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sexta-feira, 12 de abril de 2024

Resenha nº 219 - Nêmesis, de Philip Roth

 




Título original: Nemesis

Autor: Philip Roth

Tradutor: Jorio Dauster

Editora: TAG/Companhia das Letras

Edição: s/n

Copyright: 2010

ISBN: 978-65-5921-027-5

Origem: EUA

Gênero Literário: Romance

 

Philip Roth, escritor norte-americano, nasceu na cidade de Newark, Nova Jersey, em 19/03/1933 e faleceu em 22/05/2018. Foi não só um dos maiores escritores dos Estados Unidos, como também elogiado pelo famoso crítico literário Harold Bloom, como “o maior contador de histórias americano depois de Faulkner”. Roth é um colecionador de prêmios literários ao longo de sua carreira.

Autor de obras como Pastoral Americana, O Animal Agonizante, O Complexo de Portnoy, Casei com Uma Comunista, Nêmesis, etc. sua temática aborda a questão do desejo sexual e sua autocompreensão – tema de forte presença em O Complexo de Portnoy. Creio não ser demais afirmar que a marca registrada de seu estilo é o monólogo interior.

Nêmesis tem como ambiência os anos da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente, a entrada dos Estados Unidos no referido conflito, quando a base americana no Oceano Pacífico, Pearl Harbour, é atacada pelos japoneses.

Mas esta referência permanece como um pano de fundo, pois o drama mais importante para o romance é a epidemia de poliomielite que, fora de controle, ataca a cidade de Newark. De repente, ainda sem a compreensão da sociedade, as pessoas começam a adoecer, apresentando febre, dor muscular pelo corpo todo e uma paralisia que pode levar à morte:

“O primeiro caso de poliomielite naquele verão foi registrado no começo de junho, logo depois do Memorial Day, feriado que marca o começo da estação, num bairro pobre de italianos do outro lado da cidade. Ali onde morávamos, numa área do sudoeste chamada Weequahic e ocupada por judeus, nada soubemos sobre isso nem sobre os outros doze casos espalhados por quase toda Newark e mais distantes da nossa vizinhança. Só por volta do feriado de Quatro de Julho, quando quarenta ocorrências já haviam sido registradas na cidade, apareceu na primeira página do jornal vespertino um artigo intitulado “Autoridade médica alerta os pais contra a poliomielite”, no qual o dr. William Kittell, superintendente do Conselho de Saúde, orientava os pais a observarem de perto sus filhos e a contatarem um médico se qualquer criança apresentasse sintomas tais como dor de cabeça, garganta inflamada, enjoo, pescoço enrijecido, dor nas articulações ou febre.” (página 11)

O protagonista Buck Cantor é um professor de educação física e trabalha na escola da avenida Chancellor. Naquele ano, o sr. Cantor acumula, ainda a função de fiscal de pátio do recreio, ou seja, supervisiona os alunos durante o intervalo oficial das aulas. Buck tem seu próprio drama com que lidar.

Por conta da sua avançada miopia, não foi aceito para ir defender os Estados Unidos na guerra mundial. Também devido a sua baixa estatura, nunca foi aceito como atleta nas universidades americanas. Estas duas limitações são, para ele, motivos de autodepreciação.

E, sem avisos, após um entrevero com alguns italianos, enfrentados pelo sr. Cantor, dois dos seus alunos adoecem:

“Alguns dias mais tarde, não aparecera para jogar dois dos meninos que estava no pátio quando os italianos vieram. Pela manhã, ambos haviam acordado com febre alta e o pescoço enrijecido, e já na noite seguinte – tendo perdido gradualmente a força nos braços e pernas e respirando com dificuldade – foram levados às pressas de ambulância para o hospital.” (página 22)

Vários alunos adoecem repentinamente; alguns têm de ficar numa vida vegetativa em pulmões de aço – máquinas destinadas a aliviar o esforço de respiração.

O sr. Cantor mora com a avó e, como é muito correto em tudo o que faz, cuida muito bem da velhinha. A idosa tem problemas cardíacos, o que lhe rende dores no peito quando faz algum esforço.

Numa epidemia assim – basta nos lembrarmos da recente pandemia de COVID-19 – teorias sem qualquer fundamentação se espalham: são os italianos que levaram essa doença para os EUA, são os judeus, ela se transmite pelo toque, pela respiração, pelo calor tórrido que varre Newark, etc.

Buck tem uma namorada que trabalha em local afastado dali e usa de todos os recursos de convencimento para fazer com que o namorado saia de Newark e vá trabalhar no mesmo local que ela:

“Tenho uma coisa para te dizer. Uma notícia sensacional’, disse Márcia. “O Irv Schlanger foi convocado. Vai embora da colônia. Precisam de um substituto. Precisam desesperadamente de quem tome conta dos esportes aquáticos durante o resto das férias. Falei com o senhor Blomback sobre você, dei todas as suas credenciais e ele quer te contratar sem nem fazer uma entrevista.” (página 66)

Buck alega que já tem um emprego. Sente-se mal por “trair” seus alunos, abandonando-os ao aceitar o novo emprego. E ela, convincente:

“Você ia ser um diretor aquático sensacional. Todo mundo aqui ia te adorar. Você é um nadador excelente, um saltador excelente e um professor excelente. Ah, Bucky, é uma chance única na vida. E”, ela disse, baixando a voz, “poderíamos ficar sozinhos aqui. Há uma ilha no lago. Podíamos ir de canoa para lá à noite, depois que as luzes são apagadas. Não teríamos que nos preocupar com sua avó, com os meus pais ou com as minhas irmãs espionando pela casa. Poderíamos finalmente ficar sozinhos.”  (página 67)

Cantor acaba convencido e parte para a nova vida. A colônia de férias fica nas montanhas, o ar é saudável, o lugar é bonito. Entretanto, a consciência do protagonista nunca o deixa em paz. As coisas não saem como planeja o casal apaixonado, mas não posso dizer o que acontece, para não estragar sua leitura, meu caríssimo leitor ou leitora.

Nêmesis coloca um cenário de epidemia de poliomielite permeado por notícias da guerra na Europa, que chegam; de fato, foram concomitantes, o presidente dos EUA à época

Frank Delano Roosevelt, tornar-se a vítima mais famosa da pólio.

Quando um escritor do calibre de Philip Roth elabora uma trama dessas, suas escolhas não serão gratuitas ou só porque os fatos foram concomitantes; os homens morrem nas guerras em que se metem e, paralelamente, são mortos por uma epidemia que não planejaram.

E, o que serve a essa sincronicidade proposital do autor, o sr. Buck Cantor admite a existência de Deus, mas rebela-se contra ele. Como pode existir um Deus que mata seus próprios filhos? E, ainda mais, mata crianças de um modo indiscriminado? Certamente, não pode ser a divindade onisciente, onipresente e onipotente, toda amor, que lhe ensinaram nas aulas de catecismo.

A culpa sentida por Buck por abandonar seus alunos à própria sorte, como se sua presença pudesse mudar o rumo dos acontecimentos, suas autocondenações, fazem lembrar os atormentados personagens de Dostoiévski.

Nêmesis discute esta questão da culpa autoimposta. O sujeito que não se perdoa, e o que é pior – o sujeito que elabora uma culpa para si, quando ele é tão vítima quanto todos os outros –, este sujeito, qual futuro terá? A culpa carregada pelo resto da vida infelicita a própria vida. Pois, para Buck Cantor, ele se transformou num vetor da poliomielite, um elemento de contágio.

Na conversa com um de seus ex-alunos, que agora se tornou seu amigo, há interessantes digressões. A concepção de Deus, manifestada por Cantor é uma dessas:

“Para minha mente ateísta, propor um tal Deus sem dúvida não era mais ridículo do que dar crédito às divindades adoradas por bilhões de pessoas. Já a rebelião de Bucky contra Ele me parecia absurda simplesmente porque não era necessária. Bucky não conseguia aceitar que a epidemia que atingiu as crianças de Weequahic e as crianças de Indian Hill fora uma tragédia. Ele precisava converter a tragédia em culpa. Precisava encontrar uma necessidade para o que ocorria. Há uma epidemia e Bucky necessita de uma razão para ela.” (página 187)

Ao contrapor seu amigo Arnold Mesnikoff (curiosa a aproximação fonética deste sobrenome com Raskolnikof, não?), acometido pela doença, portador de sequelas, cadeirante, ao protagonista Buck Cantor, o autor nos coloca: a maneira de pensar do seu personagem principal não é a única válida. Há outras. Apesar das desgraças, você pode optar por vencê-las e construir uma vida tão feliz quanto possível, ou, ao contrário, deixar-se abater, fazer más escolhas em função da culpa, terminando por boicotar a felicidade ainda possível.

Recomendo de modo enfático este Nêmesis. Philip Roth é um baita romancista.