Autora: Luize Valente
Editora: Record
Edição: 1ª
Copyright: 2015
ISBN: 978-85-01-10317-8
Páginas: 363
Gênero: Romance Histórico
Literatura brasileira
Bibliografia da autora: Israel: Rotas
e Raízes (em coautoria com Elaine Eiger), 1999; Caminhos da memória: A
trajetória dos judeus em Portugal (em coautoria com Elaine Eiger), 2002; A estrela
oculta do sertão (em coautoria com Elaine Eiger), 2005; Romances – O Segredo do
Oratório, 2012; Uma praça em Antuérpia, 2015; Sonata em Auschwitz, 2017.
Prêmios: Melhor documentário no Festival de Cinema Judaico de São Paulo, com A
Estrela Oculta do Sertão, 2005; Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura,
com o romance O Segredo do Oratório, 2013.
Luize Mendes Pinheiro Valente nasceu
no Rio de Janeiro e é de ascendência portuguesa e alemã. Formada em jornalismo
e pós-graduada em Literatura pela PUC-RJ, é fascinada por História, notadamente
ligada às questões judaicas e os refugiados dos tempos de guerra. Como se vê em
sua bibliografia acima, escreveu três romances: O Segredo do Oratório, Uma
praça em Antuérpia e Sonata em
Auschwitz. Seus livros já foram editados fora do Brasil; Uma praça em Antuérpia ganhou edição
portuguesa pela editora Saída de Emergência, integrando a coleção "História de
Portugal em Romances". O Segredo do
Oratório ganhou uma tradução holandesa pela Nieuw Amsterdam.
Em 2017, os direitos
cinematográficos de O Segredo do Oratório
e de Uma praça em Antuérpia foram
adquiridos pelos produtores Breno Silveira (de 2 Filhos de Francisco) e Paula Fiuza (diretora do documentário Sobral).
Entrei numa livraria de Belo Horizonte. Normalmente, gasto muito tempo
olhando livros, compulsando-os. Infelizmente, os livros de literatura brasileira
não costumam ficar naqueles mostruários mais chamativos. Por isso, sabia dever
prospectar possíveis livros interessantes sem qualquer facilitação. O trabalho
rende, algumas vezes, gratas surpresas e constantes boas indicações. E dei de
cara com o volume Uma praça em Antuérpia. Luize Valente? Quem seria esta
escritora? Confesso minhas muitas ignorâncias: não a conhecia. Momento acertado
para conhecê-la. Desta vez, não foi propriamente a capa que me chamara a
atenção, mas o título. Ou melhor, aquele “Antuérpia” do título. Em minha última
viagem ao exterior, tinha estado na Bélgica e tinha me encantado pela mesma Antuérpia.
Comprei o livro. Em três dias, o volume estava lido. Que obra excelente! Um romance
histórico, com ambientação nas tenções do entre guerras e mesmo durante a Segunda
Guerra Mundial. Está entre aqueles trabalhos a serem lidos muitas vezes.
Na abertura do prólogo, no Rio de
Janeiro, 01/01/2000, num dia cinzento, um narrador onisciente inicia sua
narrativa:
“Do alto de seus oitenta e três anos, do alto de sua cobertura, no lugar mais cobiçado para acompanhar a virada, Olívia sentia-se pequena. Eram seis da manhã e ela não tinha pregado o olho. Pouco depois das duas da madrugada ela fora para o quarto, dando o sinal mudo de que era hora de todos partirem. Vinte minutos depois, a neta entrara no quarto e Olívia manteve os olhos fechados. Instantes depois, o barulho dos copos recolhidos e o clique da porta foram a senha para que se levantasse e fosse para a varanda, e ali continuou até o dia amanhecer.” (página 11)
Duas coisas já ficam, de cara,
bem ressaltadas neste pequeno trecho que nos apresenta a protagonista da
história:
- Certa minúcia objetiva (concisão): tudo é descrito com poucos elementos, mas significativos; insistência nos elementos que configuram tempo (no caso, passado);
- Inquietação da personagem Olívia (ela se sentia pequena, não tinha pregado o olho, fora para o quarto, dando o sinal mudo para todos partirem).
A primeira grande divisão do
romance, intitulada “Olívia e Clarice”, traz um recuo no tempo e as ações vão
se ambientar no Norte de Portugal, 1916, com uma informação crucial para o
enredo:
“E assim Clarice e Olívia vieram ao mundo. Primeiro Olívia, depois Clarice. Ou teria sido primeiro Clarice e depois Olívia? Eram apenas as gêmeas, chamadas pelas cores das roupas que usavam. A de amarelo, a de branco. Ganharam nome quando a avó materna, que morava na cidade da Guarda, na região da Beira Alta, chegou, dois dias depois do nascimento. Mal teve tempo de chorar a filha única. Dava dó ver as meninas berrando de fome, aos cuidados de uma criada sem intimidade com a casa. Tinha arranjado às pressas uma ama de leite, mas não era suficiente para os dois pequeninos seres ávidos de vida.” (páginas 19/20)
Não poderei fazer mais do que
espetar sua curiosidade, meu caro leitor, mas a condição de as meninas serem gêmeas é
fundamental para a história a ser contada. Então, podemos concluir destas duas
intervenções – a da página 11 e esta última – que temos uma escritora senhora
do seu fazer literário.
Nunca foi o objetivo deste blogue
fazer análise textual das obras, mas me julgo no dever de, pelo menos algumas
vezes, mostrar ao leitor que o escritor maduro é coerente o tempo todo com seu
projeto e, generosa ou inconscientemente, nos fornece pistas a serem absorvidas
pelos nossos cérebros expostos ao texto.
Continuando: a certa altura,
descobrimos nós, leitores, Olívia não é Olívia, mas Clarice. O que acontecera
para esta troca de identidades? A troca de identidades não é spoiler, já que é dada muito cedo no percurso
da narrativa. O motivo é que permanece um mistério...
O tal narrador onisciente cede
sua voz à avó (protagonista de Uma praça
em Antuérpia):
“— Bernardo... – A avó falou com o olhar pedido. — Bernardo será sempre o meu menino... Eu cuidei de Luiz Felipe como se fosse meu filho, fiz tudo que pude, tudo. Olívia teria tanto orgulho do filho...
Tita abraçou a avó. A história era meio rocambolesca, mas agora não havia volta. Queria saber de tudo.” (página 73).
Certamente, o leitor já prestou
atenção à estrutura de uma novela televisiva; sabe, por experiência, que há
determinados “ganchos” – suspense – a serem respondidos somente no bloco
próximo ou no capítulo de amanhã. A esta técnica de dar uma informação propositalmente
incompleta, para uma posterior revelação, se convencionou chamar de “técnica de
folhetim”. Isto porque os folhetins – publicações escritas capítulo a capítulo
e publicadas nos jornais de antigamente – precisavam manter a atenção do
público.
Pois não é que nossa autora
domina isso à perfeição? Se não, vejamos a transcrição do seguinte trecho:
“Em Hendaye, procuraram um comerciante que apoiava a resistência espanhola e atuava no mercado negro. Foi dirigindo um caminhão vazio, que traria mercadorias, que o pianista chegou a Paris. Antes de partir, olhou uma última vez para a outra margem desejando poder voltar, um dia, a uma Espanha livre e democrática. Naquele final de outubro, Theodor não poderia imaginar que, menos de quatro anos depois, voltaria àquela mesma fronteira, em condições bem diferentes.” (página 118, destaque nosso)
Tais condições bem diferentes, ditas em tom de profecia, pelo
narrador que enxerga o futuro, só ficarão claras nas páginas 286. É, o autor
brinca de Senhor do Destino de seus personagens... E, antes que eu me esqueça,
sim, há uma história de amor profundo entre a protagonista Clarice e Theodor.
A narrativa sobe de tom, os fatos
se desencadeiam como os mais pessimistas previam, França, Bélgica e Inglaterra se envolvem na guerra contra a Alemanha
de Hitler. Todos calculam muito mal o poder dos panzer e das forças alemãs e a invasão de Paris é inevitável. Da
cidade de Bordeaux, o poder constituído pelo General Pétain tenta fazer o que
pode. E é aí, exatamente nesta importante cidade francesa, que entra um
personagem que, apesar de ser secundário, é de capital importância para a
condução da narrativa.
Como bom romance histórico, o
livro se vale da criação de personagens fictícios interagindo com personagens
históricos, reais. Tanto o General Pétain, quanto o cônsul de Portugal em
Bordeaux, Aristides Sousa Mendes, existiram.
Aristides, contra as ordens
expressas do governo de Salazar, expede tantos vistos de trânsito por Portugal
quanto dá conta. Obviamente, seu cargo e a boa condição de sua família estarão
a prêmio, mas com este ato humanitário (verídico) este homem sensacional
consegue salvar – diz-se – em torno de trinta mil pessoas, judeus e não judeus,
empurrados pela invasão alemã.
É dele a frase profundamente
engajada, que serve de epígrafe ao livro:
“E assim declaro que darei, sem encargos, um visto a quem quer que o peça. O meu desejo é mais estar com Deus contra o Homem do que com o Homem e contra Deus.”
É de arrepiar, não?
Tal assertiva é repetida no corpo
da narrativa, lá pelas páginas 266, logo após um relato sobre o quanto custou
ao digno cônsul tal decisão:
“— Pois foi de repente que o cônsul deixou o quarto – falou, atônito. – Nós, na sala, mal podíamos acreditar. O cabelo estava branco, como se aqueles três dias tivessem lhe sugado os anos. Tinha o rosto de quem não dormia há noites, com olheiras escurar em volta dos olhos. a esposa estava ao lado. Foi então que ele disse – o velho médico, emocionado, passou o lenço na boca e continuou – com a voz grave, séria, o cônsul disse que o governo de Portugal estava recusando todos os pedidos de visto a refugiados... e que a decisão estava nas mãos dele!” (página 266)
E, logo depois, a frase – a mesma
que está em epígrafe.
Muitas coisas vão acontecer
ainda. Mas estas, caro leitor, deixo para a sua leitura. Uma situação extrema,
como uma guerra, traz constantes alterações; o que, de repente, parecia calmo
como um lago numa tarde de sol sem vento, se agita; o que era uma decisão
acertada, se torna sinistra. O seguro revela sua fragilidade. Existe, de um
lado, a desumanidade de uns e a profunda solidariedade de outros. Tal
solidariedade pode se dar – embora muitas vezes camuflada pela autoproteção –
entre algozes para com suas vítimas.
Uma praça em Antuérpia, um
fantástico romance histórico, que enche de alegria este leitor amadurecido que
sou eu. Uma satisfação bairrista de que Luize Valente seja brasileira. E que
seja jovem com tanto talento. Ela é uma grande escritora, na acepção da expressão.
E, de minha parte, declaro: quero
ler O Segredo do Oratório e Sinfonia em Auschwitz. E, certamente,
quando o fizer, partilharei com vocês. Um abraço a todos!
Nota: 10, porque não posso dar
mais.