Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Resenha Nº 177 - O Mundo Se Despedaça, de Chinua Achebe

 

Título original: Things fall apart

Autor: Chinua Achebe

Tradutora: Vera Queiroz da Costa e Silva

Edição: TAG/Companhia das Letras

Copyright: 1958

ISBN: 978-85-359-3280-5

Gênero literário: Romance

Origem: romance africano em inglês




Albert Chinualumogu Achebe – mais conhecido como Chinua Achebe – nasceu no vilarejo de Ogidi, na parte oriental da Nigéria. Nasceu em 16/11/1930 e veio a falecer em Boston, EUA, em 21/03/2013. Romancista, poeta, crítico literário, foi um dos autores africanos mais conhecidos do século XX. Ao todo, foram 30 livros publicados, entre romances, contos, ensaios e poesias. Sua obra mais conhecida é este O mundo se despedaça, tendo sido publicada em 1958, quando nosso autor contava com 28 anos de idade. Achebe foi um crítico de como os autores estrangeiros representavam a África em seus trabalhos – notadamente, Coração das trevas, de Joseph Conrad.

Em 2007, ganhou o Prêmio Internacional Man Booker. Viajou várias vezes aos Estados Unidos, para lecionar até que resolveu mudar-se definitivamente para lá, após sofrer um acidente automobilístico que o deixou com dificuldades de locomoção.

O mundo se despedaça é uma obra extremamente importante para a literatura e cultura não só nigeriana, como para todo o continente africano. Na introdução ao volume, Alberto da Costa e Silva nos diz que

“Se perguntado sobre o livro em que mais se reconhece, é muito provável que um ibo responda: O mundo se despedaça, de Chinua Achebe. Não que se trate de um livro perfeito, acrescentará. Mas há obras imperfeitas que se tornam clássicas, criam um modelo, determinam caminhos. Como este O mundo se despedaça, de Chinua Achebe, que serve de fundação a grade parte do romance nigeriano contemporâneo.” (página 7)

Responsável pela fusão entre o romance de tradição europeia e a transmissão oral dos ibos, Chinua Achebe constrói um narrador que inicia da seguinte forma seu texto:

“Toda a gente conhecia Okonkwo nas nove aldeias e mesmo mais além. Sua fama assentava-se em sólidos feitos pessoais. Aos dezoito anos, trouxera honra à sua aldeia ao vencer Amalinze, o Gato, um grande lutador, campeão invicto durante sete anos em toda a região de Umuófia a Mbaino. Amalinze  recebera o apelido de o Gato porque suas costas jamais tocaram o solo. E foi ele quem Okonkwo derrotou, numa luta que, na opinião dos mais velhos, fora das mais renhidas desde a travada, durante sete dias e sete noites, entre o fundador da cidade e um espírito da floresta.” (página 23)

Percebem-se, neste parágrafo inicial, aspectos estilísticos que irão permear este romance. Frases longas e de vocabulário simples retratam bem o ritmo das narrativas orais. A valorização do inimigo (Amalinze não era um oponente qualquer, mas estava invicto há tempo), como meio de valorizar o feito do protagonista Okonkwo é também comum nas narrativas populares, e mesmo nas epopeias da antiguidade clássica (veja-se Odisseia, de Homero). Elementos místicos, aqui representados pela recorrência do número sete (a luta fora travada durante sete dias e sete noites) e que tanto marcam todas as narrativas fundantes em qualquer cultura têm seu lugar.

Okonkwo, o herói deste romance, “crescera qual incêndio na mata no tempo do harmatã (vento seco e frio, carregado de uma areia muito fina, que sopra do deserto do Saara sobre as savanas, os cerrados e as florestas da África Ocidental, como nos orienta o glossário no fim do livro).

Lá pelas páginas 26, anotei num post-it: nestas primeiras páginas já vai dando para perceber algumas coisas:

  • a quantidade de esposas dá a medida da prosperidade de um homem;
  • a noz de cola é algo muito importante dentro da cultura igbo (ou ibo), uma preciosidade que se dá ao outro, como prova de amizade ou apreço;
  • a música também é muito importante culturalmente. Elas transmitem não só a alegria, a comemoração por vitórias, como também propagam e asseguram a cultura.

Um trecho revelador dos costumes ancestrais está bastante presente abaixo:

“Mas essa noite em especial estava escura e silenciosa. E em todas as nove aldeias de Umuófia um pregoeiro com seu agogô pedia a cada um dos habitantes que estivesse presente ao encontro da manhã seguinte. Okonkwo, em sua cama de bambu, tentava imaginar qual seria a natureza da crise – guerra contra um clã vizinho? Essa parecia ser a hipótese mais provável, e ele não tinha medo de guerra. Era homem de ação, homem de guerra. Ao contrário do pai, era perfeitamente capaz de ver sangue. Durante a última guerra de Umuófia, fora o primeiro a trazer para casa uma cabeça humana. Era sua quinta cabeça; e ele ainda não era velho. Nas grandes ocasiões, como o funeral de alguma celebridade da aldeia, bebia o vinho de palma no primeiro crânio que cortara.” (página 30)

A cultura ibo é permeada pelo culto aos ancestrais e a seus deuses. Oráculos, feitiços poderosos fazem parte de sua mitologia. Há oferendas a esses deuses e a proximidade com as religiões de matriz africana do Brasil é bastante evidente. A economia gira ao redor do inhame e a criação de bodes.

O herói de nossa narrativa não descendia de família com posses; Unoka, pai de Okonkwo, não entendia por que sua vida não dava certo. Consultara, certa vez, a poderosa sensitiva de Agba:

“Há muitos anos, quando Okonkwo ainda era menino, seu pai, Unoka, fora consultar o oráculo de Agbala. Naquele tempo, a sacerdotisa era uma mulher de nome Chika. Estava cheia de poder de seu deus e era muito temida. Unoka ficou de pé diante dela e começou sua história.

— Todos os anos – disse ele, abatido – antes de colocar uma só semente na terra costumo sacrificar um galo a Ani, a deusa da terra. É a lei de nossos pais. Também sacrifico um galo no altar de Ifejioku, o deus dos inhames. Limpo o mato e lhe toco fogo, quando está seco. Planto os inhames depois da primeira chuva e os escoro, quando as gavinhas novas começam a aparecer. Capino as ervas dani...

— Cale-se! – gritou a sacerdotisa, com uma voz terrível, que ecoava no escuro vazio. – Você não ofendeu nem os deuses nem seus ancestrais. E quando um homem está em paz com os deuses e com seus antepassados, sua colheita será boa ou má, conforme a força de seus braços. Você, Unoka, é conhecido em todo o clã pela fraqueza de seu machete e de sua enxada. Enquanto seus vizinhos vão com seus machados derrubar as martas virgens, você planta inhames nas terras exaustas, que não dão trabalho algum para limpar. Seus vizinhos cruzam sete rios para fazer seus roçados; você fica em casa e oferece sacrifícios por um solo cansado. Vá para casa e trabalhe como homem!” (páginas 37/38)

Temos aqui, então, um trauma entre Okonkwo e seu pai, para dizer com Freud. Unoka representa tudo o que o protagonista desta história não deseja ser e, com isso, não é a coragem que orienta suas decisões, mas o medo. Medo de ser como o pai, por isso, reafirma-se diferente: corajoso, trabalhador, próspero.

Outro ponto a se notar é a importância dos provérbios e ditados populares, tão importantes dentro desta cultura. Têm como base uma verdade absoluta, aplicada às situações reais da vida. Emergem da perpetuação da autoridade dos mais velhos, dos ancestrais (refletem a sabedoria dos anciãos).

As narrativas fundadoras estão presentes, também:

“Lembrava-se da história, que sua mãe tantas vezes contara, da briga entre a Terra e o Céu, muito tempo atrás, e de como o Céu negou chuva durante sete anos, até que as plantações todas secaram e os mortos não mais puderam ser enterrados, porque as enxadas se partiam contra a Terra endurecida. Finalmente o Abutre foi enviado ao Céu, para suplicar-lhe perdão e amolecer-lhe a alma com uma cantiga em que se falava dos sofrimentos dos homens. Sempre que a mãe de Nwoye entoava essa canção, ele sentia-se transportado até aquela cena distante, no Céu, onde o Abutre, emissário da Terra, cantava, a implorar misericórdia. Por fim, o Céu apiedou-se e entregou ao Abutre chuva enrolada em folhas de cará. Mas, à medida que ele voava de volta para casa, suas garras pontiagudas iam perfurando as folhas; e a chuva caiu, como nunca dantes. Caiu tão pesadamente que o Abutre não regressou à casa para transmitir a mensagem, voando para um lugar muito distante, onde divisara uma fogueira. Quando lá chegou, viu que um homem oferecia um animal em sacrifício. Aqueceu-se junto à fogueira e comeu as entranhas da vítima.” (páginas 72/73)

Pouco a pouco, entretanto, uma nova ameaça se infiltra neste mundo. Uma ameaça que vem do exterior, a princípio não compreendida e, por isso mesmo, desdenhada:

“Quando, passados quase dois anos, Obierika fez uma nova visita ao amigo exilado, as circunstâncias eram outras, bem menos felizes. Os missionários tinham chegado a Umuófia. Ali construíram uma igreja, lograram algumas conversões e já começavam a enviar catequistas às cidades e aldeias vizinhas. Isso constituía motivo de grande pesar para os líderes do clã, embora muitos deles acreditassem que aquela estranha fé, bem como o deu do homem branco, não durariam. Nenhum dos convertidos era homem cuja palavra fosse levada em consideração nos comícios. Nenhum possuía título. Pertenciam, na maioria, àquela espécie de gente que costumavam chamar de efulefu, isto é, pessoas vazias, sem valor na linguagem do clã, um efulefu era um homem capaz de vender seu facão e usar a bainha para guerrear. Chielo, a sacerdotisa de Agbala, chamara os convertidos de excrementos da tribo, e a nova fé, para ela, era um cachorro raivoso que viera devorar os excrementos.” (página 163)

O catolicismo, levado pelo homem branco e, junto com esta nova religião, a cultura que a acolhia e a mantinha, começava a alterar o modo igbo de ser. O fenômeno da imposição de uma cultura de maior prestígio não se restringe, naturalmente, à África; ela se repetiu ao longo da História, por exemplo, com a superposição do Latim sobre o Grego. Várias estátuas de bronze, que representavam deuses pagãos foram derretidas para irem compor, sob nova forma, as colunas sustentadoras do Vaticano.

O mundo se despedaça é um ótimo título. Um verdadeiro clássico, como o disse Alberto da Costa e Silva, em sua introdução. Clássico no sentido de uma obra de referência importante. Se puder, leitor amigo, leia este livro, sem perda de tempo. Leia-o não só para entender um pouco da multifacetada e sofrida África. Ele nos ajuda a compreender como o homem se torna lobo do homem, não importando quais instrumentos sejam utilizados para tal dominação.

Mas – você me perguntará – o que acontece com Okonkwo? E com suas mulheres? Filhos, amigos? Sinto muito, não lhes posso revelar, desejo ser discreto. Não gosto de estragar a leitura dos outros. Para saber o que acontece com os personagens desta narrativa, leia o livro. Pode não ser perfeito, mas é muito bom. Recomendo.

Nenhum comentário: