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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Resenha nº 145 - Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, de Maya Angelou


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Título original: I know why the caged bird sings
Autora: Maya Angelou
Tradutora: Regiane Wenarski
Editora: TAG/Editora Astral
Copyright: 1969
ISBN: 978-85-8246-775-6
Origem: EUA
Gênero: Romance (autoficção)
Páginas: 339
Bibliografia (incompleta): I know why the caged bird sings (Eu sei por que o pássaro canta na gaiola), 1969; Gather togather in my name, 1974; Singin’ and swingin’ and gettin’ Merry like christmas, 1976; The heart of a woman, 1981; Just give me a cool drink of water ‘fore I diiie, 1971; Poems, 1976; I shall not be moved, 1990; The least of these, 1966; The best of these, 1966. Participou em filmes e peças de teatro como Porgy and Bess, 1954-1955; Calypso, 1957; The Blacks, 1960.

Um livro que não se lê facilmente. Esta edição vem com um prefácio de Oprah Winfrey e um posfácio de Djamila Ribeiro. A tensão já começa a partir do título: Eu sei por que o pássaro canta na gaiola. Ora, o pássaro canta na gaiola pela perda da liberdade de voar. O romance é uma obra de autoficção, tratando da vida de uma negra criada no sul dos Estados Unidos. Como não podia deixar de ser, uma vida triste. Racismo, abuso, libertação – conforme nos informa a quarta capa desta obra – foram três palavras que marcaram a vida de Marguerite Ann Johnson. Outro dia, afirmei num texto, um dos motivos pelos quais escrevemos é exorcizarmos nossos íntimos demônios. Eis aqui um trabalho que exemplifica muito bem essa perspectiva. Uma verdadeira depuração por que passa a personagem principal, resgatando-se pela palavra, pela narração da própria vida até a libertação. Sim, um livro que não se lê facilmente, entretanto, uma leitura necessária de uma autora multitalentosa. Merece releituras, no plural.

Maya Angelou, nascida Marguerite Ann Johnson, nasceu em 04/04/1928, em St. Louis, EUA, e faleceu em 28/05/2014 (86 anos), em Winston-Salem, EUA. Seus multitalentos: escritora, poeta, encenadora, realizadora e atriz. Foi condecorada com duas medalhas: Medalha Nacional de Artes (2000) e Medalha Presidencial da Liberdade (2011).

Viveu uma boa parte de sua infância com a avó paterna, Annie Henderson e foi estuprada aos oito anos pelo namorado da mãe em St. Louis. Traumatizada pelo fato, recolheu-se a um mutismo de anos. Superou-o com a ajuda de uma vizinha atenciosa e um grande, enorme amor pela literatura.

Maya Angelou tornou-se mãe solteira numa época em que tal era visto com forte preconceito. Aos 17 anos, obteve o emprego como primeira motorista negra de ônibus em São Francisco. Nos anos seguintes, foi primeira negra a trabalhar como roteirista e diretora em Hollywood. Na década de 1950 revelou-se como dançarina, atriz e cantora. Em 1970 ganhou o prêmio Pulitzer pelo Eu sei por que o pássaro canta na gaiola. Foi amiga de Malcom X e Martin Luther King Jr. Em 1993, na posse de Bill Clinton, Maya leu seu poema On the pulse of morning. Que vida maravilhosamente plena, não meu caro leitor?

Eu sei por que o pássaro canta na gaiola tem como protagonista a própria Maya Angelou. Outros personagens importante são o irmão dela, Bailey, o pai, a mãe, a avó paterna. Em tom de memória, Maya resgata sua vida começando pela viagem realizada de Long Beach, Califórnia, para Stamps, em Arkansas:
“Nós chegamos à cidadezinha bolorenta quando eu tinha três anos e Bailey tinha quatro. As etiquetas nos nossos pulsos diziam – “A quem possa interessar” – que éramos Marguerite e Bailey Johson Jr., de Long Beach, Califórnia, a caminho de Stamps, Arkansas, aos cuidados da sra. Annie Henderson.
Nossos pais tinham decidido pôr fim ao calamitoso casamento, o nosso pai nos mandou para a casa da mãe dele. Um funcionário da ferrovia foi encarregado do nosso bem-estar – ele saltou do trem no dia seguinte, no Arizona –, e nossas passagens foram presas no bolso interno do paletó do meu irmão.
Não me lembro de muita coisa da viagem, mas, depois que chegamos à segregada parte sul do trajeto, as coisas devem ter começado a melhorar. Passageiros Negros, que sempre viajavam com lancheiras lotadas, sentiam pena  dos “pobres queridos sem mãe” e nos ofereciam frango frito frio e salada de batata.” (página 17)
Será esta a realidade com a qual Maya terá de lidar na sua vida. De um lado, os brancos com melhores condições de vida, hábitos diferentes, modo diferente de se vestirem; do outro, os negros, com piores condições, hábito e vestimenta destoantes do primeiro grupo. Como a protagonista relata, a cidade recebeu-os com distante curiosidade, por serem novidade, e depois de verificarem que eram inofensivos e crianças, fechara-se à volta dos dois, de modo não caloroso demais, mas integrando-os como parte da população negra.

Você, caro leitor, como eu de início, pode pensar consigo mesmo, “ah, não, mais um daqueles romances sobre os maus tratos sofridos por negros norte-americanos”. Aguarde um pouco mais, pois Maya Angelou não se detém em lamúrias; a catarse de sua vida se dá num plano mais elevado. Não nos esqueçamos, esta mulher é uma autêntica guerreira.

A cena do estupro é relatada de uma maneira tão seca, quase fatalista, que nos choca (atenção, não é spoiler, isto já é dito na quarta capa do romance):
“E aí veio a dor. Uma invasão indesejada em que até os sentidos são destruídos. O ato do estupro em um corpo de oito anos é a questão da agulha deixar o camelo passar pelo seu buraco por não ter outra opção. A criança cede  porque o corpo pode, e a mente do violador não consegue.
Achei que tinha morrido – acordei em um mundo de paredes brancas e só podia ser o céu. Mas o sr. Freeman estava lá e estava me lavando. As mãos dele tremiam, mas ele me segurou de pé na banheira e lavou minhas pernas. “Eu não queria machucar você, Ritie. Eu não queria. Mas não conte... lembre-se, não conte para ninguém.” (página 100)
Este é, entretanto, apenas mais um trauma profundo que se supera pela escrita. Sim, os íntimos demônios estão sendo expulsos.

A vida segue em Stamps, cidadezinha pobre, que recebe os impactos indiretos de duas ocorrências: a Depressão, ocasionada pelo crash da bolsa americana (conhecida como Quinta-feira Negra) de 1929, prolongando-se por todo o período da Primeira Guerra Mundial. A outra ocorrência, a Segunda Guerra Mundial, que veio trazer modificações profundas na vida americana:
“E assim por diante. Momma manteve o Mercado funcionando. Nossos clientes nem precisavam levar os itens que recebiam para casa. Eles os pegavam no centro beneficente da cidade e deixavam no Mercado. Se não quisessem uma troca no momento, eles registravam em um dos livros grandes de capa cinza a quantidade de crédito correspondente. Nós éramos as únicas crianças da cidade em si eu sabíamos quem comia ovos em pó todos os dias e bebia leite em pó.
As famílias dos nossos amiguinhos trocavam a comida que não queriam por açúcar, óleo de lampião, especiarias, carne enlatada, salsicha Viena, creme de amendoim, biscoitos salgados, sabonete e até sabão de lavar roupa. Nós sempre recebíamos comida suficiente, mas odiávamos o leite caroçudo e os ovos esponjosos, e às vezes parávamos na casa de uma das famílias mais pobres para comer creme de amendoim com biscoitos. Stamps  demorou para sair da Depressão tanto quanto demorou para entrar. A Segunda Guerra Mundial já estava no meio quando houve uma mudança considerável na economia daquele povoado quase esquecido.” (página 69/70)
Maya cresce, vai para San Francisco onde consegue, após uma teimosa aplicação ao que desejava, ser a primeira trabalhadora negra no sistema de bondes da cidade. E, naquela San Francisco, proclamada uma cidade sem preconceitos contra negros, ela colhe uma história impactante:
“Correu uma história sobre uma matrona branca de São Francisco que se recusou a sentar-se ao lado de um civil negro no bonde, mesmo depois de ele abrir espaço para ela no banco. Sua explicação foi que não se sentaria ao lado e uma pessoa que fugiu do serviço militar e que também era Negra. Ela acrescentou que o mínimo que ele podia fazer era lutar pelo país, e que o filho dela estava lutando em Iwo Jima. A história dizia que o homem afastou corpo da janela e mostrou uma manga sem braço. Ele disse em voz baixa e com grande dignidade: ‘Então peça ao seu filho para procurar meu braço, que deixei por lá.” (página 243)
Este, portanto, não é um livro gostoso de se ler. Não que não seja bem escrito, ao contrário, é muito bem feito. É daqueles livros que devem ser lidos para aumentarmos a nossa consciência ou, para alguns, mesmo formá-la, na percepção das monstruosidades e descasos que se cometem contra as pessoas, apenas por elas terem um tom de pele escuro.

Entre 1861 e 1865, os EUA viram-se divididos por uma Guerra Civil Americana, ou Guerra de Secessão, ou, ainda, Guerra Civil dos Estados Unidos. Os estados escravagistas do sul desejavam se separar (secessão quer dizer separação) do restante do país. Formaram os Estados Confederados e lutaram contra os outros, cognominados simplesmente como ‘união’. Foi uma guerra sangrenta e, como os preconceitos demoram muito mais a serem vencidos, o antigo sul, exatamente onde Maya fora criada, eram ainda intolerantes com os negros.

Uma curiosidade literária, o livro Uncle Tom’s Cabin (A Cabana do Pai Tomás), um clássico norte-americano é costumeiramente apontado como uma das causas da eclosão daquele conflito civil. Sua autora, Harriet Beecher-Stowe, abolicionista, escreveu mais de dez livros, mas sua obra-prima até hoje assim considerada, é o Uncle Tom’s.

O livro Eu sei por que o pássaro canta na gaiola faz denúncias sérias sem ser panfletário e nisso, a meu ver, reside sua grande virtude. Tantas obras de cunho fortemente denunciador caíram na armadilha do panfletarismo e, por conta disso, empobreceram consideravelmente suas qualidades literárias.

Maya Angelou colocou em seu livro muitos e muitos trechos com frases fortes, que nos proporcionam reflexão, como:
“Sem querer, fui de ignorar ser ignorante a estar ciente de estar ciente. E a pior parte da minha percepção foi não saber que estava ciente. Eu sabia que sabia muito pouco, mas tinha certeza de que as coisas que ainda aprenderia não seriam ensinadas na George Washington High School.” (página 308)
É um romance de superação. Torna-se bastante clara a função catártica da literatura, para a autora. Tão ao gosto dos americanos – diria, sem medo de generalizar, tão ao gosto dos leitores de qualquer lugar – a construção da protagonista segue o chamado arco de redenção, isto é, uma trajetória pela qual o personagem vence todas as dificuldades de sua vida, tornando evidente a superação ao final da história. É o embate da força de vontade, da determinação contra a fatalidade, contra o fracasso que a ronda.

Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, nesta edição exclusiva da TAG Experiências Literárias tem boa diagramação, capa dura sugestiva. Não espere concluir esta leitura de uma sentada. Ela precisa de ser feita com espaços para o leitor respirar; é, entretanto, daquelas leituras que todo leitor desejoso de formar uma ampla visão de mundo, de estéticas, ou melhor, da vida, deveria fazer. Fica a recomendação.