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domingo, 11 de dezembro de 2016

Resenha nº 84 - O Poste de Vapor, de Ferenc Molnár

Título: O Poste de Vapor
Título Original: A gözoszlop
Autor: Ferenc Molnár
Tradutor: Paulo Schiller
Editora: Cosac Naify
Copyright: 2005
Páginas: 90
ISBN: 85-7503-432-4
Posfácio de Samuel Titan Jr.
Gênero Literário: Novela
Nacionalidade: Literatura Húngara
Bibliografia do autor: 1901 - Az éhes város;1901 - Egy gazdátlan csónak története; 1907 - A Pál utcai fiúk (no Brasil: Os meninos da rua Paulo, também adaptado como peça de teatro no Brasil); 1908 – Muzsika; 1916 - Egy haditudósító naplója; 1933 - A zenélő angyal; 1938 - A zöld huszár; 1950 - Útitárs a száműzetésben – Jegyzetek egy önéletrajzhoz; 1952 - A Dohány-utca és a Körút-sarok. Escreveu, ainda, cerca de 58 peças de teatro.

Ferenc Molnár (1878-1952) nasceu em Budapeste, no seio de uma abastada família judia. Ainda jovem, conquistou enorme sucesso como jornalista, romancista e dramaturgo – peças como Liliom (1909), Carnaval (1916), O Cisne (1921) ou Farsa no Castelo (1925) alcançaram sucesso muito além das fronteiras húngaras. Com a ascensão do nazismo, exilou-se nos Estados Unidos, onde veio a falecer em 1952, num hotel de Nova York. De sua autoria, a Cosac Naify publicou o clássico Os meninos da Rua Paulo, de 1907, na tradução de Paulo Rónai.
Até bem pouco tempo, tudo o que me lembrava do escritor húngaro Ferenc Molnár era ele ter escrito um clássico lido durante minha adolescência, de nome Os meninos da rua Paulo. Os personagens Boka, Nemeczek, Chico Áts participando da sociedade do betume entraram para o rol dos seres imaginários que povoavam minha cabeça. Era uma edição modesta, de bolso, da Ediouro; lembro-me bem, havia uma capa amarela, mas não me lembro mais se fora leitura recomendada pelo professor ou se fora de minha própria iniciativa.
Agora, chega-me às mãos esse O poste de vapor. De início, um título estranho, criativo, mas indevassável sem a leitura do texto, quase tão indevassável como o é para nós o idioma húngaro, no qual foi escrito originalmente. É uma novela, uma pequena obra-prima desse autor quase desconhecido no Brasil. Este volume, que tenho em mãos, em nada me faz lembrar do outro, escrito de maneira tão lírica. Aqui, o tom é o de uma novela burlesca.
Tudo começa com a estranha figura de um capitão de cavalaria, um hussardo[1], segundo ele mesmo. Esse personagem não tem um nome que o identifique e, por isso, o narrador sempre se referirá a ele como “capitão”. E o encontro entre os dois se dá de maneira completamente insólita, na Ilha Margarida, na cidade de Budapeste. O acesso a essa ilha é feito através de uma ponte de ferro sobre o famoso rio Danúbio, unindo as duas partes – Buda, mais alta e Peste, mais baixa – e um braço ligando essa travessia à referida ilha. Pausa para uma curiosidade: a ponte de ferro foi construída pelo mesmo construtor da Torre Eiffel, de Paris.
O narrador frequentava, durante as férias, as instalações da Ilha Margarida; morava por um tempo no hotel e foi lá que ele avistou aquele que seria o personagem central da história. Como disse, o insólito envolveu este encontro. É que o capitão havia tomado um banho quentíssimo e, logo depois, saiu para a rua. Como o inverno estava rigoroso, o desnível entre a temperatura do ambiente e a temperatura corporal do capitão fez com que dele se desprendesse um “tubo” de vapor, criando a ilusão de um poste. Daí o nome estranho: O Poste de Vapor.
Ferenc Molnár nos dá um personagem amalucado, de imaginação exacerbada, hóspede indesejável ao hotel. Como aquele outro famoso personagem, Sherlock Holmes, o Capitão gosta de praticar tiro dentro do quarto do hotel. Atira contra fotografias de pessoas, compradas exatamente para esse fim.
As malucas aventuras desse hussardo – que, mais tarde descobre-se, nem era mesmo capitão de qualquer coisa –, algumas eróticas, são referidas ao longo do texto. Molnár nos dá um texto bastante compactado, no curto espaço de 74 páginas. Não posso contar muita mais da história, sob pena de realizar um spoiler. Há momentos em que essa preciosa novela nos faz lembrar de As Aventuras do Barão de Münchhausen, de G. A. Burger. Senão, veja o que nos diz Samuel Titan Jr., em seu utilíssimo posfácio:
“Narrando os feitos e as tribulações do capitão com sua pena veloz e galhofeira, de um mundanismo depurado e inteligente, Molnár monta um mecanismo sutil de personagens, situações e quiproquós que vai muito além da crônica de jornal. Como se a história do misterioso ‘poste de vapor’ guardasse algum segredo sobre a época anterior à Primeira Guerra Mundial e seu sonho de uma grande harmonia de ascensão burguesa, sonhos imperiais e ímpetos renovadores; como se o erotismo fantasioso e cavalheiresco desse hussardo fosse o motor de todo um mundo que insiste em girar a dois ou mais palmos acima do real. ”
Há um delegado do condado, que compõe a galeria de personagens estranhos. É um ser amalucado; romancista de um texto que ninguém poderá ler, tem uma técnica estapafúrdia:
“Trabalhava  havia meio ano num grande romance sobre a sociedade que era, com certeza, muito interessante, embora ninguém pudesse lê-lo, pois durante a redação o delegado tinha um hábito bem pouco prático: escrevia o romance inteiro num único pedaço de papel. Ao começar, preenchera toda a página. Depois, em vez de prosseguir em outra folha, tornou a escrever do alto da página cheia. Em seguida, ao chegar ao final do papel, continuou uma vez mais, imperturbável, na parte de cima. Quando me mostrou o romance, ele o escrevia havia seis meses. Se levarmos em conta que escrevia de seis a oito páginas por dia – sempre e apenas na mesma folha –, o romance devia ser verdadeiramente longo. No papel, não havia mais sombra de escrita. Transformara-se simplesmente num papel preto, como se o tivessem pintado. ” (página 15)
Situações igualmente desconcertantes são montadas nessa novela, como o trecho que se segue:
“O capitão e o farmacêutico enfrentaram-se como inimigos uma única vez. Organizaram uma competição e escolheram-me como árbitro. O objetivo da competição era saber qual deles seria capaz de comer as coisas mais absurdas. A razão de tudo havia sido eu mesmo, porque me espantara durante um jantar em que o capitão comera coxa de rã à milanesa. Como árbitro, dei a partida. O farmacêutico foi à cozinha do hotel, voltou e comeu um pequeno peixe vivo. Fez um grande sucesso. Diante disso, o capitão mordeu a borda de uma taça fina de champanha, moeu o vidro na boca e o engoliu. O farmacêutico, por sua vez, devorou a capa do diário Pester Lloyd, o artigo principal e a crônica, tudo até a última linha, sem trapaça. ” (página 22)
No começo desta novela estranha, o narrador está em Berlim e, ao atravessar a ponte Cornelius, que liga Berlim antiga à nova, observa algo que lhe chama a atenção:
“Por conta disso [a manutenção da ordem no trânsito na ponte], construiu-se, entre as pistas, um guarda de mentira, feito de madeira e vidro. Era um poste da altura e da largura de um homem, pintado exatamente na cor do uniforme verde-acinzentado dos guardas de trânsito de Berlim. A base do poste era coberta de tinta preta brilhante, que imitava com perfeição o barrete negro e lustroso dos guardas. ” (página 8)
Tudo neste livro soa estranho, deslocado – personagens, lugares, relatos. A leitura atenta nos revela, entretanto, uma sátira ferina a costumes, situações e fatos. É hora de acionar a contextualização. E eis que, à época em que Molnár escreveu esta obra, vivia ainda em Budapeste. Não havia iniciado a sua imigração. Que fatos sociopolíticos o levariam a realizar tal empreitada? Estamos diante do declínio do Império Austro-Húngaro, antes da Primeira Grande Guerra Mundial.
A importantíssima família dos Habsburgos governava um país muito grande, conhecido por Áustria. Na verdade, abrigava povos diferentes, com culturas e línguas diferentes. A região que hoje se conhece como Hungria fazia parte deste vasto império. Eles reivindicaram maior autonomia; em 1867, a antiga Áustria foi dividida em duas partes, mas com apenas um governo central. Nascia o Império Austro-Húngaro. Tal situação se manteve até 1918. Tal verdadeiro tapa-buracos satisfez os austríacos (falantes do alemão) e magiares (falantes do húngaro). Entretanto, outros grupos étnicos, como eslavos, bósnios, também desejavam ter seus próprios países. Essa tensão culminou no assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austro-húngaro, em Sarajevo, capital da Bósnia. Como o assassino era um bósnio de origem sérvia, como consequência, a Áustria declarou guerra à região da Sérvia e outros países foram entrando no conflito, desembocando na Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Ferenc Molnár, em seu O Poste de Vapor, por suas características satíricas, aborda exatamente a decadência dos hussardos (simbolizados na figura do capitão), dos barões e baronesas, dos palacetes antigos. Todo esse material crítico aponta – muito apropriadamente, na minha opinião – para uma contundente crítica social àquele sistema em declínio de um império que se esfacela. E, neste enquadramento, passa a fazer sentido a narrativa aparentemente incoerente, tão repleta de estranhamentos, fatos e personagens deslocados.
Leitura fortemente recomendada, para quem goste de explorar a contextualização que envolve uma importante obra literária de um autor quase desconhecido por essas terras brasilis.
Gostaria, já concluindo, de explicar ao leitor amigo deste blogue, como cheguei a este livro e a outros que, de tempos em tempos, postarei aqui: é que me encantei com a literatura do leste europeu, quando fiz uma viagem por esta parte da Europa. Não que saiba qualquer coisa do idioma húngaro, mas, de volta ao Brasil, fiz uma pesquisa e dei com nomes como Gyula Krúdy, Imre Kertész, Sandor Márai, Karel Čapek, Dersö Kostolanyi, etc. Eles vieram se somar a Milan Kundera, Franz Kafka e – obtive, outro dia, referências a respeito de Antal Szerb, conterrâneo de Ferenc Molnár.




[1] Hussardo: subst. masc., cavaleiro húngaro. 

domingo, 4 de dezembro de 2016

Resenha nº 83 - A Livraria Mágica de Paris, de Nina George

Resultado de imagem para a livraria mágica de paris resenhaTítulo: A Livraria Mágica de Paris
Título original: Das lavendelzimmer
Autora: Nina George
Tradução: Petê Rissatti
Editora: Record
Edição: 1ª
Copyright: 2016
ISBN: 978-85-01-10761-9
Gênero Literário: Romance
Nacionalidade: Alemanha
Bibliografia: com o nome de Nina George – (2013) A Livraria Mágica de Paris; (2010) The Moon Player; (2008) How the Hell; (2005) The Vocabulary of Men; (2003) The Way of the Warrior; (2003) Jack, Queen, Checked, Death; (2001) No Sex, No Beer and Lots of Dead. Como Anne West: (2009) What Women Dream and How To Get It; (2009) Sex for advanced skiers; (2009) Feeling - the feeling; (2009) Absolute Sex; (2007) Sex Goddesses Manual; (2006) One Day Sex; (2006)The Venus Effect;(2005) First Aid For Those in Love; (2004) Dirty Stories, Droemer Knaur; (2003) Kamasutra Without Hernia, as co-author; (2003) Why Men Are So Quick and Women Just Pretend; (1998) Good Girls Do It in Bed - Bad Ones Everywhere. Como Jean Bagnol: (2015) Commissarire Mazan and the blind angel; (2013) Commissaire Mazan and the heirs of the Marquis.
Como fica evidente em sua bibliografia, Nina George é uma autora prolífica. Este A Livraria Mágica de Paris é a única obra da autora com tradução para a língua portuguesa; pelo menos, é o que consegui apurar nas pesquisas pelo google. Nina nasceu em 30/08/1973, na cidade de Bielefeld, Alemanha. Publicou nada menos que 26 livros, entre literatura e não ficção, bem como mais de 100 contos. É jornalista, escritora e professora. Nina é casada com o também escritor Jens J. Kramer e divide seu tempo entre Hamburgo e a Bretanha. Este seu A Livraria Mágica de Paris já vendeu mais de um milhão de exemplares no mundo, sendo igualmente um sucesso de crítica.
A obra em questão é a história de Jean Perdu, possuidor de um barco-livraria, onde ele pratica a biblioterapia, isto é, a prescrição de livros para todos os males – físicos ou psíquicos. Ele se considera um “farmacêutico literário”. Portanto, seus clientes-pacientes saem da livraria com alguma indicação para seus males, após fazerem uma “consulta” com Monsieur Perdu. É um dom que ele tem, não explicado no livro, dom usado com bastante competência. Competência quase total. O quase, aí, é porque Jean, se resolve os problemas dos outros, não consegue solucionar o seu.
Há algum tempo, Jean Perdu tivera uma amante, por nome Manon Basset – uma mulher casada –, por quem se apaixonara. Certo dia, entretanto, ele acordara sem a presença da amante; existe apenas uma carta, na qual ela explica os motivos do seu sumiço. Mas Perdu não abre a carta por medo do que encontraria nela. E assim, os 21 anos vão se passando, o livreiro convive com o seu drama pessoal, com sua tristeza.
Perdu reside num prédio de apartamentos, localizado em Paris, à rua Montagnard. Aí residem pessoas interessantes, várias são frequentadoras do barco-livraria. A todos Perdu atende solicitamente.
Certo dia, aparece por lá Max, um escritor, que se tornará um amigo muito importante para nosso personagem principal. O livreiro, finalmente, resolve abrir e ler a carta de sua Manon. Quando o dono do barco resolveu partir para o interior da França, indo para a cidade de Sanary-sur-Mer, navegando pelo Rio Ródano. Vai finalmente em busca de maiores notícias de sua querida e inesquecível Manon.
Nesta viagem, conhece mais duas pessoas, as quais serão suas amigas: Samantha e o interessantíssimo Salvatore Cuneo. Enquanto isso, Jean Perdu escreve cartas e envia postais dos lugares por onde passa para Catherine, sua vizinha do prédio da rua Montagnard. Monsieur Perdu tivera uma quase relação íntima com ela, mas os medos dele não deram margem a que tal acontecesse.
Apesar de fixar residência em Sanary, onde trabalha numa livraria, é na localidade de Luberon que seu passado o espera. Conhecemos melhor Manon Basset por intermédio dos diários de viagem que são inseridos na trama; eles, pouco a pouco, vão compondo a personalidade de Manon, seus caminhos e suas escolhas.
Para Monsieur Perdu, há três categorias de clientes do seu barco-livraria:
“Os primeiros eram aqueles para quem os livros significavam o único sopro de ar fresco no sufoco do dia a dia. Seus clientes preferidos. Confiavam no que Monsieur Perdu lhes dizia que precisavam. Ou compartilhavam com ele suas vulnerabilidades, como ‘Por favor, nada de romances com montanhas, elevadores ou grande paisagens vistas de cima... tenho medo de altura’. [...]
“A segunda categoria de clientes só ia ao Lulu, nome original do barco-livraria ancorando no Port de Champ-Élysées, porque era atraída pelo nome do estabelecimento: La pharmacie littéraire. [...]
“Mas essas pessoas eram pouco irritantes se comparadas às do terceiro tipo, que se consideravam reis e rainhas, só que, infelizmente, não se comportavam como tal. Com tom de censura, sem nem lhe dar um Bonjour, sem olhá-lo na cara, tocando cada livro com dedos engordurados de pommes frites, questionavam Perdu: ‘O senhor não tem curativos adesivos com poemas? Não tem papel higiênico estampado com romances policiais? Por que o senhor não vende travesseiros infláveis de viagem? Faria bastante sentido numa farmácia literária’.” (páginas 19/20)
Samantha (Samy) torna-se amiga do livreiro, terá um papel importante no desenrolar da história. É dela, por exemplo, o conceito de mundo intermediário (ou tempo ferido):
“Tenho pensado com frequência nisso que Samy chamou de tempo ferido, de mundo intermediário. Em deixar para trás a soleira entre a despedida e o recomeço. Eu me pergunto se minha soleira acabou de começar... ou se já dura vinte anos. Você também conhece esse tempo ferido? A dor de amor é como a dor do luto? Essas são perguntas que posso te fazer?” (página 236)
Como não podia deixar de ser num livro sobre a função terapêutica da literatura, há diversas referências metaliterárias (quando a literatura faz referências à própria literatura):
“Monsieur Perdu pegou A elegância do ouriço do chão. A queda havia danificado a lombada. Ele teria de vender o romance de Muriel Barbery por um ou dois euros a um dos buquinistas que ficavam nas margens do rio e comercializavam livros em caixas que as pessoas fuçavam.” (página 19)
Há determinadas obras literárias (os clássicos, de um modo especial possuem essa característica) nas quais um determinado trecho, não necessariamente longo, joga luz sobre si próprio, fornece uma importante chave interpretativa ou fornece uma nuance sensorial que pode mudar a maneira pela qual vínhamos construindo o trabalho de interpretação, de entendimento ou mesmo de sentir o texto. Aconteceu com este A Livraria Mágica de Paris:
“— Porque você me ama, eu aprendo a me amar também – lhe dissera ela naquela manhã, quando o mar ainda estava azul-cinzento e meio adormecido. — Eu sempre aceitei o que a vida me ofereceu... mas nunca me ofereci. Eu não conseguia me esforçar por mim mesma. — Quando ele a puxou com suavidade, Jean pensou que com ele acontecia o mesmo. Ele só conseguia se amar porque Catherine o amava.” (página 258)
Vejam bem, meus caríssimos leitores deste blogue, a ideia contida aqui é uma compreensão mais ampla, a de que é porque alguém me ama – pela existência do amor do outro – que eu aprendo a me amar. Não é só um achado poético, belíssimo, mas uma verdade: nós, seres humanos, somos interdependentes, queiramos ou não; bebês criados sem amor morrem cedo. Não é a ideia do amor piegas, mas do que os gregos conheciam como “storge”, isto é, um amor conjugal, sacrificial, o que une um homem e uma mulher e eles a seus filhos. Entretanto, vai além desse conceito, pois, objetivamente, é sentir-me incondicionalmente acolhido que me faz amar a mim mesmo.
O aspecto do suspense, também presente no livro, é dado pela seguinte questão: quem seria o autor do livro Luzes do Sul, o qual tanto impressionara o livreiro Jean Perdu? Ninguém o conhece. O desafio de encarar o passado e dele se libertar, de lançar a carga fora e poder amar integralmente outra vez é motivo impulsionador da viagem do farmacêutico literário a bordo do Lulu.
Mais que recomendo a leitura desta obra absolutamente apaixonante. Pelo menos na minha modesta opinião, não é a trama que nos dá vontade de ler o texto até o fim; também não é a forma com que a autora trata o tempo; não são as memórias. É a construção dos personagens. Ricos, com coisas interessantes para dizer, com personalidades complexas, atitudes inesperadas, são eles que me motivaram a leitura. Quem degustar A Livraria Mágica de Paris até o fim, encontrará o personagem Luc Basset – e terá um belo exemplo do que estou querendo dizer.

Não perca essa leitura por nada!

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Amostra do que vem por aí...

Resultado de imagem para livro a livraria mágica de parisNem bem recebi o livro A Livraria Mágica de Paris, da escritora alemã Nina George e já fui às folheadas preliminares. É que tenho uma impaciência danada quando tenho nas mãos um livro de que – antecipo – vou gostar muito. Tal predisposição não é muito recomendável, pois corro o risco de me decepcionar. E lá no finalzinho do livro, dei de cara com uma lista lítero-medicinal. Irresistível! Quem não ama listas, de qualquer coisa? Leio listas até de compras de supermercado, quanto mais essa. E por esse motivo, desejo partilhá-la com meus amigos do blog. Nina deu a ela o nome de...

A Farmácia Literária de Emergência de Jean Perdu de Adams a Twain
Medicamentos de ação rápida para o espírito e o coração em caso de catástrofes sentimentais leves a medianas.
Se nada diferente for prescrito, tomar durante vários dias, distribuídos em doses digeríveis (cerca de 5-50 páginas). Se possível, com pés quentinhos e/ou um gato no colo.

  • Adams, Douglas: O guia do mochileiro das galáxias.
Em altas doses, eficaz contra o otimismo patológico e ao mesmo tempo para a falta de humor. Para frequentadores de sauna com medo de toalha no rosto.
Efeitos colaterais: aversão a possuir coisas, uso crônico de roupão.

  • Arnim, Elizabeth von. The enchanted April (Abril encantado).
Contra a incapacidade de tomar decisões e confiar em amigos.
Efeitos colaterais: paixão pela Itália, saudade do sul, senso de justiça aumentado.

  • Barbery, Muriel: A elegância do ouriço.
Em altas doses, eficaz contra “se-quando-ismo”. Recomendado para gênios não reconhecidos, amantes de filmes difíceis e para quem odeia motoristas de ônibus.

  • Cervantes, Miguel de. O engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha.
No caso de conflitos entre a realidade e o idealismo.
Efeitos colaterais: preocupação com sociedades tecnocratas, cuja violência das máquinas nós, indivíduos, combatemos como se lutássemos contra moinhos de vento.

  • Foster, Edward Morgan: The machine stops (A máquina para).
Atenção, antídoto altamente eficaz contra tecnocracia internética e fé religiosa em iPhones. Ajuda também contra vício em redes sociais e dependência de Matrix. Aviso de posologia: se for integrante do Partido Pirata ou ativista de rede, tome apenas em pequenas quantidades!

  • Gary, Romain: Promessa do amanhecer.
Para a compreensão do amor materno, contras as lembranças de infância supervalorizadas.
Efeitos colaterais: fuga para o mundo de fantasia, nostalgia amorosa.

  • Gerlach, Gunter: Rauen von Brücken werfen (Jogando mulheres da ponte).
Para autores com bloqueio de escrita e pessoas que consideram o assassinato em romances policiais algo superestimado.
Efeitos colaterais: perda da realidade, abertura da mente.

  • Hesse, Hermann: Estações.
Contra tristeza e para tomar coragem em confiar.

  • Kafka, Franz: “Investigações de um cão”, in: Narrativas do espólio.
Contra a estranha sensação de ser incompreendido por todos.
Efeitos colaterais: pessimismo, saudade dos gatos.

  • Kästner, Erich: Doktor Erich Kästners Lyrische Hausapotheke. Gedichte. (A farmácia lírica doméstica do Doutor Erich Kästner. Poemas).
Segundo o lírico doutor Kästner, para tratamento de diversos sofrimentos e desconfortos, como, por exemplo, contra sabichonice, sentimentos de separação, raivas cotidianas, melancolia outonal.

  • Lindgren, Astrid: Pippi Meialonga.
Age contra pessimismo adquirido (não de nascença) e medo de milagres.
Efeitos colaterais: perda da capacidade de fazer cálculos, cantorias no chuveiro.

  • Martin, George R. R.: série A canção de gelo e fogo.
Ajuda na quebra do hábito de sentir saudades do que está longe, contra dor de amor, contra raivas do cotidiano e sonhos enfadonhos.
Efeitos colaterais: insônia, sonhos pesados.

  • Melville, Herman: Moby Dick.
Para vegetarianos.
Efeito colateral: medo de água.

  • Millet, Catherine: A vida sexual de Catherine M.
Ajuda a responder se você se envolveu rápido demais numa relação. Observação: sempre podia ser pior.

  • Musil, Robert: O homem sem qualidades.
Um livro para homens que esqueceram o que querem da vida. Eficaz contra a falta de objetivo.
Efeitos colaterais: efeito de longo prazo, depois de dois anos a vida é outra. Causa, entre outros, perda de amizades, desejo de criticar a sociedade e sonhos recorrentes.

  • Nin, Anaïs: Delta de Vênus: histórias eróticas.
Em pouco tempo de uso, auxilia contra a perda de libido e perda de sensualidade.
Efeito colateral: autoexcitação.

  • Orwell, George: 1984.
Contra a credulidade e a fleuma. Antigo remédio caseiro contra o otimismo patológico, mas com data de validade vencida.

  • Pearce, Philippa: Tom e o jardim da meia-noite.
Bem adequado para apaixonados infelizes. (P.S.: No caso dessa doença, deve-se ler tudo que não tenha a ver com amor, pro exemplo, romances sanguinolentos, thrillers, steampunk.)

  • Pratchett, Terry: série Discworld.
Contra as dores do mundo e a ingenuidade que causa risco de morte. Bem adequado para o encantamento do espírito, mesmo para iniciantes.

  • Pullman, Philip: trilogia A bússola de ouro.
Para aqueles que de vez em quando ouvem vozes dentro de si e acreditam que têm uma alma gêmea animal.

  • Ringelnatz, Joachim: Kiderbebetchen (Pequenas orações para crianças).
Quando agnósticos também quiserem rezar.
Efeito colateral: flashes de lembrança das noites de infância.

  • Saramago, José: Ensaio sobre a cegueira.
Contra a exaustão e para descobrir o que realmente é importante. Contra a cegueira para o sentido da própria vida.

  • Stoker, Bram: Drácula.
Contra sonhos enfadonhos; recomendado para a paralisia de espera telefônica (“Quando ele finalmente vai me ligar?”).

  • Surre-Garcia, Alem e Meuruels, Françoise: Lo libre dels rituals. S.I. s.d. Ritual dels Cendres ( O livro dos rituais/Ritual das cinzas).
Ajuda na tristeza recorrente por uma pessoa amada e perdida e como oração secular para quem não gosta de rezas.
Efeito colateral: lágrimas.

  • Toes, Jac: De vrije man (O homem livre).
Para tangueros entre duas milongas bem como para homens que têm medo do amor.
Efeito colateral: possibilidade de repensar o próprio relacionamento.

  • Twain, Mark: As aventuras de Tom Swayer.
Para superação do medo de virar adulto e a redescoberta da criança na própria personalidade.

AVISO: os autores Sanary (Luzes do sul), P. D. Olson e Max Jordan (A noite) são personalidade que vivem exclusivamente dentro deste romance.

domingo, 30 de outubro de 2016

Resenha nº 82 - A Louca da Casa, de Rosa Montero

Resultado de imagem para livro a louca da casaTítulo: A louca da casa
Autora: Rosa Montero
Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman
Edição: 2ª
Editora: HarperCollins
Copyright: 2003
ISBN: 978.85.209.4061-7
Gênero Literário: Romance (?)
Bibliografia da autora (incompleta): Crónica del desamor (1979); La funcíon Delta (1981); Te trataré como a uma reina (1983); Amado amo (1988); Temblor (1990); Bella y oscura (1993); La hija del canibal (1997); El corazón del tártaro (2001); La loca de la casa (2003); Historia del Rey Transparente (2005); Instrucciones para salvar el mundo (2008); Lágrimas em la lluvia (2011); La ridícula idea de no volver a verte (2013); El peso del corazón (2015); La carne (2016). Ganhou vários prêmios, entre os quais: Premio de la Crítica de Madrid, em 2014, por La ridícula idea de no volver a verte e Premio José Luis Sampedro, em 2016, pelo conjunto de sua obra.

Rosa Montero nasceu em 3 de janeiro de 1951, em Madri. É consagrada jornalista e escritora espanhola e trabalha no jornal El País desde 1977. Realizou várias entrevistas importantes e começou a escrever na infância, quando sofreu tuberculose dos cinco aos nove anos. Inscreveu-se na Faculdade de Filosofia aos 17 anos, tendo, no ano seguinte, mudado para a Escola de Jornalismo. Ao mesmo tempo, fez teatro independente. A partir de 1976, passou a trabalhar exclusivamente para o já citado diário espanhol. Dois anos depois, ganhou o Prémio Mundo de entrevistas. Lançou seu primeiro livro em 1979, Crónica del desamor. Desde que seu marido morreu, Rosa Montero passa alguns meses por ano num condomínio na cidade de Cascais, em Portugal. No Brasil, alguns de seus livros foram traduzidos, como Paixões, Histórias de Mulheres, Muitas coisas que Perguntei e Algumas que disse, A Louca da Casa, História do Rei Transparente, A Filha do Canibal, Instruções para salvar o mundo e Lágrimas na chuva.

Ao receber meu kit da TAG - Experiências Literárias, já no começo de A Louca da Casa observei que seria difícil resenhar este livro. Por quê? Se o leitor se deu ao trabalho de prestar atenção nos dados catalográficos acima, verá classificado como gênero literário a palavra “romance”, seguida de um ponto de interrogação posto logo adiante, entre parênteses. Coloquei o sinal entre parênteses exatamente por questionar a classificação do livro, em sua ficha. Não é, exatamente um romance; pelo menos não no sentido corrente.
Um romance é uma narrativa que trabalha com vários núcleos dramáticos que se encadeiam, formando um enredo. A Louca da Casa não tem esta estrutura. Trata de vários núcleos dramáticos, mas a ligação entre eles é frouxa; não que seja um defeito, é antes uma escolha da autora. A história é composta de várias colagens, eventos, fatos, memórias e sensações.
Uma narrativa um tanto autobiográfica, mas de uma autobiografia nem sempre fiel aos fatos vividos, como Rosa Montero vai deixar claro no post scriptum do livro:
“Tudo o que conto neste livro sobre outros livros ou outras pessoas é verdade, quer dizer, responde a uma verdade oficial documentalmente verificável. Mas receio que não possa garantir o mesmo sobre o que se refere à minha própria vida. Porque toda autobiografia é ficcional, e toda ficção, autobiográfica, como dizia [Roland] Barthes. ”
A autora, portanto, se de um lado, acrescenta dados autobiográficos não muito confiáveis, de outro, adiciona dados confiáveis de vários escritores, como por exemplo:
“Por isso, Stevenson, que tinha uma relação muito fluida com seus brownies[1], pôde sonhar seu O médico e o monstro, uma história que hoje todo mundo conhece embora quase ninguém tenha lido o romance. E por que foi tão importante esse relato, por que passou a fazer parte da cultura popular, da representação convencional do mundo? Porque Stevenson, com seu livro, descreveu aquilo que todos intuímos mas não podíamos saber porque não tínhamos palavras para nomear: que os seres humanos somos muitos dentro de cada um de nós; que estamos dissociados, que como diz Henri Michaux numa frase formidável, “o eu é um movimento na multidão”. (página 76)
Rosa faz várias reflexões sobre o ato de escrever, sobre outros escritores e suas relações com suas obras. Dotada de autocrítica ferina, suas observações, às vezes, recaem sobre ela própria, pois também escritora:
“Não conheço nenhum romancista que não sofra do vício descontrolado da leitura. Somos, por definição, bichos leitores. Roemos as palavras dos livros incessantemente, como a carcoma emprega todo o seu ser ao devorar a madeira. Além disso, para aprender a escrever é preciso ler muito; por exemplo, George Eliot tinha uma vastíssima cultura e lia Homero e Sófocles em grego e Cícero e Virgílio em latim: eu sou incapaz de semelhante proeza e esta pode ser uma das razões pelas quais escrevo pior que ela. Em seu precioso ensaio Letra ferida, Nuria Amat propõe aos escritores uma pergunta cruel que consiste em decidir entre duas mutilações, duas catástrofes: se, por alguma circunstância que não vem ao caso, você tivesse que escolher entre nunca mais escrever ou nunca mais ler, o que escolheria? Nestes últimos anos, formulei esta inquietante questão, na base da brincadeira, a quase todos os autores com quem me encontrei pelo mundo afora e descobri duas coisas interessantes. A primeira é que a esmagadora maioria deles, pelo menos noventa por cento e possivelmente mais ainda, escolhe (escolhemos: eu também) continuar lendo. ” (páginas 126/127)
A Louca da Casa é uma leitura extremamente prazerosa, um texto fácil, que conversa conosco. Vai arrolando coisas, em tom assim, de brincadeira, de crítica às vezes. Livro fino, de 172 páginas, pode ser lido quase que de uma sentada só. Sem esforço.
Quando comecei a leitura, o título me era estranho: por que a autora o havia escolhido? E, a partir de certa altura da narrativa, as razões foram ficando muito claras, até fazer o leitor concordar: não poderia ser outro o título: A Louca da Casa. É um livro cujo assunto é a imaginação, a criatividade, a “loucura” proporcionada pela imaginação criadora. Os escritores e, de quebra, todos os artistas, são vistos por muita gente como seres estranhos, prestigiados conforme o caso, mas estranhos.
Não é à-toa que os governos ditatoriais de qualquer parte do mundo veem com maus olhos essa atividade humana, a da criação artística. É o campo do incontrolável. É o campo das ideias subjacentes, metáforas enlouquecidas. No caso dos escritores, é o lugar do texto que não se deixa apreender por um sentido apenas, podendo autorizar várias leituras, todas elas coerentes com determinada proposta interpretativa, autorizada pelo texto. E aqui, não é demais lembrar o falecido e genial Umberto Eco, quando ele nos diz que os limites da interpretação são exatamente os do texto. Quer dizer, não posso elaborar qualquer proposta interpretativa, não validada pelo próprio objeto de análise, mas posso, sem dúvida, elaborar uma grande quantidade: a obra aberta.
Enfim, leitor, esse é um livro original, originalíssimo. Há um fio tênue que amarra tudo, como disse no início. Esse fio é a criatividade, a imaginação. Basta lembrarmos: artistas de vanguarda nem sempre são aceitos ou compreendidos pelo público e pela crítica de sua época; muitas vezes, são necessários anos se passarem, para ele então ser considerado como verdadeiro artista.
Ulysses, de James Joyce, continua incompreendido de muita gente. John Williams não vendeu nada de seu absolutamente fantástico livro Stoner (já resenhado neste blog) e o livro teve de esperar cinquenta anos para alcançar sucesso de público e de crítica no ocidente. Depois de John morto. Picasso foi incompreendido, com seus traços vanguardeiros.
Enfim, assim é a arte!




[1] Brownies: Eram duendes marrons da mitologia da Irlanda. Viviam nas casas e, se bem tratados, auxiliavam os moradores com as tarefas domésticas, enquanto os humanos dormiam. (consulte o blog filhoocultodosdeuses.blogspot.com.br/2011/03/seres-da-mitologia-celta-e-germanica.html)

domingo, 23 de outubro de 2016

Resenha nº 81 - Azul-corvo, de Adriana Lisboa

Resultado de imagem para livro azul corvo adriana lisboaTítulo: Azul Corvo
Autora: Adriana Lisboa
Editora: Alfaguara (Ed. Objetiva)
Edição: 1ª edição, 2014
Copyright: 2010
Gênero Literário: Romance
Bibliografia da autora: Romances – Os fios da memória, 1999; Sinfonia em branco, 2001; Um beijo de colombina, 2003; Rakushisha, 2007; Azul-corvo, 2010; Hanói, 2013; Poesia – Parte da paisagem, 2014; Contos – Caligrafias, 2004; Contos populares japoneses, 2008; O sucesso, 2016; Livros infantis e juvenis – Língua de trapos, 2005; O coração às vezes para de bater, 2007; A sereia e o caçador de borboletas. Participação em antologias literárias e coletâneas de contos: 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (org. Luiz Ruffato), 2004; Prosas cariocas (org. Marcelo Moutinho e Flávio Izhaki), 2004; Aquela canção, 2005; Rio literário (org. Beatriz Resende), 2005; Contos que contam, 2005; Lusofônica – La nuova narrativa in língua portoghese, 2006; Antología de cuento latinoamericano, 2007; Inimigo rumor nº 19 (revista poesia), 2007; Dicionário amoroso da língua portuguesa (org. Marcelo Moutinho e Jorge Reis-Sá), 2009; Brazil: A traveler’s literary companion (org. Alexis Levitin), 2010; Brasilien berättar: Ljud av steg (Estocolmo), 2011; Amar, verbo atemporal (org. Celina Portocarrero), 2012; Revista Granta em português, vol. 1: Medidas extremas, 2013.
Prêmios: José Saramago, por Sinfonia em branco, 2003; Prêmio Moinho Santista, pelo conjunto da obra, 2005; Prêmio e Autor Revelação da FNLIJ - Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, por Língua de Trapos, 2006; Altamente recomendável pela mesma FNLIJ, por Língua de trapos e Contos populares japoneses; finalista do Prêmio Jabuti, categoria romance, com Um beijo de colombina, 2004 e Rakushisha, 2008; Hay Festival, selecionada entre os 39 mais importantes autores latino-americanos até 39 anos; finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa, Portugal, com Rakushisha; finalista do Prix des Lectrices de Elle Magazine, França, por Sinfonia em branco; finalista do PEN Center USA Literary Awars, por Sinfonia em Branco, 2011; finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio  Zaffari & Bourbon, por Azul-corvo, 2011; finalista do Prêmio São Paulo de Literatura por Hanói, 2014.


Adriana Lisboa nasceu no Rio de Janeiro, em 1970 e cresceu em sua cidade natal. Depois, mudou-se para a França, em Paris e Avignon; a partir de 2007 vive a maior parte do tempo nos Estados Unidos, numa localidade próxima a Boulder, no Colorado. Seus livros foram traduzidos para vários idiomas: inglês, francês, espanhol, alemão, árabe, italiano, sueco, romeno e sérvio e publicados em catorze países. Pelo seu romance Sinfonia em branco, como consta de sua bibliografia acima, ganhou o Prêmio José Saramago, entre outros galardões literários. Adriana formou-se em música pela Uni-Rio, foi cantora de MPB na França, então com dezoito anos; mais tarde, abraçou a carreira de professora de música no Rio e atuou, também como tradutora. Fez mestrado em literatura brasileira e doutorado em literatura comparada pela UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora visitante no Nichibunken, em Kyoto, em 2006, na Universidade do Novo México, em 2007 e na Universidade do Texas, em Austin, de 2008 a 2009. Traduziu autores como Cormac McCarthy, Margaret Atwood, Stefan Zweig, Robert Louis Stevenson, Jonathan Safran Foer, Emily Bronte e Maurice Blanchot. Sua novela O coração às vezes para de bater foi adaptada para o cinema, no Brasil, por Maria Camargo, num premiado filme de curta-metragem.

Algumas coisas chamam nossa atenção, na bibliografia de Adriana Lisboa: além da quantidade de prêmios importantes, que atestam claramente a qualidade literária do seu trabalho, a intensa participação em diversas antologias pelo mundo e seu gosto pela cultura japonesa.
Eu não a conhecia, fato de que me penitencio agora, ao resenhar este excelente Azul-corvo. Tomei contato com o nome Adriana Lisboa por meio do pessoal da TAG – Experiências Literárias, quando recebi o kit de maio/2016, pois Adriana foi a curadora do mês e indicou-nos O caminho estreito para os confins do norte, de Richard Flanagan – já resenhado neste blog.
A protagonista de Azul-corvo é Evangelina, mais conhecida pelo apelido de Vanja. É uma adolescente de treze anos e deixa o Rio de Janeiro para ir morar num subúrbio de Denver, no Colorado, EUA. Sua mãe havia morrido e ela parte em busca do pai, do qual não sabe muitas coisas. Havia escrito a ele (Fernando) uma carta, utilizando o endereço de que dispunha; ele respondeu, dizendo que sim, poderia recebê-la em terras americanas. Já em contato com ele, Vanja fica sabendo: Fernando, seu pai, não é seu pai. A pedido de sua mãe, ele registrara seu nome, na Certidão de Nascimento de Evangelina, como seu progenitor. Daí para frente, a vida de Vanja será a busca da sua própria identidade, de seu pai biológico verdadeiro, um tal de Daniel, com quem sua mãe tivera uma rápida relação.
Este não é um spoiler; é apenas a trama básica, sobre a qual se constituirá o romance Azul-corvo. Muitas e muitas peripécias vão acontecer, Vanja encontrará outras personagens, como Elisa, Isabel, Carlos, Florence; saberá com mais minúcias do passado de Fernando, a quem se afeiçoa.    
O personagem Carlos explica à Vanja que existem dois tipos de corvos, o corvus corax (raven, em inglês) e o corvus brachyrhynchos (crow, em inglês). O raven tem características mais individuais, enquanto o crow é mais sociável. Mas os crows possuem uma característica mais interessante: quando jovens, seus olhos são azul-claros, escurecendo depois. É essa mudança (ou indefinição) que liga a característica da ave ao tema do livro.
A simplicidade da trama é um achado. O romance não se caracteriza como uma obra de ação, mas um trabalho de reflexão. O que move Vanja, e também afeta os outros personagens é a busca da identificação. Vejamos um pequeno trecho:
 “Eu tinha treze anos. Ter treze anos é como estar no meio de lugar nenhum. O que se acentuava devido ao fato de eu estar no meio de lugar nenhum. Numa casa que não era minha, numa cidade que não era minha, num país que não era o meu, com uma família de um homem só que não era, apesar das interseções e das intenções (todas elas muito boas), minha.
Os nós dos dedos ficavam esbranquiçados, querendo rachar. Era estranho. Eu parecia me transformar progressivamente em outra coisa, como se estivesse passando por uma lenta mutação.” (página 16)
O tom que perpassa o livro é o de uma amargura contida, mas que, estranhamente, não impossibilita algo de esperança de um futuro. E um dos recursos literários de que se vale Adriana Lisboa – ela é, sem dúvida, uma escritora que sabe manejar muito bem vários deles – é a ironia:
“Quanto a mim, quando alguém me perguntava o que eu gostaria de ser quando crescesse só me passavam pela cabeça atividades que se desenrolassem numa faixa de areia, diante de alguma arrebentação. Vendedora de empada? Assim, o ano compartilhado entre Copacabana e a Barra do Jucu, com a máquina possante chamada Fiat 147, era cem por cento conveniente. E fora Janis Joplin viva, nada mais me faltava. Nunca.” (páginas 46/47)
Permito-me transcrever outro trecho, pois, ao mesmo tempo em que ele me servirá para dar ao leitor uma ideia do estilo detalhista da autora, ainda nos dará a indicação do tempo em que Vanja vivia (ainda pequena) no Brasil:
“Os anos eram os noventa e ela votava para presidente da República, todos os brasileiros maiores de idade votavam para presidente da República, ainda estavam aprendendo a manejar esse grau de civismo, mas um dia chegariam lá, ela dizia. Chegaríamos lá. Se eu não fosse uma criança tão pequena, à época, poderia ter perguntado como, se a primeira coisa que o primeiro presidente eleito democraticamente em três décadas tinha feito, em seu primeiro dia de governo, havia sido confiscar o dinheiro que as pessoas tinham na caderneta de poupança. Segundo ele, ia devolver depois. Isso aconteceu um ano antes da nossa volta ao Brasil e minha mãe lavava as mãos, mas Elisa certamente esbravejou e disse palavrões que eu poderia ter registrado para futura referência, se estivesse presente e tivesse condições de entendê-la. Mas, fosse como fosse, eles eram adultos e deviam saber o que estavam fazendo, elegendo-se, confiscando-se, xingando-se.” (páginas 41/42, destaques da autora)
Fernando havia sido um militante na Guerrilha do Araguaia. De acordo com a Wikipédia, a “Guerrilha do Araguaia foi um movimento guerrilheiro existente na região amazônica brasileira, ao longo do rio Araguaia, entre fins da década de 1960 e a primeira metade da década de 1970. Criada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), tinha por objetivo fomentar uma revolução socialista, a ser iniciada no campo, baseada nas experiências vitoriosas da Revolução Cubana e da Revolução Chinesa.”
Vanja se apodera dos relatos de Fernando e nos repassa; a participação de Fernando nos fatos narrados sobre a Guerrilha do Araguaia vai ser o que justificará a permanência dele lá nos Estados Unidos. Os guerrilheiros trouxeram vários benefícios para a população pobre da região: assistência médica gratuita, alfabetização, enquanto recebiam treinamento eficiente; logo, vários dos militantes eram capazes de sobreviver sozinhos na selva, portando apenas armas, munição, sal e farinha.
Há no livro todo um sentimento de não pertencimento a qualquer lugar; ao tomar imigrantes ilegais nos Estados Unidos, Adriana Lisboa acentua essa sensação, que se não chega a ser nomeada explicitamente pelos personagens criados, permeia a psique de todos eles. A família de Carlos é porto-riquenha, vive assustada com as intervenções policiais próximas a sua casa.
Fernando trabalha como vigia numa biblioteca pública, coisa que – raciocina Vanja em determinado trecho – é no mínimo estranho, pois se, como dizia o escritor argentino Borges, “sempre imaginei o paraíso como um tipo de biblioteca”, como então um lugar com status de paraíso poderia precisar de um vigia?
Azul-corvo é um livro absolutamente sensacional. Adriana Lisboa, uma escritora de mão-cheia, como diziam os antigos. Dá vontade de sair copiando trechos, deixar o texto falar por si e, por isso mesmo, o leitor há de ser paciente e me perdoará por mais uma transcrição (a última, prometo!).
Escolhi uma pequena parte, na qual outra característica do estilo lisboano fica bem evidente: o da palavra-que-puxa-outra-palavra, ou ideia-puxa-outra-ideia:
“Fui eu quem consegui nos tirar do corn maze. Fernando deixou tudo por minha conta. Carlos estava nervoso, com o mesmo nervosismo de uma criança pequena que vai ver pela bilionésima vez o lobo mau tentando enganar a Chapeuzinho. E que olhos grandes você tem etc. O drama se encena mesmo quando o desfecho já é sabido de cor. E você do mesmo jeito. É desse modo que as crianças testam o mundo, verificam se ele de fato vai dar sempre a mesma resposta para a mesma pergunta. E concluem  que sim. Mais uma das promessas falsas de campanha do mundo adulto. Sim, Carlos, somos coerentes. Cresça e veja você mesmo. ”  (página 145)
A referência feita à personagem Chapeuzinho Vermelho, de nossas histórias infantis evoca a visualização dos acontecimentos da própria história. (Esse processo mental é muito comum e se constitui em certo tipo de intertextualidade (um texto dialoga com outro, num jogo de espelhos).
A leitura de Azul-corvo foi repleta de prazer da boa leitura e gratas descobertas estilísticas. Livro destinado a várias releituras no futuro, por isso, vai a recomendação. Boa leitura, leitor amigo!