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domingo, 31 de maio de 2020

Resenha nº 159 - O Homem Que Caiu Na Terra, de Walter Tevis


Título original: The Man Who Fell To Earth
Título em português: O Homem Que Caiu Na Terra
Autor: Walter Tevis
Tradutor: Taissa Reis
Edição: n/c
Editora: Darkside
Copyright: 1991
ISBN: 978-85-9454-005-8
Origem: Literatura Americana
Gênero Literário: Romance (Ficção Científica)
Pequena bibliografia do autor: The Hustler, 1959; O Homem Que Caiu Na Terra, 1963; Mockinbird, 1980; Os Passos do Sol, 1983; The Gambit Of The Queen, 1983; A Cor do Dinheiro, 1984. Publicou, ainda, vários contos em revistas norte-americanas.

Impressões ao Ler:

As horas vão se passando e os olhos não deixam o livro: já passa de meia-noite deste sábado de pandemia. Apenas mais algumas páginas... finalmente, fecho o volume exatamente à meia-noite e meia. Leitura desconcertante: ficção científica completamente fora da curva. Não é distopia, não fala de uma guerra entre alienígenas doidos para acabar com a humanidade, não há batalhas megalomaníacas entre naves espaciais. Já começamos a leitura sabendo que o protagonista é um ser de outro mundo – do planeta Anthea. O narrador, em terceira pessoa, cola-se ora no protagonista, ora no coprotagonista Nathan, e é do ponto de vista deles que a história é contada. E, à medida que o enredo progride, vamos sentindo um incômodo. Apesar de passar longe das características de uma distopia, o livro tem uma visão pessimista da humanidade e sua civilização, de seus valores. Ah, me fez lembrar de outro clássico, O Dia Em Que A Terra Parou. Indubitavelmente, este O Homem Que Caiu Na Terra é um clássico do gênero. A edição da Darkside é belíssima, um livro bem acabado, em capa dura e com o corte superior, lateral e inferior em tinta alaranjada. Obra que nos convida à releitura.

Pequena biografia do autor:

Walter Tevis é um autor norte-americano, nascido em San Francisco, Califórnia (28/02/1928) e faleceu em New York (09/08/1984). Aos 10 anos de idade, Walter foi colocado numa casa de convalescença de crianças, em Stanford por um ano, enquanto eles retornavam a Kentucky, onde a família recebera terras em concessão no condado de Madison. O menino, então com onze anos, viajou sozinho em um trem, para encontrar-se com a família. Aos 17 anos, Tevis participou da segunda guerra mundial, que já estava quase no fim, servindo como carpinteiro a bordo do USS Hamilton. Mais tarde, ele atuou como professor de quase tudo, nas escolas secundárias. Graduou-se em escrita criativa (mestrado), lecionando esta matéria na Universidade de Ohio. Casou-se com Jamie Griggs em 1957 e permaneceu casado com ela por duas décadas. Walter Tevis morreu de câncer de pulmão em 1984, na cidade de New York. Seus restos estão enterrados em Richmond, Kentucky.

O livro:

“Após andar por três quilômetros, encontrou uma cidade. Na entrada havia uma placa na qual se lia: ‘Haneyville. População: 1.400’. Estava bom, um tamanho razoável. Ainda era cedo – ele escolhera a manhã para a caminhada de três quilômetros porque estaria mais fresco – e não havia ninguém nas ruas. Andou por vários quarteirões sob a luz fraca, confuso pela estranheza do lugar, tenso e um pouco assustado. Tentou não pensar no que faria. Já havia pensado o bastante sobre aquilo até o momento.
Encontrou o que queria no pequeno centro comercial: uma loja minúscula chamada The Jewel Box. Na esquina próxima a ela havia um banco verde madeira, e ele foi até lá para se sentar, com o corpo doendo pelo esforço da longa caminhada.
Viu um ser humano alguns minutos depois.” (página 15)
Neste parágrafo primeiro já contamos com alguns elementos, algumas pistas de que esta pessoa, um caminhante, tem características suspeitas. Chega a pé, caminhou por três quilômetros, está cansado, sozinho; e a frase “viu um ser humano alguns minutos depois” soa ou deslocado ou indicativo de que ele, o caminhante, não era humano. Como sempre, o autor, ao construir seu suspense, economiza nos indícios, para surpreender seu leitor à frente. Mas as pistas estão no texto com bastante frequência, pois o objetivo é intrigar quem lê a obra, fazendo com que ele se sinta fisgado o bastante para continuar a leitura.

O personagem Nathan Bryce é extremamente importante na história de Walter Tevis. Contracenando com o protagonista, vários aspectos sobre o personagem principal serão dados pela observação de Bryce com relação ao personagem principal.

É muito interessante como o autor, ao descrever o apartamento em que mora Bryce, nos dá elementos sobre o morador:
“No lado da mesa que não estava amontoado de coisas ficava sua máquina de escrever, como outro deus mundano – um deus grosseiro, trivial e exigente demais –, ainda com a décima sétima página de um artigo sobre os efeitos de radiações ionizantes sobre resinas de poliéster, um artigo sem demanda, sem compromisso e que provavelmente nunca seria concluído. O olhar de Bryce encontrou essa confusão sombria: as folhas dos trabalhos espalhadas como uma cidade de castelos de cartas bombardeada, as soluções infindáveis e assustadoramente organizadas dos estudantes para equações de oxirredução e para preparos industriais de ácidos desagradáveis, e o artigo igualmente tedioso sobre resinas de poliéster. Olhou para aquelas coisas por trinta segundos, com as mãos enfiadas nos bolsos de seu casado, em uma tristeza sombria.” (páginas 35/36)
Bryce é engenheiro químico, não consegue arrumar seus objetos, mas é produtivo, embora escreva artigos e faça pesquisas que nunca serão divulgadas. E mais, é solitário, a figura clássica de um cientista, meio desligado do mundo que o cerca e das necessidades rotineiras de manutenção de uma casa ou apartamento.

A cena em que Betty Jo é introduzida na história também nos fornece dados importantes. Newton – é este o nome assumido pelo nosso protagonista extraterrestre – está num elevador antigo, reformado. Com ele, entra também uma mulher:
“Foi então que tudo pareceu acontecer ao mesmo tempo. Viu a mulher encarando-o e sabia que seu nariz devia estar sangrando, sujando a frente de sua camisa e, ao olhar para baixo, teve certeza daquele fato. Ao mesmo tempo, ele ouviu – ou sentiu, em seu corpo estremecido – suas pernas desabarem em frágil estalo, e caiu no chão do elevador, enrolado de forma grotesca, uma das pernas horrivelmente atravessada sob ele enquanto perdia a consciência, sua mente caindo em uma escuridão tão profunda quanto a do vazio que o separava de sua casa.” (página 63)
Esta Betty Jo será sua ligação afetiva com o mundo estranho no qual ele está. Toda a cena do elevador nos diz da constituição delicada daquele ser, certamente inteligente acima da média, mas com uma construção fisiológica tão débil. Seus ossos são finos e não suportaram a aceleração brusca do elevador antigo.

Newton consegue colocar suas ideias avançadas no mercado. Inventa um filme fotográfico que não precisa de revelação em laboratório; esse processo é feito de modo automatizado, dentro de uma lata com gás. É só o consumidor acondicionar o filme dentro dela, apertar um botão e pronto: as fotos aparecem à sua frente. Lança no mercado uma televisão de definição muito superior às usuais (num tempo em que a televisão comercial, no mundo, estava começando suas transmissões, ainda com baixíssima definição de imagem). Newton fica rico, e se prepara para seu grande plano – de que não posso dar mais dicas, pois incorreria em spoiler.

Apesar de não ser caracteristicamente uma distopia, como já dissera nas impressões ao ler, este livro flerta com uma visão pessimista da sociedade humana:
“Acredite, somos muito mais sábios do que imagina. E estamos além de qualquer dúvida razoável de que o seu mundo se transformará em um monte de lixo atômico daqui a não mais de trinta anos, se não interferirmos.” Continuou, com um ar sombrio: “Para falar a verdade, ver o que vocês estão prestes s fazer com um mundo tão bonito e fértil nos desanima muito, destruímos o nosso muito tempo atrás, mas tínhamos muito menos do que vocês têm aqui”. Sua voz agora parecia agitada e seus modos, mais intensos. “Você não percebe que não irão apenas destruir a sua civilização como ela é hoje e matar a maior parte da sua população, mas que também envenenarão os peixes em seus rios, os esquilos em suas árvores, os bandos de pássaros, o solo e a água?” (página 161/162)
Preocupação claramente ecológica e discussão atualíssima – também presente em No Dia Em Que A Terra Parou – outro clássico da sci-fi. Então, temos um alienígena de Anthea, um planeta moribundo, onde os recursos naturais, já escassos, têm uma durabilidade prevista – para sustentar os 300 antheanos existentes, não haverá mais que cinquenta anos à frente.

A Terra tem recursos em abundância, Walter Tevis propõe digressões sobre o nosso destino como moradores desta mãe-terra. Pela boca de Bryce, expõe-se uma solução para os antheanos, eles poderiam vir para a Terra e formarem um povo à parte, são apenas 300 almas, e aí transpassa o livro o subtema da solidariedade.

O Homem Que Caiu Na Terra transformou-se em roteiro cinematográfico, estrelado pelo cantor inglês David Bowie. Não poderiam ter encontrado alguém mais apropriado, embora não tenha visto ainda o filme. Pela descrição de Newton, no livro, Bowie é uma escolha acertada. O cantor inglês construiu para si uma imagem de androginia (flutuação entre características femininas e masculinas). As pessoas, inclusive Betty Jo, têm a impressão de que Newton é homossexual, dada à aparência frágil e jeitos que, se não chegam a ser femininos, também não os caracterizam como masculinos. A luta entre a brutalidade dos humanos e a inteligência dos antheanos.

O título do livro é ambíguo, polissêmico. O Homem Que Caiu Na Terra tem, no sentido mais superficial, a significação de “homem que aportou no planeta Terra”. Entretanto, o outro sentido, numa camada mais profunda, nos dá a ideia de “homem que fracassou no planeta Terra”. Não é um spoiler, visto que está no título e tal observação não exige do leitor a leitura da obra. É o mesmo sentido contido, por exemplo, numa frase muito comum em nosso tempo, como “o presidente caiu” ou, mais atual ainda, “o ministro caiu”.

Livraço, sob todos os aspectos. E é bom que assim seja, porque há muitas pessoas que ainda concebem a ficção científica como subgênero literário. Ledo engano. Hoje, este gênero amadureceu bastante e já conta com autores instigantes a nos darem verdadeiras pérolas. Estou falando de autores como Jules Verne, Isaac Asimov, Arthur C. Clark, Ursula K. Le Guin, Ray Brudbury, Philip K. Dick, George Orwell, Aldous Huxley, Margaret Atwood, para ficar com alguns de maior projeção.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Resenha nº 158 - Sobre Lutas e Lágrimas, de Mário Magalhães


Sobre lutas e lágrimas: Uma biografia de 2018, o ano em que o Brasil flertou com o apocalipse por [Mário Magalhães]Título original: Sobre Lutas e Lágrimas
Autor: Mário Magalhães
Editora: Record
Edição: 1ª
Copyright: 2019
ISBN: 978-85-01-11714-4
Origem: Brasil
Gênero: História
Pequena bibliografia do autor: O Narcotráfico (1999); Viagem ao País do Futebol, em parceria com o fotógrafo Antônio Gaudério (1998); Crescer a Golpes (2013); Ciudades visibles (2016); 11 Gols de Placa (2010).

Impressões ao ler:

O ano de 2018 foi realmente o ano em que o Brasil flertou com o apocalipse, como está escrito na quarta capa deste livro. À medida que eu o lia, iam desfilando diante dos meus olhos e reavivando minha memória fatos e acontecidos. Uma coleção de estranhamentos, embora já vividos. É que, vistos assim, em conjunto e em sequência, soaram ainda mais bizarros aqueles eventos. Escrevendo a quente, Mário Magalhães, mesmo assim, consegue objetividade. Quase ia dizendo “distanciamento”, mas este vocábulo não pode ser aplicado à obra, escrita no torvelinho daquele ano. Quando o compulsei, na livraria, pinçando trechos aqui e ali, vislumbrei que devia lê-lo. Entretanto, outros volumes estavam na fila e só agora cumpri minha vontade.

Breve biografia do autor:

Mário Magalhães nasceu no Rio de Janeiro, em abril de 1964. Formou-se em jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ e trabalhou nos jornais Tribuna de Imprensa, O Globo, Estado de São Paulo Folha de São Paulo. Neste último, exerceu os cargos de repórter especial, colunista e ombudsman. Profissional premiadíssimo – recebeu em torno de vinte prêmios e menções honrosas no Brasil e no exterior – é também autor da obra Marighela, O Guerillheiro Que Incendiou O Mundo. Mário trabalha também no site de notícias The Intercept.

O livro:

Já no início, o autor nos avisa que este
“É um livro indignado em um tempo que exige indignação. Os editores dos dicionários britânicos Oxford apontaram “tóxico” a palavra do ano. Seu sentido aplica-se do comportamento ao poder. Como se verá, ou recordará, o Brasil de 2018 foi insaciável produtor de toxicidade.” (Prólogo, página 16)
O livro traz os capítulos por datas, como se fosse uma espécie de diário – recurso bastante condizente com o espírito dos textos. Começa falando da matança desarrazoada de macacos por causa do surto de febre amarela. Tal fato ocorrera nos anos anteriores e a população executa os bichos, na completa ignorância da diferença entre o que sejam portadores-vítimas e reais transmissores. Os macacos contraem os vírus, mas não os passam aos humanos. Funcionam como infelizes sentinelas da presença silenciosa da doença.

2018 é ano eleitoral. O país vai às urnas, escolher seu presidente da república. E a lava-jato mantém sua presença, capitaneada por Sérgio Fernando Moro. Diz-nos o autor:
“A prioridade desses eleitores é vencer Lula, com seu impedimento, alguém alinhado com o sucessor de Fernando Henrique Cardoso. Moro seria uma opção competitiva para os brasileiros que apoiaram – e ainda apoiam – postulantes do PSDB, agremiação que conquistou duas vezes o Planalto, nos pleitos de 1994 e 1998 (com FHC) e amargou o vice em 2002 (José Serra), 2006 (Alckmin), 2010 (Serra) e 2014 (Aécio Neves). No Datafolha recém-saído do forno, Lula atropela Alckmin com 19 pontos de distância, 49% a 30% a favor do antecessor de Dilma Rousseff. Nem os aduladores cogitam Aécio e Serra presidenciáveis.” (página 40)
Um dos pontos de maior tensão do livro, é indubitavelmente, a morte de Marielle, no Rio de Janeiro. Executaram-na e o motorista com vários tiros. Vejamos como Mário se refere ao caso:
“Quem matou Marielle para calá-la teve de ouvir muita gente gritando em nome dela. O coro compartilhou suas ideias, celebrou seus ideais, reviveu seus combates. Vozes que hibernavam em mudez, na cidade e no país de infindos 7 a 1, esgoelaram-se contra a covardia. Uma réstia de esperança iluminou o fim da noite.” (página 70)
Seguem o tempo e os eventos. Sob o comando de Temer, vice de Dilma que sofrera o impeachment, explode uma greve de caminhoneiros e o governo se complica:
“O céu nublou. Deputados, senadores e ministros do STF percebem a possibilidade de Temer não completar o mandato. Um senador da base governista sugeriu depor o vice de Dilma. José da Fonseca Lopes, presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros, disse que há ‘um grupo muito forte intervencionista’ que ‘quer derrubar o governo’. Não seriam, afirmou, caminhoneiros. Há ‘infiltrados’, denunciou o Planalto.” (página 136)
Neymar comparece nas páginas deste livro, sob o título ambíguo de “Na copa, Neymar caiu”:
“Com tamanhas aspirações, todas legítimas, Neymar não foi nem o destaque do time do técnico Tite na fase inicial. Nos dois primeiros jogos, Philippe Coutinho se sobressaiu. No terceiro, Paulinho. O camisa dez foi a vítima de mais da metade das 19 faltas cometidas pelos suíços, amarelados três vezes ao atingi-lo. facilitou a vigilância helvética ao segurar demais a bola. Às vezes, na intermediária, de costas para o goleiro Sommer. Desacelerou os ataques. Pareceu imaginar que se desenrolava o confronto Neymar, e não Brasil, versus Suíça. Houve lances em que, ao ser abalroado, exagerou na coreografia das quedas, e aí semeou sua desgraça. Chamou a atenção também pela alegoria capilar, e o compararam a uma calopsita e ao Canarinho Pistola. Mancava ao sair do gramado.” (página 156)
Uma das coisas mais esdrúxulas dos debates entre candidatos, transmitido pela televisão, foi a atuação do cabo Daciolo, de acordo com Magalhães:
“Daciolo provou Ciro Gomes sobre a conspiração pela ‘Ursal’, a temível União das Repúblicas Socialistas da América Latina. O candidato do PDT ignorava, como as torcidas inteiras do Guarany de Sobral e do Flamengo, do que se tratava. Na Ursal dos desvarios daciolistas, bolcheviques tropicais apagariam as fronteiras dos países, no espírito internacionalista da canção “Imagine”. A Ursal é uma brincadeira  criada 17 anos atrás por uma professora conservadora. Somente lunáticos acreditaram na sigla, e charlatães filosofaram a sério sobre o que era traquinagem.” (página 182)
Um dos personagens mais importantes daquele ano de 2018 foi o ex-presidente Lula. Preso em Curitiba, para onde fora conduzido em “condução coercitiva” (e com isto, aprendi mais uma expressão jurídica). Alijado do processo eleitoral, Magalhães descreve:
“Os partidários de Lula, reconhecendo que a candidatura será proibida, cultivam a esperança de que 2018 reproduza 1945 e Haddad herde os votos. Os antagonistas dos petistas temem a reencarnação, como Lula-Haddad, da tabelinha Getúlio-Dutra. Em sua cela em Curitiba, o ex-presidente conhece bem esses fatos, sobre os quais leu no terceiro volume da biografia Getúlio, de Lira Neto. Lula terá mais tempo do que Getúlio Vargas, em 1945, para dar o seu recado. Nada garante que a história se repetirá.” (página 195)
2018 também é o ano em que, além das agendas políticas e de uma morte que deu o que falar, aconteceu o incêndio do Museu Nacional, vinculado à UFRJ. Sucateado, sem verbas para ser cuidado, era previsível que tal acontecesse:
“Debulharam lágrimas de hipocrisia sobre as cinzas. ‘É um dia triste para todos brasileiros’, disse Michel Temer. Por que destinariam em oito meses menos de R$ 100 mil à instituição cujo ‘valor para nossa história não se pode mensurar’? Gerido no âmbito do Ministério da Educação, o museu zelava por herança cultural valiosíssima. O presidente rebaixou o Ministério da Cultura a secretaria, antes de recuar. Supondo que poupava o chefe, o ministro Carlos Marun o interpretou: ‘Está aparecendo muita viúva apaixonada, mas na verdade essas viúvas não amavam tanto assim o museu.” (página 200)
No capítulo referente à facada perpetrada contra Bolsonaro, em plena campanha eleitoral, Mário Magalhães conta uma fábula:
“Um escorpião pede para atravessar um lago nas costas de um sapo. O sapo se recusa a dar carona por recear uma picada assassina. O escorpião alega não saber nadar; argumenta que não envenenaria o anfíbio, porque afundaria junto com ele. O sapo coaxa: ‘Então, tá’ no meio da travessia, o escorpião o atraiçoa. Agonizando, o sapo pergunta o motivo do gesto suicida. O escorpião esclarece, antes de se afogar: ‘Porque é da minha natureza.” (página 203)
Termina o capítulo, fazendo a ligação entre a fábula contada e a facada sofrida pelo então candidato:
“Na sexta-feira, deitado em seu leito, o candidato gravou um depoimento. Agradeceu a Deus, médicos e enfermeiros. Abatido, relembrou a investida: “Parecia apenas uma pancada na boca do estômago [...] A dor era insuportável, e parecia que tinha algo mais grave acontecendo.’ Lamentou se ausentar do desfile militar do 7 de Setembro. E falou: ‘Nunca fiz mal a ninguém.’ Na manhã de sábado o transferiram para São Paulo, onde Bolsonaro posou para a foto cuja legenda bem poderia ser “Porque é da minha natureza.” (páginas 207/208)
Indiscutivelmente, este Sobre Lutas e Lágrimas é um livro bem escrito. De certa forma, me faz lembrar de outro, 1964 – O Ano Que Não Terminou, de Zuenir Ventura. Mário Magalhães tem autoridade para falar dos fatos – respeitabilidade conquistada por anos de jornalismo bem conduzido.

Vivemos uma época de ódios polarizados, o que não invalida ou apaga fatos e atitudes. A democracia é sempre um sistema em que correlação de forças apresentam seus argumentos e influências; como num jogo, ao final, vencem aqueles que conseguirem costurar melhor seus acordos ou conseguiram melhor trânsito de influências.

A meu ver, criou-se uma falácia ao se alegar que “o povo não sabe votar”. Se não sabe, quem saberá? Os americanos, que elegeram (ainda que num sistema indireto) o presidente Trump? Vota-se em quem se acredita representar valores. Talvez e – aí sim, admito – devamos aprender a votar pensando em interesses coletivos, em detrimento de interesses locais ou individuais.

Mas isto é, a meu ver, uma longa e difícil evolução. Penso que, enquanto eu viver, pelo menos...


quinta-feira, 14 de maio de 2020

Resenha nº157 - Os Bórgias, de Mario Puzo


Os Bórgias - Livros na Amazon Brasil- 9788501062765Título original: The Family
Título em português: Os Bórgias
Autor: Mario Puzo
Tradutor: Alves Calado
Editora: Record
Edição: 14ª
Copyright: 2001
ISBN: 978-85-01-06276-5
Gênero Literário: Romance histórico
Origem: Literatura americana
Outras obras: O Poderoso Chefão, Os Tolos Morrem Antes, O Quarto K, O Último Chefão, O Siciliano.





Impressões ao ler:

Há muito tempo este volume repousava na minha estante. Finalmente, chegara o dia de lê-lo e por isso convoquei minha disposição – trata-se de um volume de 420 páginas. Mas, como estamos em quarentena obrigada pelo coronavírus, iniciei a leitura. Um romance histórico, cheio de intrigas no âmbito da religião, envolvendo cardeais e o papa Alexandre VI. Rodrigo Bórgia, pai de César, Juan, Jofre e a famosa Lucrécia Bórgia. Relação incestuosa entre César e Lucrécia, hábitos um tanto estranhos, adesões costuradas por casamentos arranjados – tudo isto era bastante comum à época. A  Itália não existia ainda como um país unificado. O que prevalecia eram as cidades-estados. Os Bórgias não é uma história agradável de se ler no sentido de algo leve, mas é muito bem escrita. O enredo prendeu-me a atenção; mas, à medida em que tantas tramoias, assassinatos, traições (não só sexuais) aconteciam, certo asco ameaçava parar a leitura. Lancei mão, desta forma, de uma atitude útil para quando tenho de ler algo que não me agrada inteiramente: o distanciamento histórico. Virei a chave para uma leitura mais distante, menos emocional e emocionada. É um grande livro, embora não goste de certos elementos chamados a compor a narrativa.

Breve biografia do autor:

O escritor americano Mario Gianluigi Puzo nasceu em Manhattan, Nova Iorque, a 15/10/1920 e faleceu em Bay Shore, a 02/07/1999. Sua família era de italianos que habitavam o bairro nova-iorquino de Hell’s Kitchen. Sua infância, passou-a entre os trens, pois seu pai era ferroviário. Dividia este tempo entre os trilhos e a bibliotecas públicas; seu gosto pela literatura estava sendo formado. Desde cedo, também desenvolveu seu gosto pelo jogo, preferência que nunca abandonou. Quando Mario Puzo anunciou à família seu projeto de vida de tornar-se um escritor, obteve a rejeição da família. Alistou-se na Força Aérea americana e foi mandado para a Ásia e Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. De volta aos EUA, ingressou na New School For Social Research, em Nova Iorque. Publicou seu primeiro conto na revista American Vanguard, de nome The Last Christmas. A certa altura, surgiu-lhe uma proposta irrecusável: um adiantamento de cinco mil dólares para escrever um livro sobre a máfia. Assim veio a lume sua obra mais famosa, O Poderoso Chefão, que se tornou filme estrelado pelo excelente Marlon Brando, segundo minha avaliação, em sua melhor performance, contando a saga da máfia, e imortalizando o protagonista, Don Vito Corleone.

O Livro:

“Enquanto a peste negra varria a Europa, devastando metade da população, muitos cidadãos desesperados voltaram os olhos do céu para a terra. Ali, para dominar o mundo físico, os que tinham inclinação filosófica tentaram desvendar os segredos da existência e com isso desenredar os maiores mistérios da vida, enquanto os pobres só esperavam acabar com o sofrimento.
Foi assim que Deus caiu na terra como homem, e a rígida doutrina religiosa da Idade Média perdeu poder e foi substituída pelo estudo das antigas civilizações de Roma, da Grécia e do Egito. Quando a sede das cruzadas começou a diminuir, os heróis olímpicos renasceram e as batalhas olímpicas foram travadas de novo. O homem lançou sua mente contra o coração de Deus e a razão reinou.” (página 11, Prólogo)
Um parágrafo inicial fortemente contextualizador, escrito em tom grandiloquente, lembrando até certo ponto, as epopeias antigas. A história acontece na Roma do século XV, mais precisamente, no Vaticano. O Papa Inocêncio VIII (1484-1492) havia morrido e o cardeal Rodrigo Bórgia manipulou sua própria eleição como sucessor do Santo Pontífice, o que aconteceu no período de 11/08/1492 a 18/08/1503.

Com sua amante Vanozza Cattanei, Rodrigo tem César, Juan (seu preferido), Jofre e Lucrécia. Aos que estão estranhando a manutenção de uma amante e a existência de filhos no regaço papal, eis como Rodrigo – Papa Alexandre VI – justifica sua ligação amorosa:
“Como filho da Igreja, era proibido de se casar, mas como homem de Deus tinha certeza de que conhecia o plano do Bom Senhor. Ora, o Pai Celestial não criou Eva para completar Adão, mesmo no Paraíso? Então não era óbvio que, nessa erra traiçoeira cheia de infelicidade, um homem precisava ainda mais do conforto de uma mulher? Ele tivera os três filhos anteriores quando era um jovem bispo, mas essas últimas crianças de quem era pai, as de Vanozza, tinham um lugar especial em seu coração.” (página 15)
Bastante cínica a justificativa, não, meu caro leitor? Acostume-se. Alexandre VI adotará, no decorrer das páginas deste Os Bórgias, tanto cinismo quanto for necessário para suas pretensões.

E – claramente – uma delas é excercer seu poder religioso sobre uma Itália unificada. E aqui vamos a um parêntese explicativo. À época, a Itália como nação não existia. Deixemos, entretanto, que o narrador de Mario Puzo explique a situação:
“Além disso, o país que agora conhecemos como Itália não existia. Em lugar dele havia cinco grandes poderes: Veneza, Milão, Florença, Nápoles e Roma. Dentro das fronteiras da “bota” havia muitas cidades-estados independentes governadas por antigas famílias lideradas por reis locais, senhores feudais, duques ou bispos. Dentro do país, vizinho lutava contra vizinho para ganhar território. E os que conquistavam ficavam sempre alertas – porque a conquista seguinte estava próxima.” (página 12, Prólogo)
Já acontecera o cisma católico do ocidente – que o narrador de Puzo classifica como “paródia”. Cisma do ocidente é a divisão que ocorreu no poder da Igreja, com um papa em Roma e outro, na cidade francesa de Auvignon.

Habemus papam, Alexandre sobe ao trono católico; a César estará destinado o cardinalício e o Papa tenta garantir o melhor para a sua família. Agora, sua amante não é mais Vanozza, mas a jovem e bela Júlia, a cujo parceiro ela serve com prazer... inclusive sexual.

No trabalho de construir seu poder sobre todos os cinco centros irradiadores do poder, como descrito acima, Alexandre VI destina cada um de seus filhos a casamentos com representantes dos poderosos daqueles lugares. Busca uma aliança estável e maiores ganhos para a Igreja:
“Logo Alexandre começou a formular outro plano: com o objetivo de proteger sua posição no Vaticano e proteger a própria Roma de uma invasão estrangeira, teve certeza de que precisava unificar as cidades-estados da Itália. Foi então que concebeu o conceito da Liga Santa. Seu plano era unificar e liderar várias das maiores cidades-estados – isso lhes daria mais poder juntas do que cada uma tinha em separado.” (página 85)
Alexandre é também importante para a história de Portugal e Espanha. Chamado a dirimir uma pendenga existente com relação às novas terras descobertas no novo mundo, o Papa emite uma bula. Considera de Portugal as terras a leste da linha traçada próxima dos Açores e das ilhas de Cabo Verde. A oeste daquela linha estavam as terras de posse espanhola.

A sociedade romana era um verdadeiro caos. Para se ter ideia, vamos deixar falar o narrador de Os Bórgias:
“Seis mil e oitocentas prostitutas percorriam as ruas da cidade, gerando uma nova ameaça médica, além da moral, ao povo. A sífilis estava se tornando comum; tendo começado em Nápoles, foi espalhada pelas tropas francesas, seguiu para o norte até Bolonha e então foi levada pelo exército através dos Alpes. Os romanos mais ricos, infectado pela “erupção francesa”, pagavam vastas quantias aos vendedores de óleo de oliva para que os deixassem ficar durante horas dentro dos barris de azeite para aliviar a dor das feridas. Mais tarde o mesmo óleo era vendido em lojas elegantes como “puro extravirgem”. Que piada!” (página 185)
Aliás, este trecho serve bem para exemplificar como o narrador de Os Bórgias não só narra a história como observador privilegiado, mas ainda emite juízos sobre o que nos conta.

O papa tem inimigos. Se mantém relações mais amistosas com os Médici, de Florença, os Sforza, de Milão, ali mesmo, no Vaticano, os seguidores do cardeal Giulio della Rovere tramam contra o papa em exercício e sua família. Encarregam-se de espalhar notas quase sempre de condenação às libertinagens de Alexandre, à lubricidade dos filhos e dão larga divulgação ao relacionamento incestuoso entre César e Lucrécia, até mesmo incluindo Alexandre nesta relação.


Entretanto, neste festival de traições, negociatas, falcatruas e maledicências, há trechos belos. E um dos que mais chamou minha atenção, talvez num expediente de tornar a relação incestuosa dos dois irmãos mais aceitável, Mario Puzo faz seu narrador nos dizer, lá pelas páginas 243:
“Então ele se curvou para beijá-la, um beijo suave, o beijo de um irmão para a irmã... e alguma parte dele ficou rígida e fria. O que faria sem ela? Até aquela noite, sempre que pensava em amor, pensava nela; sempre que pensava em Deus, pensava nela. Agora temia que, sempre que pensasse em guerra, pensaria nela.”
César é um personagem muito interessante e bem construído. Mas é Lucrécia, Crécia para os familiares, que o autor dota de voz crítica, questionadora. Vejamos a seguinte passagem, na qual isto fica bastante evidente:
“Foi então que começou finalmente a questionar a sabedoria do pai. Tudo que lhe tinham ensinado era bom e certo? Seu pai era realmente o Vigário de Cristo na terra? E o julgamento do Santo Padre era também de Deus? Lucrécia tinha certeza de que o Deus gentil que estava em seu coração era muito diferente do deus punitivo que sussurrava nos ouvidos de seu pai.” (página 312)
Toda vez – creio eu – que voltar à leitura deste livro, vou sentir o mesmo asco, a mesma sensação de que da relação ser humano-poder não pode advir coisa boa. Não posso dizer que tenha adorado a obra, afinal, tenho meu conjunto de valores e este texto confronta vários deles. A obra se impõe por si mesma, e aí está o que se pode dizer ser o maior valor de um trabalho literário: impor-se por si próprio. Bem contada, bem conduzida, com personagens complexos (o bem e o mal fazem parte deles, mesmo de Alexandre VI – ou principalmente dele) a narrativa permanece em minha memória, após lida.

Por isso tudo, recomendo-a: é uma ótima experiência de leitura. Os Bórgias, de Mario Puzo.