mantêm unidos através do espaço e acima do tempo.” (A construção da torre de Babel, página 154)

“Há três tipos de leitores: primeiro, o que desfruta sem julgar; terceiro, o que julga sem desfrutar, entre os dois, o que julga enquanto desfruta e desfruta enquanto julga. Esse último tipo recria a obra de arte de forma nova e verdadeira; não forma um grupo numeroso." (Goethe, em carta a Johann Friedrich Rochlitz, páginas 165/166)

Alberto Manguel é, ele mesmo, meu modelo de leitor. Consegue tirar ilações usando a obra que tem em mãos, a um tempo, extrapolando-a e respeitando-a. Afinal, como nos dizia outro autor sensacional, o semiólogo Umberto Eco, o bom leitor respeita os limites do texto. Em outras palavras, não serve qualquer construção de raciocínio interpretativo, mas sim aquele que guarda o princípio de coerência.

Complexa questão que vai muito além do que propunham os formalistas russos, para quem a interpretação deveria estar estritamente orientada pela forma. Há o contexto. Entretanto, magicamente, o bom leitor articula conhecimentos contextualizados, autorizados pelo texto que lê.

Para quem considera as complexidades do fenômeno da leitura, este Notas para uma definição do leitor ideal, de Alberto Manguel, é mais uma pérola de reflexão sobre o ato de ler.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Resenha nº 172 - A Revolução dos Bichos, de George Orwell

 



Título: A Revolução dos Bichos

Título original: Animal Farm

Autor: George Orwell

Tradutor: Fábio Bonillo

Editora: Gutenberg/TAG

Copyright: 2021

ISBN: 978-65-86553-43-7

Literatura inglesa


Uma fábula do século XX. Numa época em que o gênero literário parecia superado, eis que Eric Arthur Blair – mais conhecido pelo pseudônimo de George Orwell – nascido na Índia Britânica vai contra as tendências e nos dá uma fábula.

Mas, o que seria uma fábula? Bem, é um gênero textual em que personagens são animais. A estrutura narrativa é simples e direta e visa a transmitir uma mensagem, um conselho ou uma moral. Seus personagens não costumam ser complexos, assemelhando-se a tipos.

E é aí que está o pulo do gato – perdoem-me a associação fabulística – deste A Revolução dos Bichos. São poucas as vezes que podemos ver tão claramente um projeto literário sendo posto em prática:

“Ao retornar da Espanha, pensei em expor o mito soviético em uma história que pudesse ser facilmente entendida por quase qualquer um e que pudesse ser facilmente traduzida para outros idiomas. No entanto, por algum tempo, os próprios detalhes da história não me ocorreram, até que um dia (eu então vivia numa pequena aldeia) vi um garotinho, de talvez dez anos de idade, conduzido uma enorme carroça por um caminho estreito, açoitando o cavalo sempre que tentava virar. Ocorreu-me que, se calhasse de os animais se tornarem cientes da própria força, nós não teríamos poder sobre eles, e que os homens exploram os animais de maneira muito parecida com a maneira como os ricos exploram o proletariado.” (prefácio, página 10/11)

E Orwell segue, nos dando notícia de ter procedido a uma análise da teoria de Marx do ponto de vista dos animais. Completa, ressaltando a semelhança com a história real da Revolução Russa.

A Revolução dos Bichos se inicia nos dando notícia de uma importante reunião dos bichos da Fazenda Manor, sob o comando do Sr. Jones. Ele esquecera de trancar as portinholas dos galinheiros. Estava muito bêbado para isto. Todos os animais foram convocados pelo velho Major, um porco de aparência majestosa, sábio e benevolente. Os bichos foram chegando e se acomodaram dentro daquele grande celeiro.

Começa seu discurso constituindo-se como portador de sabedoria, tendo tido uma vida longa e experiências várias. Teve tempo para refletir sobre a situação dos humanos e dos animais e chegara a importantes conclusões, a serem partilhadas com seus confrades:

“O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Ele não dá leite, ele não põe ovos, ele é fraco demais para conduzir o arado, ele não corre rápido o bastante para apanhar coelhos. Contudo, ele é o senhor de todos os animais. Ele os põe para trabalhar, ele lhes restitui o mínimo para impedir que morram de fome, e o restante ele guarda para si. Nosso trabalho lavra a terra, nosso adubo a fertiliza, e contudo não há nenhum entre nós que possua mais do que a própria pele.” (página 33)

Major lhes conta seu sonho da noite anterior. Vislumbrara como seria a Terra depois que o Homem perdesse o poder sobre os animais. Compusera até um hino, chamado Bichos da Inglaterra, que, ironicamente, o narrador de Orwell diz situar-se entre “Clemetine” e “La cucaracha”. O discurso e o hino tiveram o efeito de uma bomba. A algazarra foi tanta, que o Sr. Jones acordou e acabou com a festança.

O visionário porco Major morreu pouco tempo depois. Dois jovens porcos, Napoleon e Snowball, foram então alçados ao comando da bicharada e batizaram a nascente filosofia do Major de Animalismo.

“Napoleon era um porco berkshire de grande porte e aparência assaz feroz, o único de sua raça na fazendo, pouco afeito à conversa, mas com reputação de conseguir o que queria. Snowball era um porco mais vivaz que Napoleon, de fala mais ágil e engenhoso, mas não era considerado dono da mesma profundeza de caráter.” (páginas 41/42)

Tipos vão se delineando, então. Temos Mollie, uma égua frívola e narcisista. De um modo geral, os cavalos continuam sendo meio imbecis e só podem contribuir com a força bruta. As ovelhas são subservientes, pois é de sua natureza seguir um pastor. Há também Moses, um corvo adestrado, falador e que convence alguns da existência de um lugar chamado Montanha do Açúcar-Cande – o paraíso perdido para onde irão todos os animais um dia.

Os animais conseguem se organizar e tomar a Manor Farm. Expulsam o Sr. Jones, dono da fazenda e seus empregados. A mulher do dono, vendo tudo da janela da casa, junta algumas de suas coisas na mala e foge por outro caminho. Liderados por Napoleon e Snowball, os bichos adotam os sete mandamentos do Animalismo, a saber:

  1. O que quer que ande sobre duas pernas é um inimigo.
  2. O que quer que ande sobre quatro pernas ou tenha asas é um amigo.
  3. Nenhum animal deve usar roupas.
  4. Nenhum animal deve dormir em uma cama.
  5. Nenhum animal deve ingerir álcool.
  6. Nenhum animal deve matar outro animal.
  7. Todos os animais são iguais.

Os bichos contam com uma filosofia, um hino. Também agora têm uma bandeira e uma estrutura; há os Comitês Animais: o Comitê do Produção de Ovos, a Liga dos Rabos Limpos, o Movimento por uma Lã Mais Branca.

Derivado de um dos sete mandamentos e guindado à posição de palavras de ordem, os animais se repetem a máxima “Quatro pernas, bom, duas pernas, ruim” à exaustão.

Os animais sabem muito bem dos perigos de serem os novos donos da fazenda, cercados que estão por fazendeiros humanos. Estes tentam retomar a fazenda, divulgando mentiras como “A Fazenda dos Bichos” está em decadência, está falindo, etc. Não é o que acontece. Para progredirem, os próprios animais vendem seus produtos e, com o dinheiro, realizam melhorias. Os pombos são encarregados de observarem os humanos e trazerem as notícias, funcionando como verdadeiras mídias sociais.

Pouco a pouco, disputando o poder, Napoleon e Snowball começam a discordar. Esta discordância se torna tão intensa que Napoleon toma o poder só para si, joga os cães que, em segredo, formam sua tropa de choque, sobre Snowball e dá um golpe de estado. Realiza uma rebelião dentro de uma rebelião.

Squealer é outro porco, sob as ordens de Napoleon, com a função de divulgar fake news, sempre que for do interesse do chefe. É uma espécie de “ministro das comunicações”. Induz, manipula, confunde. A tempo: a palavra inglesa squealer significa “delator”.

Esta obra é muitíssimo conhecida, por isso, não vou me incomodar com spoilers. Sempre haverá, não obstante, quem não tenha ouvido falar dela; a estes, direi que em nada os spoilers comprometem a leitura, pois o grande lance do livro é ver como as coisas, pouco a pouco, vão acontecendo em analogia com os acontecimentos da época e, ainda, com o mundo no qual vivemos.

O mito vai-se construindo:

“Napoleon, agora, jamais era referido simplesmente como ‘Napoleon’. Sempre se referia a ele, em estilo formal, como ‘Nosso Líder, Camarada Napoleon’, e os porcos gostavam de inventar-lhe títulos tais como Pai de Todos Os Animais, Terror da Humanidade, Protetor do Rebanho, Amigo dos Patos e congêneres. Em seus discursos, Squealer falava, com lágrimas a lhe rolar pelas bochechas, da sabedoria de Napoleon, da bondade de seu coração e do profundo amor que dedicava a todos os animais de toda parte, mesmo e especialmente aos animais infelizes que ainda viviam na ignorância e na escravidão em outras fazendas. Tornara-se habitual dar a Napoleon o crédito por todo feito bem-sucedido e todo golpe de sorte. Com frequência se ouvia uma galinha comentar com outra: “Sob a orientação do nosso Líder, Camarada Napoleon, botei cinco ovos em seis dias”; ou duas vacas, desfrutando de água no tanque, exclamavam: “Graças à liderança do Camarada Napoleon, como é excelente o gosto desta água.” (página 113)

A ironia de Orwell, através da boca do seu narrador instituído, nos dá a notícia de que logo-logo os porcos estavam recebendo um quartilho de cerveja por dia, com dois litros para o consumo do próprio Napoleon. Os suínos ocupam a casa da fazenda e suas refeições são servidas em terrinas Crown Derby.

Certo dia, surpreendem Napoleon caminhando ereto, sobre duas pernas. E a máxima que, à força de tanta repetição, sabiam de cor, fora alterada. Agora, era: “Quatro pernas, bom, duas pernas, MELHOR”. E poucos se incomodaram, quando leram no muro, no lugar onde outrora estavam estampados os sete mandamentos, estava um só: “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros.”

Há livros que envelhecem, irremediavelmente. Entretanto, há os que não envelhecem, pelo menos, enquanto a humanidade for o que é.

A Revolução dos Bichos é uma obra-prima porque teve muito a dizer a sua época e continua tendo a dizer à atual. Concebido, em parte como uma crítica direta à revolução comunista, o autor não circunscreveu sua crítica social à sua época, dotando seu texto de universalidade.

Napoleon é associado à figura de Stalin; impõe-se pela autoridade ditatorial. Snowball, mais ameno ou mais sagaz, é associado à imagem de Trotsky, o argumentador, o intelectual e que, depois, sofre a perseguição do comunismo. Morto no México, corre até hoje a teoria de conspiração de que fora assassinado pelo regime ao qual servira.

O texto límpido de Orwell nos possibilita ampliar a chave e entender Napoleon como a representação de qualquer detentor de poder que explore seus comandados. No lugar de “detentor de poder” quase disse político, referência indevida, corrigida a tempo.

Afinal, esta é uma obra literária. Qualquer semelhança com a realidade de qualquer país atual terá sido mera coincidência, claro.