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domingo, 19 de agosto de 2018

Resenha nº 124 - Uma praça em Antuérpia, de Luize Valente


Resultado de imagem para livro uma praça em antuerpiaTítulo original: Uma praça em Antuérpia
Autora: Luize Valente
Editora: Record
Edição: 1ª
Copyright: 2015
ISBN: 978-85-01-10317-8
Páginas: 363
Gênero: Romance Histórico
Literatura brasileira
Bibliografia da autora: Israel: Rotas e Raízes (em coautoria com Elaine Eiger), 1999; Caminhos da memória: A trajetória dos judeus em Portugal (em coautoria com Elaine Eiger), 2002; A estrela oculta do sertão (em coautoria com Elaine Eiger), 2005; Romances – O Segredo do Oratório, 2012; Uma praça em Antuérpia, 2015; Sonata em Auschwitz, 2017. Prêmios: Melhor documentário no Festival de Cinema Judaico de São Paulo, com A Estrela Oculta do Sertão, 2005; Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, com o romance O Segredo do Oratório, 2013.

Luize Mendes Pinheiro Valente nasceu no Rio de Janeiro e é de ascendência portuguesa e alemã. Formada em jornalismo e pós-graduada em Literatura pela PUC-RJ, é fascinada por História, notadamente ligada às questões judaicas e os refugiados dos tempos de guerra. Como se vê em sua bibliografia acima, escreveu três romances: O Segredo do Oratório, Uma praça em Antuérpia e Sonata em Auschwitz. Seus livros já foram editados fora do Brasil; Uma praça em Antuérpia ganhou edição portuguesa pela editora Saída de Emergência, integrando a coleção "História de Portugal em Romances". O Segredo do Oratório ganhou uma tradução holandesa pela Nieuw Amsterdam.
Em 2017, os direitos cinematográficos de O Segredo do Oratório e de Uma praça em Antuérpia foram adquiridos pelos produtores Breno Silveira (de 2 Filhos de Francisco) e Paula Fiuza (diretora do documentário Sobral).
Entrei numa livraria de Belo Horizonte. Normalmente, gasto muito tempo olhando livros, compulsando-os. Infelizmente, os livros de literatura brasileira não costumam ficar naqueles mostruários mais chamativos. Por isso, sabia dever prospectar possíveis livros interessantes sem qualquer facilitação. O trabalho rende, algumas vezes, gratas surpresas e constantes boas indicações. E dei de cara com o volume Uma praça em Antuérpia. Luize Valente? Quem seria esta escritora? Confesso minhas muitas ignorâncias: não a conhecia. Momento acertado para conhecê-la. Desta vez, não foi propriamente a capa que me chamara a atenção, mas o título. Ou melhor, aquele “Antuérpia” do título. Em minha última viagem ao exterior, tinha estado na Bélgica e tinha me encantado pela mesma Antuérpia. Comprei o livro. Em três dias, o volume estava lido. Que obra excelente! Um romance histórico, com ambientação nas tenções do entre guerras e mesmo durante a Segunda Guerra Mundial. Está entre aqueles trabalhos a serem lidos muitas vezes.

Na abertura do prólogo, no Rio de Janeiro, 01/01/2000, num dia cinzento, um narrador onisciente inicia sua narrativa:
“Do alto de seus oitenta e três anos, do alto de sua cobertura, no lugar mais cobiçado para acompanhar a virada, Olívia sentia-se pequena. Eram seis da manhã e ela não tinha pregado o olho. Pouco depois das duas da madrugada ela fora para o quarto, dando o sinal mudo de que era hora de todos partirem. Vinte minutos depois, a neta entrara no quarto e Olívia manteve os olhos fechados. Instantes depois, o barulho dos copos recolhidos e o clique da porta foram a senha para que se levantasse e fosse para a varanda, e ali continuou até o dia amanhecer.” (página 11)
Duas coisas já ficam, de cara, bem ressaltadas neste pequeno trecho que nos apresenta a protagonista da história: 
  1. Certa minúcia objetiva (concisão): tudo é descrito com poucos elementos, mas significativos; insistência nos elementos que configuram tempo (no caso, passado);
  2. Inquietação da personagem Olívia (ela se sentia pequena, não tinha pregado o olho, fora para o quarto, dando o sinal mudo para todos partirem).

A primeira grande divisão do romance, intitulada “Olívia e Clarice”, traz um recuo no tempo e as ações vão se ambientar no Norte de Portugal, 1916, com uma informação crucial para o enredo:
“E assim Clarice e Olívia vieram ao mundo. Primeiro Olívia, depois Clarice. Ou teria sido primeiro Clarice e depois Olívia? Eram apenas as gêmeas, chamadas pelas cores das roupas que usavam. A de amarelo, a de branco. Ganharam nome quando a avó materna, que morava na cidade da Guarda, na região da Beira Alta, chegou, dois dias depois do nascimento. Mal teve tempo de chorar a filha única. Dava dó ver as meninas berrando de fome, aos cuidados de uma criada sem intimidade com a casa. Tinha arranjado às pressas uma ama de leite, mas não era suficiente para os dois pequeninos seres ávidos de vida.” (páginas 19/20)
Não poderei fazer mais do que espetar sua curiosidade, meu caro leitor, mas a condição de as meninas serem gêmeas é fundamental para a história a ser contada. Então, podemos concluir destas duas intervenções – a da página 11 e esta última – que temos uma escritora senhora do seu fazer literário.
Nunca foi o objetivo deste blogue fazer análise textual das obras, mas me julgo no dever de, pelo menos algumas vezes, mostrar ao leitor que o escritor maduro é coerente o tempo todo com seu projeto e, generosa ou inconscientemente, nos fornece pistas a serem absorvidas pelos nossos cérebros expostos ao texto.
Continuando: a certa altura, descobrimos nós, leitores, Olívia não é Olívia, mas Clarice. O que acontecera para esta troca de identidades? A troca de identidades não é spoiler, já que é dada muito cedo no percurso da narrativa. O motivo é que permanece um mistério...
O tal narrador onisciente cede sua voz à avó (protagonista de Uma praça em Antuérpia):
“— Bernardo... – A avó falou com o olhar pedido. — Bernardo será sempre o meu menino... Eu cuidei de Luiz Felipe como se fosse meu filho, fiz tudo que pude, tudo. Olívia teria tanto orgulho do filho...
Tita abraçou a avó. A história era meio rocambolesca, mas agora não havia volta. Queria saber de tudo.” (página 73).
Certamente, o leitor já prestou atenção à estrutura de uma novela televisiva; sabe, por experiência, que há determinados “ganchos” – suspense – a serem respondidos somente no bloco próximo ou no capítulo de amanhã. A esta técnica de dar uma informação propositalmente incompleta, para uma posterior revelação, se convencionou chamar de “técnica de folhetim”. Isto porque os folhetins – publicações escritas capítulo a capítulo e publicadas nos jornais de antigamente – precisavam manter a atenção do público.
Pois não é que nossa autora domina isso à perfeição? Se não, vejamos a transcrição do seguinte trecho:
“Em Hendaye, procuraram um comerciante que apoiava a resistência espanhola e atuava no mercado negro. Foi dirigindo um caminhão vazio, que traria mercadorias, que o pianista chegou a Paris. Antes de partir, olhou uma última vez para a outra margem desejando poder voltar, um dia, a uma Espanha livre e democrática. Naquele final de outubro, Theodor não poderia imaginar que, menos de quatro anos depois, voltaria àquela mesma fronteira, em condições bem diferentes.” (página 118, destaque nosso)
Tais condições bem diferentes, ditas em tom de profecia, pelo narrador que enxerga o futuro, só ficarão claras nas páginas 286. É, o autor brinca de Senhor do Destino de seus personagens... E, antes que eu me esqueça, sim, há uma história de amor profundo entre a protagonista Clarice e Theodor.
A narrativa sobe de tom, os fatos se desencadeiam como os mais pessimistas previam, França,  Bélgica e  Inglaterra se envolvem na guerra contra a Alemanha de Hitler. Todos calculam muito mal o poder dos panzer e das forças alemãs e a invasão de Paris é inevitável. Da cidade de Bordeaux, o poder constituído pelo General Pétain tenta fazer o que pode. E é aí, exatamente nesta importante cidade francesa, que entra um personagem que, apesar de ser secundário, é de capital importância para a condução da narrativa.
Como bom romance histórico, o livro se vale da criação de personagens fictícios interagindo com personagens históricos, reais. Tanto o General Pétain, quanto o cônsul de Portugal em Bordeaux, Aristides Sousa Mendes, existiram.
Aristides, contra as ordens expressas do governo de Salazar, expede tantos vistos de trânsito por Portugal quanto dá conta. Obviamente, seu cargo e a boa condição de sua família estarão a prêmio, mas com este ato humanitário (verídico) este homem sensacional consegue salvar – diz-se – em torno de trinta mil pessoas, judeus e não judeus, empurrados pela invasão alemã.
É dele a frase profundamente engajada, que serve de epígrafe ao livro:
“E assim declaro que darei, sem encargos, um visto a quem quer que o peça. O meu desejo é mais estar com Deus contra o Homem do que com o Homem e contra Deus.”
É de arrepiar, não?
Tal assertiva é repetida no corpo da narrativa, lá pelas páginas 266, logo após um relato sobre o quanto custou ao digno cônsul tal decisão:
“— Pois foi de repente que o cônsul deixou o quarto – falou, atônito. – Nós, na sala, mal podíamos acreditar. O cabelo estava branco, como se aqueles três dias tivessem lhe sugado os anos. Tinha o rosto de quem não dormia há noites, com olheiras escurar em volta dos olhos. a esposa estava ao lado. Foi então que ele disse – o velho médico, emocionado, passou o lenço na boca e continuou – com a voz grave, séria, o cônsul disse que o governo de Portugal estava recusando todos os pedidos de visto a refugiados... e que a decisão estava nas mãos dele!” (página 266)
E, logo depois, a frase – a mesma que está em epígrafe.

Muitas coisas vão acontecer ainda. Mas estas, caro leitor, deixo para a sua leitura. Uma situação extrema, como uma guerra, traz constantes alterações; o que, de repente, parecia calmo como um lago numa tarde de sol sem vento, se agita; o que era uma decisão acertada, se torna sinistra. O seguro revela sua fragilidade. Existe, de um lado, a desumanidade de uns e a profunda solidariedade de outros. Tal solidariedade pode se dar – embora muitas vezes camuflada pela autoproteção – entre algozes para com suas vítimas.
Uma praça em Antuérpia, um fantástico romance histórico, que enche de alegria este leitor amadurecido que sou eu. Uma satisfação bairrista de que Luize Valente seja brasileira. E que seja jovem com tanto talento. Ela é uma grande escritora, na acepção da expressão.
E, de minha parte, declaro: quero ler O Segredo do Oratório e Sinfonia em Auschwitz. E, certamente, quando o fizer, partilharei com vocês. Um abraço a todos!
Nota: 10, porque não posso dar mais.