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sábado, 27 de outubro de 2018

Resenha nº 134 - O Vidiota, de Jerzy Kosinski


Resultado de imagem para livro o vidiotaTítulo original: Being There
Título em português: O Vidiota
Autor: Jerzy Kosinski
Editora: Ediouro
Tradutores: Laura Alves e Aurélio Barroso Rebello
Copyright:1970
ISBN: 85-00-01742-2
112 páginas
Gênero: Romance
Origem: Literatura Americana
Bibliografia do autor: The Future is Ours, Comrade: Conversations with the Russians, 1960; No Third Path, 1962; The Painted Bird, 1965; The Art of The Self: Essays à Propos Steps, 1968 ; Steps, 1968 ; Being There, 1970; By Jerzy Kosinski: Packaged Passion, 1973; The Devil Tree, 1973; Cockpit, 1975; Blind Date, 1977; Passion Play, 1979; Pinball, 1982; The Hermit of 69th Street, 1988; Passing By: Selected Essays, 1962-1991, 1992; Oral Pleasure: Kosinski as Storyteller, 2012. Filmografia: Being There, 1979; Reds, 1981; The Statue of Liberty, 1985; Lodz Ghetto, 1989 e Religion, Inc., 1989.

O céu escurecia rapidamente, puxando sobre si um cobertor de nuvens escuras. Empolgado com a leitura deste O Vidiota, eu não prestava atenção à tempestade que se anunciava. Jerzy Kosinski conseguia a proeza de me fazer deixar o mundo real lá fora e me envolver com o pequeno volume à mão, comprado em um sebo. Tinha feito o percurso inverso, há muito tempo assistira ao filme Muito Além do Jardim, com Peter Sellers, adaptado do livro – um filme nada comercial e só agora, ao caminhar para o fim do ano de 2018, tomava contato com a história escrita. Que livro genial! E enquanto o lia, a chuva torrencial chegava, carregando sombrinhas das mesas do clube onde estava, jogando mesas na piscina e promovendo uma verdadeira correria por lugares abrigados. Havíamos passado por uma manifestação política, militantes apaixonados e disse à minha esposa, sentada ao lado: não poderia ter encontrado fato melhor para contextualizar o livro. Vocês verão porquê.

Jerzy Kosinski nasceu na cidade de Lódz, Polônia, com o nome de batismo de Joséf Lewinkopf, em 14/06/1933 e faleceu em 03/05/1991, aos 57 anos, em Manhattan, Estados Unidos. Ele era filho de pais judeus e viveu na parte central da Polônia, sob o nome falso dado pelo pai; Joséf adotou aquele nome – Jerzy Kosinski. Um padre católico-romano deu-lhe um certificado de batismo e a família Lewinkopf conseguiu sobreviver ao Holocausto da Segunda Guerra Mundial, contando com a ajuda de judeus poloneses.

Kosinski diplomou-se pela Columbia University e tornou-se cidadão americano no ano de 1965. Casou-se em 1962, mas divorciou-se quatro anos depois. Mary Hayward Weir, sua ex-esposa, morreu em 1968, de câncer no cérebro. Jerzy contraiu várias doenças (os dados biográficos consultados não dizem quais) e terminou por se suicidar.

Foi acusado de plágio e de falsificar fatos ocorridos. Ao escrever The Painted Bird (O Pássaro Pintado), uma narrativa de guerra, Jerzy teria adulterado dados ao compor sua narrativa, pois relata uma série de torturas e crueldades perpetradas pelos judeus poloneses, quando estes o teriam ajudado a sobreviver. Mais tarde, recebeu a acusação de plágio por Being There (O Vidiota). Para o caso de plágio, vou usar a argumentação de um ensaio de Phillip Roth.

Segundo a crítica da época, Jerzy Kosinski teria plagiado um trabalho em polonês intitulado A Carreira de Nikodem Dyzma, de 1932. Segundo Roth, o livro não foi publicado em inglês, portanto, ele diz não poder comparar. Mas uma justificativa para a originalidade de Kosinski é que aquele livro polonês fora escrito em 1932, época em que a televisão ainda não existia. “Kosinski pode ter tomado emprestada a premissa do idiota cujas declarações simplórias são interpretadas como profundezas, mas ele teve que moldar consideravelmente essa premissa para ajustar-se a seus propósitos”, conclui Roth. Acertadamente, penso.

Este O Vidiota é genial. Narrativa curta, de apenas 112 páginas, aí incluídos um posfácio muito interessante assinado por Xico Sá, e alguns dados biográficos do autor. E desejo fazer uma abordagem diferente, caro leitor. Primeiro, vamos ao enredo do livro.

Chance é o protagonista do livro, narrado a partir de um narrador onisciente. Ele trabalha como jardineiro na casa onde vivem o Velho (personagem sem nome e de quem se sabe pouca coisa além de ele não poder se locomover por ter fraturado a bacia), e uma empregada. Chance mora num quarto com porta para o jardim, a empregada lhe traz alimentação e ele tem, à sua disposição, um aparelho de televisão. Nunca sai da casa. Não possui amizades, não tem documentos, não sabe ler nem escrever – enfim, vive enclausurado na casa do Velho. Acontece que o dono da casa morre e Chance tem de sair do local. É quando acontece um acidente que mudará sua vida: um motorista deu ré num carro luxuoso em cima de Chance, que tem sua perna presa e machucada. A dona do carro, uma mulher rica, o leva para casa dela e trata dele. Aí começam as “peripécias” de Chance, o jardineiro (gardener, em inglês).

A madame entende mal seu nome e passa a chamá-lo de Chauncey Gardiner – sobrenome comum em inglês e fonicamente semelhante a “Chance, gardener”.

Aqui entra a abordagem diferente. Vamos assumir um leitor que não conhecesse nada da obra, nunca tenha ouvido falar deste O Vidiota (não é o meu caso, há muito tempo venho procurando este livro). A minha tese é que o livro – qualquer livro – é que propõe a forma como deve ser abordado, isto é, fornece pistas para que o leitor saiba como deve ler o texto.

Estamos lendo sobre um personagem incomum: desde que ele consegue se lembrar, sempre trabalhou ali na casa do Velho; não tem registro de empregado, não recebia um salário, não saía para lugar nenhum. Não tem documentos que provem legalmente que ele exista. Não sabe ler, não sabe escrever; na verdade, tudo o que ele sabe é cuidar do jardim. Raramente via o tal patrão, já que ele tinha limitações físicas para se locomover. O homem, entretanto, deixava que ele escolhesse a roupa do guarda-roupa dele, Velho, que Chance quisesse.

Um personagem tão estranho assim, numa história tão plana... caro leitor, leia o texto com outros olhos, mais perquiridores! O sentido da narrativa, com absoluta certeza, não está na superfície. O texto tem cara de parábola, tem cheiro de parábola. Ora, este gênero textual é caracterizado por uma linguagem figurada, com coisas que às vezes nos parecem meio incoerentes.

Meu conhecimento de mundo me diz que dificilmente eu conheceria uma pessoa assim, tão sem vestígios; órgãos do governo, bem aparelhados, não conseguiram detalhes da vida de Chance. Nenhum parente. Sequer uma testemunha de que ele, realmente, tenha trabalhado para o Velho.
Por aí vamos. Chance só diz coisas sobre plantio, flores, poda, adubação; seu mundo imediato é o jardim da casa do Velho. Ele não tem contato com o mundo lá fora, a não ser como representado pela tela da televisão. Sempre que perguntado sobre alguma coisa – e ele só sabe o que tenha visto pela tevê e, mesmo assim, seu parco entendimento dos fatos corriqueiros da vida é limitado –, Chance dá uma resposta vinculada ao seu mundo vegetal:
“O Sr. Rand tirou os óculos, soprou nas lentes e poliu-as com o lenço. Depois recolocou os óculos e olhou para Chance em expectativa. Chance percebeu que a resposta não fora satisfatória. Ergueu o olhar e encontrou o de EE.
— Não é fácil obter um lugar adequado, um jardim onde se possa trabalhar sem interferências e cultivar conforme as estações. Não existem mais muitas oportunidades. Na TV... – vacilou e prosseguiu – nunca vi um jardim. Vi bosques e florestas, às vezes uma ou outra árvore. Mas um jardim onde eu possa trabalhar e ver crescer o que plantei... – sentiu-se triste.
O Sr. Rand debruçou-se na mesa em direção a Chance.
— Muito boa a explanação, Sr. Gardiner. Importa-se se eu o chamar de Chauncey? Um Jardineiro! Não é a descrição perfeita do verdadeiro homem de negócios? Alguém que torna produtivo um solo pedregoso, com o trabalho das próprias mãos, que o rega com o suor do próprio rosto, que cria um lugar de valor para a sua família e para a comunidade. Sim, Chauncey, que metáfora excelente! Na verdade, um produtivo de negócios é um operário na sua própria vinha!
O entusiasmo com que o Sr. Rand reagiu aliviou Chance.: tudo ia bem.
— Obrigado, Sr. Rand – murmurou ele.” (página 34)
Daí para frente, todo o discurso sobre jardins, emitido por Chance, será levado à conta de metáforas brilhantes, sendo ajustadas pelos interlocutores de acordo com suas conveniências. Como quando, no programa televisivo de entrevistas, Esta Noite, sobre questões econômicas dos Estados Unidos, nosso personagem diz:
“— Em um jardim tudo cresce... mas antes precisa murchar; a árvore tem de perder as folhas para que nasçam novas e ela fique mais grossa, mais forte e mais alta. Algumas árvores morrem, porém novos rebentos as substituem. Os jardins exigem muitos cuidados. Mas se amarmos o nosso jardim, não nos cansaremos de trabalhar nele e esperar. Então, na estação adequada, certamente o veremos florir.” (página 54)
O entrevistador do programa avalia entusiasticamente a atuação de Chance:
“— Obrigado, muito obrigado, Sr. Gardiner. É de espíritos como o seu que este país tanto necessita. Esperemos que ele ajude a anunciar a primavera da nossa economia. Mais uma vez obrigado, Sr. Chauncey Gardiner, financista, conselheiro presidencial e um verdadeiro estadista!” (página 54)
Hã, como assim? Nosso personagem não era um jardineiro, cuja experiência se resumia a cuidar de um jardim? Como um analfabeto pode ser alçado à categoria de financista, conselheiro presidencial, estadista?! Ou não entendi bulhufas, ou o texto quer me dizer outra coisa...

Elevado à categoria de mito, Chance (rebatizado para Chauncey Gardiner) tem todas as suas falas transformadas em geniais metáforas econômicas. Ou seja, a partir da construção de mito, suas atitudes e seus discurso jamais serão postos em dúvida – as pessoas sempre partirão da sua condição de mito para validar o que é dito. E tanto é assim, que o autor nos deixa uma pista, citando, muito apropriadamente,  a autoridade de Shakespeare (outro mito!):
“— Apreciei enormemente a franqueza do seu pronunciamento pela televisão. Muito hábil, muito hábil mesmo! Ninguém precisa usar de excessiva delicadeza para explicar as coisas, não é? Quero dizer, pelo menos quando se fala para idiotas videomaníacos. Afinal, eles querem mesmo é “ser punidos por um deus, não por um homem igualmente fraco”, não é? (alusão a Shakespeare, Coriolano, Ato III, Cena 1- N. dos T.)” (página 71)
Desta forma de abordagem, uma historinha aparentemente incoerente, cheia de senões, com um personagem bobalhão, cercado de um bando de idiotas se identifica conosco, somos nós mesmos aqueles idiotas videomaníacos, manipulados pelos meios de comunicação. Antes, era somente a televisão e o rádio; hoje, contamos com a acessibilidade das mídias sociais. Somos manipulados com nossa própria adesão. Estamos no reino das fake news, das fofocas eletrônicas via Facebook, Whatsapp e o que mais vier.

Como analisa Xico Sá, em seu posfácio ao livro, Chance é
“Um homem parado, que mimetiza o mundo vegetal e parece ter a propriedade de clorofilar-se de tão... comum, homem que se confunde com a paisagem. De tão entregue à desacontecência do trabalho e dos dias.” (página 103)
Eis porque, amigo leitor, adiei o término desta leitura para ler, primeiro, Bartleby, O Escriturário. Ambas as obras têm em comum o mundo de alienação a que nos relegamos com nossa própria conivência. Os dois personagens primam pela não ação: Bartleby, pela falta de sentido para sua vida; Chance, pela completa falta de interação com o mundo. Chance ficaria melhor como ornamentação, num belo vaso chinês da dinastia Ming:
“No entanto, sem sombra de dúvida, e eu me responsabilizo por isto, que ele nunca se envolveu em qualquer problema legal com qualquer indivíduo, nem com qualquer organização, empresa ou agência particular ou pública, estadual ou federal. Jamais causou qualquer acidente ou prejuízo e, além do acidente com os Rand, nunca se envolveu como terceiro em qualquer dessas situações. Jamais foi hospitalizado; não possui seguros e, por falar nisso, é provável que não tenha qualquer outro documento ou identificação pessoal. Não dirige automóvel, não pilota avião, e em seu nome nunca se emitiu licença alguma. Não tem cartões de crédito, nem talões de cheques, nem cartões de visita. Não é proprietário neste país... Sr. Presidente, nós bisbilhotamos a respeito dele em Nova York: não fala de negócios nem de política, ao telefone ou em casa. Tudo o que faz é assistir TV: no seu quarto o aparelho está sempre ligado: há um barulho constante...” (página 97)
Leitura pertinente aos tempos em que vivemos, com impressionante atualidade da mensagem.

Recomendo, mais que recomendo este O Vidiota; pena que não haja, pelo menos que eu saiba, uma nova edição nas livrarias, quer físicas, quer virtuais. Pena; estão perdendo a oportunidade de causar reflexões, livrarias e editoras.

Mas, afinal, quem se interessa em fazer pensar?

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Resenha nº 133 - Bartleby, O Escriturário, de Herman Melville


Bartleby, o escriturário (Novelas Imortais) por [Melville, Herman]
Título original: Bartleby, The Scribner
Título em português: Bartleby, O Escriturário
Autor: Herman Melville
Tradutor: Luís de Lima
Editora: Rocco
Copyright: 1986
ISBN: 978-85-7980-001-6
Gênero: Novela
Origem: Literatura americana
Páginas: 68
Coleção Novelas Imortais, dirigida por Fernando Sabino
Bibliografia do autor: Typee: A Peep at Polynesian Life (Typee: Um Olhar Sobre A Vida na Polinésia, 1846; Omoo (Omoo: Uma Narrativa de Aventuras nos Mares do Sul, 1847; Mardi (Mardi), 1849; Redburn, 1849; White-Jacket, 1850; Moby-Dick, A Baleia Branca, 1851; Pierre, 1852; Isle of The Cross, 1853; Israel Potter, 1856; The Confidence-man (O Homem de Confiança), 1857; Billy Budd, 1924. Contos: The Piazza Tales (contendo Bartleby, O Escrivão, The Piazza, Benito Cereno, The ligghtining-Rod Man, The Encantadas, or Enchanted Isles e The Bell-Tower), 1856.


Bartleby, O Escriturário, ou Bartleby, O Escrivão em algumas edições em português, é daqueles livros que a gente ouve falar ou dá com ele em certas pesquisas sobre outros livros. Lê-lo, portanto, é quase uma releitura. Bartleby é um personagem icônico, bem como sua resposta “prefiro não” a tudo o que lhe pedem. É uma leitura breve e inquietante; realmente, como dizem, há qualquer coisa de kafkiano nesta novela incrível. Fico pensando como deve ter sido a recepção desta obra, escrita em duas partes, a primeira delas publicada em uma revista nova iorquina em 1853. À época, Herman Melville já não gozava de muita popularidade, produzindo obras desiguais e vendo sua situação financeira declinar de maneira definitiva. Morreu na obscuridade.

Herman Melville nasceu em Nova Iorque, em 01/08/1819 e faleceu na mesma cidade, em 28/09/1891, aos 72 anos de idade. Era o terceiro filho do casal Allan e Maria Gansevoort Melvill (o autor, posteriormente, acrescentaria a letra “e” ao seu nome, assinando Melville). Possuía limitações de visão, herança de uma escarlatina sofrida em infância. A família se mudou para Albany em 1830, onde Herman frequentou a Albany Academy. Após a morte do pai, ele se tornou arrimo de família (tinha oito irmãos) e trabalhou como professor, bancário e agricultor. Em 1841, navegou por quase todo o Oceano Pacífico, a bordo de uma baleeira. Teve uma experiência nas Ilha Marquesas, da polinésia francesa, convivendo com uma tribo de canibais; tais experiências serviriam de base para o seu livro Typee (1846). Além disso, Herman Melville embarcou no baleeiro Lucy Ann, de origem austríaca. Participou de um motim, contra o capitão autoritário, despótico e terminou sendo abandonado na ilha de Tahiti, da qual fugiu. Serviu também como arpoador no Charles & Henry e retornou a Boston como marinheiro. Estas últimas peripécias lhe forneceram o material para o livro Omoo: Uma narrativa de aventuras nos mares do sul e Typee: Um olhar para a vida polinésia, que lhe deram fama e algum conforto financeiro.

Casou-se com Elizabeth Shaw em 1847 e publicou seu terceiro livro, Mardi, em 1849. Com a publicação deste livro, escrito em tom melancólico e introspectivo, Herman começa a perder seu público, que não se identifica com o tom dado por ele a suas obras. Mas, a pá de cal sobre este escritor tão sofrido foi Moby Dick: um fracasso de público e de crítica. Ironicamente, é hoje alçado à categoria de clássico; Herman Melville é mundialmente conhecido como o autor de Moby Dick, relatando as aventuras do icônico Capitão Ahab (ou Acab, de acordo com algumas grafias) contra uma monstruosa e indomável baleia branca, batizada de Moby Dick. A própria série de filmes Jornada nas Estrelas: A Nova Geração tem, na figura do Capitão Jean-Luc Picard um atencioso leitor daquela obra de Melville. A biografia de alguns escritores não pode ser feita em poucas linhas, pois como verá o leitor, nesses casos, como o de Herman Melville, ela lança luz sobre suas obras.

Bartleby, O Escriturário é destes livros que, depois de lidos, deixa uma espécie de inquietação no leitor. Pelo menos, foi o que senti ao terminá-lo. O enredo é dos mais simples.  Num escritório de advocacia, trabalham, além do dono, mais três empregados: Turkey, Nippers e Ginger Nut. O patrão contrata outro, Bartleby como copista. Naquele tempo, as reproduções de documentos eram feitas à mão mesmo. Esta seria a função deste novo contratado. Só que não. Aos poucos, Bartleby vai se tornando um problema sério para aquele pequeno escritório. A cada serviço que lhe é destinado, ele responde com um polido, mas firme “prefiro não fazer”.

A relação que se estabelece entre o advogado-narrador e este empregado estranho é incompreensível. Apesar de o escriturário se negar terminantemente a fazer suas atribuições, o patrão não o manda embora. tenta entender seu comportamento e não o consegue:
“Sou um homem de certa idade. A natureza das minhas ocupações, nestes últimos trinta anos, me levou a entrar permanentemente em contato com uma espécie de homens interessantes e um tanto singulares, da qual, que eu saiba, nada até agora se tem escrito: refiro-me aos copistas, escriturários ou escreventes a serviço de homens de leis. Conheci muitos, quer profissional que particularmente, e poderia, se quisesse, contar sobre eles inúmeras histórias que fariam sorrir afáveis cavalheiros e levariam às lágrimas as almas sentimentais. Mas renuncio às biografias de todos os demais escriturários para relatar algumas passagens da vida de Bartleby, o mais estranho de todos que jamais vi e de quanto tive notícias.” (página 13)
Não é, como se pode depreender, um narrador neutro; muito antes, é parcial, ao tomar partido do empregado, no seu afã de compreendê-lo e desculpá-lo por o considerar um desajustado ou doente.

Bartleby começa muito bem, desentulha várias cópias que precisavam ser feitas, mas, progressivamente, vai se recusando a receber ordens, para a ira dos outros empregados do escritório, que são obrigados a assumir suas tarefas.
“Nesta atitude me encontrava quando o chamei, explicando rapidamente o que queria que ele fizesse: conferir comigo aquele pequeno documento. Imaginem então a minha consternação, quando, sem sair do seu recanto, Bartleby, numa voz singularmente moderada e firme, respondeu:
— Prefiro não fazer.
Continuei sentado durante alguns momentos, em perfeito silêncio, tentando sair da minha perplexidade. Mas logo me ocorreu tratar-se de um engano dos meus ouvidos ou então que Bartleby não compreendera bem a minha ordem. Renovei pois o chamado de forma bem clara, mas ouvi a mesma resposta com idêntica clareza:
— Prefiro não fazer.” (página 32)
Bartleby é descrito como um homem cadavérico, taciturno, pálido. Os outros empregados também têm suas esquisitices, mas este escriturário excede tudo o que se possa imaginar. Apesar de suas constantes recusas, o patrão tem, para com ele, uma atitude de compaixão e busca mesmo estabelecer algumas explicações (para consumo próprio) para tal obstinação.

Quanto mais Bartleby se recolhe ao seu mundo, mais compassivo se torna o advogado; não consegue mandá-lo embora, dá-lhe dinheiro porque pensa que o empregado está doente, ou com algum problema particular. Nada. Bartleby permanece um enigma.

Bartleby, O Escriturário não prima por um enredo complexo, na superfície. É até bem simples, em parte por causa da extensão do texto. É impressionante como Melville consegue, em uma obra tão curta, dotar seus personagens de tanta complexidade psicológica; não há explicação única, nem para a inação de Bartleby, nem para a conivência do patrão.
“Alguns dias se passaram, durante os quais o escriturário se absorveu de novo em mais uma extensa cópia. A maneira notável como ele se conduzia pela segunda vez levou-me a observar de perto a sua atividade. Constatei que nunca saía para jantar; que, aliás, nunca ia a parte alguma. Nem me lembro de jamais o ter encontrado fora do meu escritório. Era verdadeiramente uma perpétua sentinela naquele canto. Todavia, cerca das onze horas da manhã, notei que Ginger Nut aproximava-se da abertura do biombo de Bartleby, como se houvesse sido chamado silenciosamente ali por gesto, invisível para mim do lugar onde me sentava.” (página 38)
O escritor espanhol Enrique Vila-Matas escreveu um livro em que se refere à “Síndrome de Bartleby”, pela qual escritores optam pelo “não” e deixam de escrever (veja-se o caso famoso de Salinger, que nada mais escreveu depois de O Apanhador No Campo de Centeio, ou no caso brasileiro, do nosso Raduan Nassar). Resenhei o livro de Enrique Vila-Matas, Bartleby e Companhia, aqui neste blogue.

É quase sempre redutor usar dados da biografia do autor para tentar explicar alguma de suas obras, e por isso tal recurso não costuma ser usado em análises críticas de literatura.  Mas um dado interessante da biografia de Herman Melville é que ele se tornou um autor progressivamente desconhecido a partir da publicação de Moby Dick, como já disse. Ele se torna cada vez mais introspectivo, recolhido a si mesmo. 

E aqui vou usar uma alusão direta a Viktor Frankl (Em Busca de Sentido, resenhado aqui no blogue) e dizer que, para Bartleby, a vida perdera o sentido. E o mesmo, para Melville, assumindo o risco da comparação. De fato, Bartleby chega ao cúmulo de se mudar para o escritório, fazendo dele a sua casa.

Como você, leitor que me acompanha, o que muito me honra, já deve ter percebido, lá no blogue, na seção “O que estou lendo”, acrescentei a O Vidiota este Bartleby, O Escriturário. Não por acaso. É que, durante a leitura de O Vidiota, tantas coincidências (existem, mesmo, coincidências?) foram acontecendo, tantas situações e construção similar de personagem pelo autor Jerzy Kosinski, que resolvi antecipar Melville.

De uma maneira sub-reptícia, todas as pessoas que trabalhavam naquele escritório vão incorporando o verbo preferir ao seu vocabulário:
“Enquanto Nippers, com um ar extremamente irritado, ia saindo, Turkey aproximou-se calmo e bonachão.
— Com o devido respeito, senhor – disse ele –, ontem estive aqui pensando sobre Bartleby, e acho que se ele preferisse tomar todos os dias uma boa cerveja, isso o poria em forma e contribuiria para nos ajudar na revisão das cópias.
— Então você também pegou essa palavra – disse eu, ligeiramente enervado.
— Desculpe, senhor, que palavra? – perguntou Turkey, delicadamente introduzindo-se no exíguo espaço por detrás do biombo, levando-me assim a esbarrar no escriturário. – Que palavra, senhor?
— Prefiro que me deixem sozinho aqui – disse Bartleby, como que ofendido por ver-se perturbado no seu retiro.
Essa é a palavra. – É essa.” (página 59)
Bartleby, O Escriturário pertence a uma linha literária que perpassa A Metamorfose, de Franz Kafka; O Vidiota, de Jerzy Kosinsky; A Fera Na Selva, de Henry James e até mesmo Stoner, de John Williams – todas elas com suas profundas diferenças de concepção e filosofia. O fio que une tais obras é a inação, às vezes consciente, outras, inconsciente. Parece não ser uma opção, mas uma derrocada do eu diante dos sonhos, da vida, em suma. Em A Metamorfose, Gregor Sansa se transforma num inseto abjeto; em O Vidiota, Chance Gardener se abstrai do mundo exterior; em A Fera Na Selva, John Marcher e May Bartram esperam algo que não vem, e enquanto isso, são inativos; em Stoner, William Stoner tem uma vida plana, contra a qual não se insurge. E todos me lembram uma peça que me causou alto impacto, Esperando Godot, de Samuel Beckett, sobre o absurdo de algumas pessoas passarem um longo tempo esperando alguém que, afinal, não vem.

Bartleby configura um caso bastante curioso. Ele é o personagem para quem a vida, diante do sistema, não tem mais sentido; a falta de sentido torna-o inadequado para ser utilizado pelo sistema a que deveria servir. Poderíamos, a priori, pensar em resistência (ainda que inconsciente). Entretanto, a posteriori, descobrimos que não se trata, efetivamente, de resistência, pela própria caracterização do personagem, como se segue abaixo:
“Olhei atentamente para ele, e notei que seus olhos mostravam-se baços e vidrados. Instantaneamente me ocorreu a ideia de que aquela sua extraordinária aplicação em fazer cópias junto à sombria janela durante as primeiras semanas no meu escritório lhe tivesse afetado temporariamente a vista.” (página 61)
“Ele não retrucou sequer uma única palavra; tal como a derradeira coluna de um templo em ruínas, continuou de pé, mudo e solitário, no meio da sala deserta.” (página 65)
As descrições acima não podem ser coladas a um personagem que se revolta contra o sistema. Ao contrário, é de alguém que se submete a ele, e por se submeter tão profundamente, torna-se apático, desinteressado e, portanto, descartável. O sistema precisa de nossa adesão entusiástica, mas não crítica.

Por tudo isto, classifico este Bartleby, O Escriturário, como uma pequena obra-prima. Pequena somente na extensão textual. Grande na caracterização psicológica do seu protagonista e no texto subjacente, muito mais complexo do que o texto aparente. Mais que o recomendo, ainda mais nestes tempos em que vivemos todos.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Resenha nº 132 - Fantasmas na Biblioteca, de Jacques Bonnet


Resultado de imagem para livro fantasmas na bibliotecaTítulo original: Des Bibliothèques Pleines de Fantômes
Título em português: Fantasmas na Biblioteca
Autor: Jacques Bonnet
Tradutor: Jorge Coli
Editora: Civilização Brasileira
Edição: 1ª
Copyright: 2008
ISBN: 978-85-200-1000-6
Páginas: 160
Origem: França
Bibliografia do autor (incompleta): Lorenzo Lotto, 1197; À l’enseigne de l’amitié, 2003; De la coïncidence des opposés et autres variations sur les contraires, 2005 ; Femmes au bain, le voyeurisme dans la peinture occidentale, 2006 ; Des bibliothèques pleines de fantômes (Fantasmas na Biblioteca), 2008 ; Quelques historiettes ou petit éloge de l’anecdote en littérature, 2010 ; Comment regarder Degas, 2012 ; Eugêne Atget, un photographe si discret, 2014 ; La femme entre les deux âges ou Misère du viellard amoreux (A mulher entre as dus idades ou Miséria do velho apaixonado), 2017.

Para quem gosta, de fato, de ler, é uma agradável experiência quando se consegue ter um bom livro que fala sobre livros – nossa paixão nada secreta. Afinal, isto nos dá uma sensação de pertencimento a uma confraria não oficial e sem localização exata no mundo, a Confraria dos Leitores. Normalmente, somos vistos, ainda mais nestes tempos do onipresente smartphone como seres estranhos, quase temíveis – umas vezes, como seres antiquados, outras vezes, talvez, como componentes de alguma Teoria da Conspiração livresca. E, quando encontramos este Fantasmas na Biblioteca, de Jacques Bonnet, numa livraria virtual, por apenas R$ 15,90 (incluído aí o frete), não conseguimos resistir. Sabemos, o preço baixo assim é porque é parte de um saldão, não é livro que se venda tão fácil. Por essas, salve a internet!

Difícil encontrar dados biográficos deste autor, em sítios brasileiros ou portugueses. Desta forma, tomei a meu encargo traduzir esta breve biografia, encontrada em francês com a mesma dificuldade. Jacques Bonnet nasceu em 1949, na França. Trabalhou por trinta anos como editor, principalmente na editora Flammarion (de 1985 a 1986). Atuou como professor em várias universidades francesas e estrangeiras e no Institut Politique de Paris. Publicou regularmente na seção Livres du Monde (Livros do Mundo), entre 1982 e 1985, e no jornal L’Express (1989-1994). Trabalhou por um tempo no Centro Georges Pompidou, em Paris, assumiu a função de redator-chefe do Cahiers du Syndicat de la Librairie; co-dirigiu um dossiê no famoso jornal satírico francês Canard Enchaîné. Desde 2005, Jacques Bonnet trabalha como tradutor de inglês e de italiano.
Fantasmas na Biblioteca não é um livro de ficção. Entretanto, para o leitor que ama livros, é um prato apetitoso. Lá no sítio do Grupo Editorial Record, encontramos a seguinte informação que nos ajuda a posicionar este autor diante de nossa paixão:
“Jacques Bonnet é bibliófilo, editor e tradutor. Francês, é uma autoridade quando se trata de livros raros. Ao lado de José Mindlin, Umberto Eco e Alberto Manguel, é considerado um dos maiores especialistas em bibliofilia e teoria da literatura.”
Alberto Manguel, de vez em quando, visita este meu blogue: já resenhei dele A Biblioteca À Noite e, recentemente, O Leitor Como Metáfora. O livro em questão segue a mesma linha. É dividido em nove capítulos, 1) Dezenas de milhares de livros; 2) Bibliomanias; 3) Arrumar e classificar; 4) Práticas de leitura; 5) De onde vêm?; 6) Ler as imagens; 7) Personagens reais e personagens fictícios; 8) O mundo ao seu alcance; 9) Fantasmas de bibliotecas.
A leitura é bastante tranquila, embora a quantidade de referências bibliográficas no corpo do texto enfade um leitor mais exigente. É que este tanto de inserções torna o texto mais lento, com a ressalva de que não estamos tratando aqui de um livro ficcional. É mesmo meio difícil de se definir o gênero da obra; talvez, possamos chamá-lo de ensaio misturado com história. Bonnet tem uma biblioteca particular de mais de vinte mil volumes.
Você viu aí em cima o termo “bibliófilo”. Ele designa aquele que tem amor pelos livros; amante ou colecionador de livros raros ou de boas edições. Já o vocábulo “bibliomaníaco” se refere aos fanáticos pelos livros, coleciona livros sem os ler, com a “paixão cega e indomável do avarento”. Há gradações ainda mais complicadas, que não cabe aqui, por não se tratar de um estudo aprofundado das filias e manias.
Fantasmas na Biblioteca, subtítulo A arte de viver entre livros, se inicia da seguinte maneira:
“No dia 1º de setembro de 1932 apareceu no jornal português O Século o anúncio de uma vaga de conservador-bibliotecário a ser preenchida no museu Condes de Castro Guimarães, em Cascais, pequena cidade litorânea a 30 quilômetros de Lisboa. No dia 16 de setembro, Fernando Pessoa mandou uma carta de candidatura àquele município. O documento de seis páginas está reproduzido na obra de Maria José de Lencastre, Fernando Pessoa, uma fotobiografia, coeditada em 1861 pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda e o Centro de Estudos Pessoanos, que comprei por 500 escudos em uma livraria de Coimbra no mês de novembro de 1983. Havia lá apenas um exemplar.” (página 11)
O primeiro capítulo vai nos falar da absoluta necessidade que têm os bibliófilos de encher prateleira e mais prateleiras de livros:
“Além disso, há os acasos que me fizeram exercer certo número de profissões do livro. Há um gosto pelas séries completas (por autor, assunto, coleção, época, país, etc.). A grande dificuldade em me separar de um livro (quem sabe se, no futuro, não terei necessidade de uma que, na hora, achei medíocre). Em todo caso, a escolha do que se deve guardar ou rejeitar requer uma energia que eu sempre economizei (com algumas exceções, é claro). E enfim a necessidade de ter à disposição todos os livros, depois todas as pinturas, músicas, filmes, como elemento de liberdade interior.” (página 23)
O capítulo dois vai adentrar a entranhada questão das bibliomanias – estamos no campo dos TOC’s, Transtornos Obsessivos-compulsivos – citando a biblioteca da abadia beneditina em O Nome da Rosa, de Umberto Eco (preciso reler este livro ótimo!), a do Auto de fé, de Elias Canetti, os 12 mil volumes “definitivos” constantes da biblioteca do Nautilus, do capitão Nemo, personagem da obra As Vinte Mil Léguas Submarinas (também preciso reler este). Ou, então, os bibliomaníacos que são todos os personagens do livro A Casa de Papel, de Carlos María Dominguez.
Bonnet cita textualmente as palavras do narrador de A Casa de Papel:
“Sempre me perguntei por que guardo livros que só me poderão ser úteis num futuro distante, títulos distantes de meus percursos mais costumeiros, lidos apenas uma vez e cujas páginas não abrirei tão cedo, talvez mesmo jamais. Mas como me desfazer, por exemplo, de O chamado da selva sem destruir uma das raras peças constitutivas de minha infância, de Zorba, O grego, que selou minha adolescência com lágrimas, de A 25ª hora, e de tantos outros, relegados há muito tempo às prateleiras mais altas, inteiros porém, e muda na fidelidade sagrada que lhes devotamos.” (página 34)
O capítulo três vai discorrer a respeito das dificuldades de organização de uma biblioteca. Talvez o leitor não tenha atinado ainda para isso (possivelmente, você não tem uma biblioteca gigantesca em casa), mas quando o número de livros se conta aos milhares, a dificuldade de catalogá-los de uma maneira racional é imensa. Se esta catalogação não for objetiva, o leitor simplesmente não encontra o volume desejado. E o pior, todas as categorizações falham no quesito precisão.
O quarto capítulo aborda as práticas da leitura:
“Mas você tem um método de leitura rápida?” Sim, é claro, e um só: faz cinquenta anos que passo grande parte do meu tempo lendo todo tipo de oba, em todo tipo de circunstância, para todos os fins. Como para qualquer atividade que se tornou familiar (manual, artística ou esportiva), ela oferece necessariamente uma relação algo especial com o objeto em questão, no caso, a coisa impressa (“Anos de trabalho são necessários antes que os mecanismos cerebrais da leitura, bem lubrificados, se deixem enfim esquecer” – Stanislas Dehaene). O importante não é ler depressa, mas ler cada livro com a velocidade que ele merece. É tão prejudicial passar tempo demais com alguns quanto ler outros rapidamente demais. Há livros que se dão a conhecer pelo folhear; outros que apreendemos somente depois da segunda ou terceira leitura; outros ainda que serão lidos a vida inteira com proveito.” (páginas 60/61)
De onde vêm? é o título do quinto capítulo. Eles nos vêm pela capa bonita que nos chamou a atenção, um título misterioso (acho Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway um dos títulos mais bem bolados), etc. e quando gostamos mesmo de um autor, procuramos outros livros dele, às vezes desesperadamente, pois tais exemplares estão esgotados. Bonnet cita, por exemplo, o caso de Hamsun (escritor com o livro Fome já resenhado aqui neste blogue); leu , que
“me levou primeiro a ler todos os livros de Hamsun publicados em francês, o que não era fácil, pois a maioria estava esgotada na época. (Levei anos para conseguir Auguste, le Marin – Augusto, o Marinheiro), o último que me faltava ler; foi na Biblioteca Nacional, onde as obras solicitadas para o meu trabalho tardavam a chegar, e nunca esquecerei a emoção que me invadiu quando peguei enfim o livro, procurado havia anos, trazido por um carrinho na sala Labrouste: eu ia enfim saber saber o que tinha acontecido com a imprevisível Edwarda!” (página 75)
O depoimento se fecha com uma emocionada e poética passagem (não podia ser diferente):
“Os livros de minha biblioteca são como as casas antigas, carregadas da presença dos homens e das mulheres que lá viveram no passado, com seus quinhões de alegrias e sofrimentos, de amores e aversões, de surpresas e decepções, de esperanças e resignações. Pensando bem, eu só vivi em casas velhas...” (página 156)
Fantasmas na Biblioteca é livro para bibliófilos, bibliomaníacos e assemelhados. Para mim, claramente um destes estranhos seres extraterrestres, um prazer. Gostei de seguir Jacques Bonnet em seu périplo livresco; amei me sentir membro de uma quase silenciosa confraria misteriosa, a dos amantes dos livros. Isto é importante, pois eu, como todos, não gosto de ser sozinho no mundo.
Para quem ame livros, mas ame de verdade, super indico esta obra; para quem nem tanto os ame, também indico, com a licença de pular as páginas que lhe pareçam mais maçantes. Só para tentar entender este universo paralelo, vale a pena.
A seguir, antes de terminar, extraí um teste da Revista Estante, para você verificar se se enquadra na categoria de bibliófilo, citando os devidos créditos. Quem não gosta de fazer tais testes? Nem que seja por curiosidade. E, pelas treze caracterizações, descobri que não sou um bibliófilo. Será?! É, talvez seja por que eu não queira admitir...

  1. Andas sempre, sempre, com um livro. Nunca se sabe quando irás ter uns minutos – ou uns segundos – para leres mais uma página, um parágrafo ou duas linhas
  2. A tua carteira fica mais leve sempre que passas por uma livraria. Não consegues resistir ao chamamento de um bom livro, mesmo que já tenhas esgotado o teu orçamento (e que ainda seja apenas dia 2).
  3. Os teus amigos sabem sempre o que vão receber de presente. Mas já desistiram de te oferecer livros, porque o mais provável é que já os tenhas lido. Em contrapartida, passaram a oferecer-te marcadores.
  4. Sabes que a adaptação de um livro ao cinema nunca fará justiça ao original. Por mais que tentes manter a mente aberta, à frase “o livro era mil vezes melhor” segue-se uma lista de todas as incoerências e falhas encontradas no filme.
  5. Achas que qualquer sítio é bom para ler. Os 10 segundos de uma viagem de elevador, a fila do supermercado, as escadas rolantes do metro ou mesmo enquanto andas pela rua. E andar de transportes públicos não se justifica só por razões ambientais.
  6. Estás a terminar um livro e já sabes o que vais ler a seguir. Na verdade, a tua lista to read tem livros suficientes para vários anos de leitura.
  7. Em casa nunca tens prateleiras suficientes. As tuas prateleiras têm sempre duas filas de livros e há mais empilhados nas outras divisões da casa, incluindo a casa de banho.
  8. És viciado no cheiro a papel e a tinta. Enterrar o nariz entre as páginas de um livro é tão natural como ler a badana.
  9. És a pessoa a quem os amigos telefonam quando querem saber o que ler a seguir. Isto quando não ligas aos amigos a avisar que têm mesmo de ler aquele livro.
  10. Já perdeste a conta às horas não dormidas. Porque precisas mesmo de ler só mais aquele capítulo. Mas, quando te apercebes, estás a terminar o livro. E já é manhã.
  11. Arrastas a leitura nas últimas páginas de cada livro. Porque não te queres separar dos novos amigos e sentes-te órfão de cada vez que acabas mais um livro.
  12. Quando fazes as malas para ires de férias, transportas mais livros do que roupa. E escolhes os destinos de acordo com as livrarias que queres conhecer.
  13. A tua melhor companhia numa esplanada, ao almoço, na praia ou no jardim é um livro. E irritas-te quando aparece um amigo ou conhecido a interromper-te a leitura.

(http://www.revistaestante.fnac.pt/13-sinais-mostram-es-um-bibliofilo/)

domingo, 21 de outubro de 2018

Resenha nº 131 - Harry Potter e A Pedra Filosofal, de J. K. Rowling


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Título original: Harry Potter and The Philosofer’s Stone
Título em português: Harry Potter e A Pedra Filosofal
Autora: J. K. Rowling
Tradutor: Lia Wyler
Editora: Rocco
S/Ed
Copyright: 1997
ISBN: 85-325-1101-5
Gênero literário: Romance Infanto-juvenil
Origem: Inglaterra
Bibliografia da autora (incompleta) – Série Harry Potter: Harry Potter e A Pedra Filosofal, 1997; Harry Potter e A Câmara Secreta, 1998; Harry Potter e O Prisioneiro de Azkaban, 1999; Harry Potter e O Cálice de Fogo, 2000; Harry Potter e A Ordem da Fênix, 2003; Harry Potter e O Enigma do Príncipe, 2005; Harry Potter e As Relíquias da Morte, 2007. Obras relacionadas à série Harry Potter: Animais Fantásticos e Onde Habitam (roteiro do filme), 2001; Quadribol Através dos Séculos, 2001; Os Contos de Beedle, O Bardo, 2008; Harry Potter e A Criança Amaldiçoada (roteiro escrito por Jack Thorne), 2016; Short Stories from Hogwarts of Power, Politics, and Pesky Poltergeists, 2016; Short Stories from Hogwarts od Heroism, Hardship and Dangerous Hobbies, 2016; Hogwarts: An Incomplete and Unreliable Guide, 2016; Animais Fantásticos e Onde Habitam (roteiro do filme), 2016. Contos: A Prequela de Harry Potter, 2008; Dumbledore’s Army Reunites at Quiddditch World Cup Final, 2014. Adultos: Morte Súbita, 2012. Série Cormoran Strike: O Chamado do Cuco (como Robert Galbraith), 2013; O Bicho-da-Seda (como Robert Galbraith), 2014; Vocação Para O Mal (como Robert Galbraith), 2015; Lethal White (como Robert Galbraith), a ser lançado.

Como pode alguém, em plena maturidade leitora, ler uma bobagem como Harry Potter e A Pedra Filosofal?! Para responder a esta questão preconceituosa, é preciso exatamente... ser um leitor maduro! Explico-me: um leitor maduro é aquele que consegue relativizar, é aquele que consegue partir de contextualizações do que lê. Ah, e tem aquele menino que insiste em coexistir com o homem maduro, que o abandona por instantes e se diverte com coisas simples e simplesmente encantadoras. A profissão de professor favorece isto, reconheço, pois, por dever de profissão, para encantar alunos temos de encantar nossa criança interna. Este Harry Potter é uma releitura. Sou capaz de me encantar com ele, com O Senhor dos Anéis, com As Crônicas de Nárnia. Leitores de fantasia talvez sejam pessoas diferentes. Não melhores, mas diferentes. E, olha, me diverti pra caramba com a leitura deste livro! Precisa mais justificativa?!

Joanne Rowling nasceu em 31/07/1965, em Yates, Gloucestershire, Reino Unido. É filha de Peter James Rowling, um engenheiro mecânico da famosa marca Rolls-Royce e Anne Rowling, uma técnica na área de ciências. Na época de sua infância, Rowling já gostava de escrever história, lidas para sua irmã. Em 1982, tentou ingressar na Universidade de Oxford, mas não obteve sucesso. Obteve o título de Bacharel em Artes em Francês e Estudos Clássicos, na Universidade de Exeter. Joanne casou-se duas vezes: a primeira, com o português Jorge Arantes, quando ela residiu na cidade do Porto, em Portugal, por 18 meses. Deste relacionamento, nasceu Jessica Isabel Rowling Arantes. Casou-se uma segunda vez, com Neil Murray, anestesista escocês. O “K”, ajuntado ao seu nome artístico vem da avó, Kathleen.
J. K. Rowling terminou de datilografar os originais de Harry Potter e A Pedra Filosofal em 1995. O trabalho foi apresentado a nada menos que doze editoras, sendo recusado por todas. Finalmente, recebeu a aprovação da Bloomsbury, uma editora de Londres. Consta que a decisão do editor foi fortemente influenciada pela sua filha Alice Newton, de oito anos, que se encantou com o primeiro capítulo da história e exigiu que lhe lessem o segundo.
Antes de entrar nos comentários do livro, propriamente ditos, vale fazer uma pergunta: que diabos é uma pedra filosofal? Era um artefato buscado por muitos alquimistas (alquimistas eram meio químicos, meio mágicos) da Idade Média. Atribuía-se a este artefato poderes de transformar qualquer coisa em ouro e até mesmo de prolongar a vida de quem o possuísse. Para explicar melhor esta questão importante para a compreensão do livro, deixemos falar a Wikipedia, verbete “Pedra Filosofal”:

“Ao longo da história, criações de pedras filosofais foram atribuídas a várias personalidades, como Paracelsus e Fulcanelli, porém é "inegável" que a lenda mais famosa refere-se a Nicolas Flamel, um alquimista real que viveu no Século XIV. Segundo o mito, Flamel encontrou um antigo livro que continha textos intercalados com desenhos enigmáticos. Porém, mesmo após muito estudá-lo, Flamel não conseguiria entender do que se tratava. Segundo a lenda, ele teria encontrado um sábio judeu em uma estrada em Santiago na Espanha, que fez a tradução do livro, que tratava de cabala e Alquimia, possuindo a fórmula para uma pedra filosofal. Por meio deste livro, Nicolas Flamel teria conseguido fabricar uma pedra filosofal. Segundo a lenda, esta seria a razão da riqueza de Flamel, que inclusive fez várias obras de caridade, adornando-as com símbolos alquímicos. Ao falecer, a casa de Flamel teria sido saqueada por caçadores de tesouros ávidos por encontrar pedras filosofais. A lenda conta que, na realidade, ambos, Flamel e sua esposa, não faleceram, e que em suas tumbas foram encontradas apenas suas roupas no lugar de seus corpos.”

Harry Potter era um bebê quando fora deixado na porta dos seus tios, os Dursley, moradores da Rua dos Alfeneiros, nº 4. A família era composta pelo Sr. Válter Dursley, a Sra. Petúnia Dursley e Duda, filho do casal. Começo triste, embora comum a muitas histórias. Entretanto, antes de Harry ser deixado na porta dos tios, coisas muito, muito estranhas vão acontecendo:
“Foi na esquina da rua que ele [o Sr. Dursley] notou o primeiro indício de que algo estranho ocorria – um gato lia um mapa. Por um instante o Sr. Dursley não percebeu o que vira – em seguida virou rapidamente a cabeça para dar uma segunda olhada. Havia um gato de listras amarelas sentado na esquina da rua dos Alfeneiros, mas não havia nenhum mapa à vista.” (página 8)
O estranhamento continua, no caminho do Sr. Dursley para o seu trabalho. Agora, é a vez de muita gente, estranhamente vestida, nas ruas. Medrosamente, Válter escuta tais pessoas mencionarem à meia voz os Potter e o nome do filho deles, Harry.
Este era um parentesco que o Sr. Dursley preferia não tornar público, pois, no seu conceito, os Potter eram gente muito esquisita. Não eram normais. E ele desejava ser o mais normal possível. Mas não tinha jeito: coisas estranhas continuavam acontecendo; certamente, aquele não seria um dia normal. Ao sair do serviço, às cinco da tarde, o Sr. Dursley deu, sem querer, um encontrão num velho, vestido com uma capa roxa:
“— Não precisa pedir desculpas, caro senhor, porque nada poderia me aborrecer hoje! Alegre-se, porque o Você-Sabe-Quem finalmente foi-se embora! Até trouxas como o senhor deviam estar comemorando um dia tão feliz!” (página 10)
E aí ficamos sabendo que trouxas é como os bruxos designam gente normal, sem poderes encantatórios, gente não bruxa.
E a coisa piora, com uma invasão disparatada de corujas, conforme os noticiários do dia:
“E, por último, os observadores de pássaros em toda parte registraram que as corujas do país se comportaram de forma muita estranha hoje. Embora elas normalmente cacem à noite e raramente apareçam à luz do dia, centenas desses pássaros foram vistos hoje voando em todas as direções desde o alvorecer. Os especialistas não sabem explicar por que as corujas de repente mudaram o padrão de sono”. (página 11)
Os Dursley são descritos de maneira pouco elogiosa: são estúpidos, permissivos com o filho mimado, gente sem imaginação, grudados à realidade de um mundo sem graça. E, ao serem obrigados a receber Harry Potter na sua casa, têm de aguentar irremediáveis mudanças em sua rotina. É que os pais de Harry morreram num embate com um ser muito poderoso e somente o menino se salvou, mesmo assim, com uma cicatriz na testa, em forma de relâmpago. E o pior, coisas irritantes acontecem na presença do estranho órfão. Duda não para de maltratar Potter. O tempo todo, Harry é lembrado de não pertencer, de fato, à família dos trouxas; ele dorme dentro de um armário, debaixo da escada.
Mesmo num prosaico passeio ao zoológico, as coisas estranhas continuam acompanhando Harry, como se fossem uma espécie de nuvem agourenta:
“A cobra inesperadamente abriu os olhos, que pareciam contas. Devagarinho, muito devagarinho, levantou a cabeça até seus olhos chegarem ao nível dos de Harry.
 E piscou.
 Harry arregalou os olhos. E olhou depressa a toda volta para ver se havia alguém olhando. Não havia. E retribuiu o olhar da cobra, piscando também.A cobra acenou com a cabeça na direção de tio Válter e de Duda, depois levantou os olhos par o teto. Lançou um olhar a Harry que dizia com todas as letras:
 Isso é o que me acontece o tempo todo.
 — Eu sei – murmurou Harry pelo vidro, embora não tivesse muita certeza se a cobra poderia ouvi-lo –, deve ser bem chato.A cobra concordou com um aceno de cabeça enfático.
 — Mas de onde é que você veio? – perguntou Harry.
 A cobra apontou com o rabo uma placa próxima ao vidro. Harry espiou.
 Boa Constrictor, Brasil.
 — Era bom lá?
A jiboia apontou novamente a placa com o rabo e Harry leu: Este espécime nasceu em cativeiro.” (página 29)
Várias cartas chegam para Harry, interceptadas pelo tio Válter, que não quer nada com bruxarias e esquisitices. Entretanto, apesar da vigilância dele, Harry acaba sabendo que deverá ir para uma escola chamada Hogwarts, para aprender a lidar com a sua realidade... digamos, mágica. Hogwarts é um grande internato, divido entre quatro casas, com direito a brasões de armas, fantasmas e identificação próprios: Sonserina, Lufa-lufa, Grinfinória e Corvinal. Harry integrará a casa de Grinfinória.
Os relatos, as descrições nada convencionais vão deixando suas marcas no livro. Harry conhece Rúbeo Hagrid, um gigante, que vai orientá-lo em sua matrícula em Hogwarts. Potter vai então para Londres e, seguindo as instruções, descobre um tal Beco Diagonal (nenhum trouxa é capaz de ter acesso a este beco), onde funciona um verdadeiro shopping de rua, com artigos como varinhas mágicas, uniformes, livros de feitiço, de história de magia, diversos apetrechos para feitiçarias básicas ou avançadas, etc.
Comprado todo o material de que necessitará para o primeiro ano, ajudado sempre por Hagrid, Harry embarca sozinho no trem, na plataforma Nove e Meio (plataforma mágica, que se abre entre a nove e a dez, somente para os bruxos). Já em Hogwarts, instituição de ensino à qual Harry Potter tem acesso por viagem de trem, o pequeno bruxo faz amizades com Rony, Hermione Granger (que, a princípio, não vai muito com a cara de Harry), Nelville Longbottom; entra em contato com o bondoso e esperto professor Alvo Dumbledore. Surpreso, percebe que é famoso por ter sobrevivido ao ataque de Você-Sabe-Quem. Cultiva inimigos também, como o professor Snape, a turma de Draco Malfoy.
Muitas, muitas peripécias estranhas vão acontecendo com o nosso bruxo iniciante. Ele terá de aprender, nem sempre de maneira fácil, as regras daquele mundo paralelo. Aprende a jogar o Quadribol, um jogo cujo campeonato apaixona todos em Hogwarts. É disputado por bruxos a bordo de suas vassouras. Harry revela-se um ótimo apanhador e recebe de presente a melhor vassoura voadora do mundo, uma Nimbus 2000, novinha em folha.
Como qualquer estudante, infringe algumas regras, sofre punição por tais faltas. Há constantes discussões, às vezes tapas, entre os amigos de Harry e a turma de Malfoy. Mas Harry é um predestinado, tem poderes imaturos ainda, mas muito fortes.
Harry Potter e A Pedra Filosofal é o primeiro livro de uma série de sete. Esta saga fez a cabeça de muitos jovens pelo mundo todo, cumprindo a importante tarefa de iniciar leitores no mundo da literatura. Não é à-toa. Possui uma história bem contada, interessante, que apela à imaginação. Leitura de escapismo, sim, como insistem alguns, mas encantadora (com trocadilho, é claro).
A tal pedra filosofal estará no centro de uma trama que poderá abalar profundamente não só a instituição de Hogwarts, mas a vida de Harry Potter em particular, e o mundo dos bruxos, em geral. O grande vilão de toda a saga, de que este primeiro volume nos dá vários detalhes iniciais, é este Você-Sabe-Quem, o inominável, referido por seu nome verdadeiro somente pelos mais corajosos, como Voldemort, o assassino dos pais de Harry.
Livros infanto-juvenis procuram sempre trazer alguma mensagem boa, valores positivos, virtudes, uma vez que se destinam a jovens ainda em formação. E Harry Potter e A Pedra Filosofal cumpre bem este papel. Superação, solidariedade, amizade sincera, protagonismo, coragem, trabalho, estudos como fonte de conhecimento útil estão presentes. É muito bom ver-se o contato amigo entre Hagrid, Hermione Granger, Harry Potter, Rony, Nelville.
Parte do sucesso destes sete livros da saga, além da já referida história bem contada e os valores que ela tem, é o planejamento idealizado pela autora, J. K. Rowling. À medida que foram saindo os volumes, a história se atualiza, os personagens crescem e se adequam à evolução psicológica de seus leitores. Desta forma, a narrativa e suas referências vão ganhando maior profundidade a cada livro, mantendo a legião de leitores interessada por mais tempo.
E tanto a série tem seu valor que, estou eu aqui, neste blogue, resenhando um livro infanto-juvenil. Certo, você pode me dizer, era mesmo a sua proposta, você já disse, homenagear o mês das crianças e dos jovens. É verdade. Entretanto, mais do que isso, preciso lhe dizer, li este Harry Potter e A Pedra Filosofal pela segunda vez, e ambas com inegável prazer.
Fica a dica, a quem quiser dar a oportunidade de dar voz e coração à sua própria criança interna. Afinal, nem sempre de complexidades psicológicas, científicas, filosóficas ou políticas vivemos nós, os trouxas. Yuval Noah Harari, escritor do excelente Sapiens – Uma breve história da humanidade nos diz que a capacidade de fabulação é o que tornou o homem um ser superior aos demais. E capacidade de fabulação é o que não falta a este Harry Potter e A Pedra Filosofal.


terça-feira, 9 de outubro de 2018

Resenha nº 130 - Hiroshima, de John Hersey


Resultado de imagem para livro HiroshimaTítulo original: Hiroshima
Título em português: Hiroshima
Autor: John Hersey
Tradutor: Hildegard Feist
Edição: 1ª
Reimpressão: 8ª
Editora: Cia. das Letras
Copyright: 1973
ISBN: 978-85-359-0279-2
Páginas: 172
Gênero: Literatura de não ficção
Bibliografia do autor: Men on Bataan, 1942; Into the Valley, 1943; A Bell for Adano , 1944; Hiroshima, 1946; The Wall, 1950; The Marmot Drive, 1953; A Single Pebble, 1956; The War Lover, 1959; O comprador de crianças - no original The Child Buyer, 1960; Here to Stay, 1963; White Lotus, 1965; Too Far To Walk, 1966; Under the Eye of the Storm, 1967 ; The Algiers Motel Incident, 1968; Letter to the Alumni, 1970; The Conspiracy, 1972; My Petition for More Space, 1974 ; The Walnut Door, 1977; Aspects of the Presidency, 1980; The Call, 1985; Blues, 1987; Life Sketches, 1989; Fling and Other Stories, 1990; Antonietta, 1991; Key West Tales, 1994.

06 de agosto de 1945. 08:15. A cidade japonesa de Hiroshima iniciava mais um dia sem novidades em sua rotina. Com o formato de um leque, o local é cortado pelo rio Ota; ele o divide em canais, formando ilhas. Hiroshima crescera em torno de um castelo feudal do século XVI e recebeu o estatuto de cidade em 1589. De um momento para o outro, sem que as pessoas pudessem conceber o perigo mortal – muitas ainda dentro de suas casas – um clarão mais forte do que o sol invadiu o espaço da cidade. Uma onda misteriosa, potente, chegou, literalmente reduzindo as habitações a escombros. O ruído de uma explosão sem igual chegou depois. A Humanidade tinha assim a notícia de que o mundo entrara na Era Atômica. Os dados oficiais dão conta de 250.000 mortos e feridos. Corpos crestados, derretidos pelo então incompreensível poder de uma única bomba. Little boy, como fora apelidada, era uma bomba atômica de fissão nuclear. A triste familiaridade da população de outras cidades com os voos dos B-29 americanos cobrou um alto preço. Hiroshima ainda não sofrera incursões aéreas. As sirenes, naquele dia, não tocaram. Por que tocariam? Um único avião, ainda que uma fortaleza aérea, poderia representar tão grande perigo?

John Hersey nasceu na China, em 17/06/1914 e morreu em 24/03/1993, na cidade americana de Key West, Florida. Era filho dos missionários Roscoe e Grace Baird Hersey. Sua família retornou aos Estados Unidos quando John tinha dez anos de idade. Formou-se pela Universidade Yale, fez pós-graduação em Cambridge. Trabalhou com jornalista, cobrindo as guerras na Europa (Sicília) e na Ásia (Guadalcanal), produzindo artigos para as revistas Time, Life e New Yorker. Sempre escreveu bons artigos, mas tornou-se mundialmente famoso pela sua reportagem sobre Hiroshima. Esta foi publicada apenas um ano depois da explosão da bomba atômica e ocupou inteiramente a edição da New Yorker. Consta que o sucesso foi espetacular. A tiragem da publicação se esgotou. Albert Einstein tentou encomendar mil exemplares, mas não foi possível atendê-lo.
No posfácio Jornalismo com H, Matinas Suzuki Jr. nos diz que
Hiroshima é uma espécie de Cidadão Kane do jornalismo. Como o filme de Orson Welles, esse texto lidera todas as listas de “melhor reportagem” já escrita.  O autor John Hersey precisou de 31.347 palavras para explicar como uma única explosão matou 100 mil pessoas, feriu seriamente o corpo de mais 100 mil e machucou a alma da humanidade.” (página 161)
Hiroshima, posteriormente, foi publicado em forma de livro e esta edição da Cia. das Letras, que tenho em mãos, inclui a complementação da reportagem inicial, feita quarenta anos depois. Há um posfácio, como dito acima, que acrescenta importantes informações à edição.
Uma grande parte do impacto causado pelo texto de John Hersey se deve à instauração de um narrador-observador rigoroso ao tratar os fatos, mas que não emite, na maioria das vezes, juízos de valor. Como se fosse uma câmara de cinema, que apenas grava o que detecta. Outra parte se deve ao ponto de vista narrativo que o autor escolheu: o depoimento de seis pessoas, seis hibakusha – termo japonês aproximadamente traduzido como “sobreviventes”. Tal técnica narrativa confere ao trabalho, ao mesmo tempo, um forte viés de humanidade (são depoimentos de quem sofreu na carne e na alma os efeitos da explosão nuclear) e veracidade (as informações são cruzadas e apontam, em essência, para o mesmo ponto). Ainda, John Hersey foi extremamente feliz em escolher o gênero híbrido de reportagem-literatura. Não tornou os fatos mais palatáveis, mas seu texto é fluente. Tanto assim que o li quase que de uma sentada, não consegui largá-lo.
Como evidência da objetividade do texto de Hersey – de propósito evitei a palavra neutralidade, pois tal não existe em qualquer obra humana – transcrevemos parte do depoimento de uma das seis pessoas envolvidas pela explosão, o reverendo Kiyoshi Tanimoto:
“Então um imenso clarão cortou o céu. O reverendo se lembraria nitidamente de que o clarão partiu do leste em direção ao oeste da cidade em direção às montanhas. Parecia um naco de sol. Os dois amigos reagiram, apavorados – e tiveram tempo para reagir (pois mais de três quilômetros os separavam do centro da explosão). O sr. Matsuo subiu os degraus da frene, entrou na casa e praticamente se enterrou entre as trouxas de roupa. O sr. Tanimoto deu três ou quatro passos e se jogou entre duas grandes pedras do jardim, agarrando-se firmemente a uma delas. Com o rosto encostado na pedra, não viu o que aconteceu. Sentiu uma pressão repentina, e estilhaços de madeira e de telhas choveram sobre ele. Não ouviu barulho nenhum. (Praticamente ninguém em Hiroshima se lembra de ter escutado qualquer barulho produzido pela bomba.  Entretanto, um pescador que estava em sua sampana no mar Interior, perto de Tsuzu – o homem com que a sogra e a cunhada do pastor moravam –, viu o clarão e ouviu uma tremenda explosão, ele se encontrava a quase 32 quilômetros de Hiroshima, porém o estrondo foi maior do que quando os B-29 bombardearam Iwakuni, a apenas oito quilômetros de distância). (páginas 11/12)
Não há como transcrever para esta resenha todos os outros cinco depoimentos, caro leitor, sob pena de me tornar extremamente longo e cansativo. Cada relato tem sua própria característica, cada um a sua carga de sofrimento. Os dramas foram muitos, e não se restringiram à explosão e destruição de uma boa parte da cidade; nem se atrelou “apenas” ao sofrimento advindo da perda inapelável de pessoas amadas. Não.
Os efeitos da bomba, melhor dizendo, da radiação liberada pela fissura dos átomos fez ainda inúmeras vítimas tempo depois. Queimaduras profundas, ferimentos que não fechavam, dores de cabeça, enjoos e vômitos, diarreias constantes, queda de cabelo, anemia e redução de glóbulos brancos (e com ela, a anomalia do sistema imunização das pessoas), fraqueza generalizada ... uma lista de horrores.
Os outros personagens foram a Srta. Toshiko Sasaki, o Dr. Masakazu Fujii, a Sra. Hatsuyo Nakamura, o Padre Wilhelm Kleinsorge, o Dr. Terufumi Sasaki. Eis como nos relata John Hersey o estado destas pessoas, um ano depois da explosão de Hiroshima:
“Um ano depois da explosão a srta. Sasaki era uma aleijada; a sra. Nakamura viva na pobreza; o padre Keinsorge estava novamente hospitalizado; o dr. Sasaki não dava conta do trabalho como antes; o dr. Fujii perdera o hospital de trinta quartos que levara muitos anos para construir e não planejava reconstruí-lo; o sr. Tanimoto continuava com sua igreja em ruínas e já não tinha sua excepcional vitalidade. A vida dessas seis pessoas, que estavam entre as mais afortunadas de Hiroshima, nunca voltaria a ser a mesma. Suas opiniões sobre as próprias experiências e sobre o uso da bomba atômica evidentemente não eram unânimes.” (página 93)
Os sobreviventes – há pouco citei o termo hibakusha; literalmente, “pessoas afetadas pela explosão” – não tiveram vida fácil. O vocábulo japonês, uma perífrase para evitar exatamente um termo, pois, como nos informa Hersey, “os japoneses tendiam a evitar o termo sobreviventes, cuja ênfase no fato de estar vivo podia sugerir algum desrespeito para com os mortos sagrados”. Este é outro ponto importantíssimo no texto de John: ele fala de dentro da cultura japonesa, evitando o olhar do estrangeiro.
Continuando, eis o quadro da situação dos hibakusha, tempos depois:
“Por mais de uma década os hibakushas viveram num limbo econômico, aparentemente porque o governo japonês se recusou a arcar com qualquer responsabilidade moral pelos atos hediondos dos americanos vitoriosos. Embora logo se evidenciasse que muitos hibakushas sofriam consequências de sua exposição às bombas bem diferentes em natureza e grau daqueles de sobreviventes dos horripilantes bombardeios incendiários de Tóquio e outros lugares, o governo não tomou nenhuma providência especial para socorrê-los – até que, ironicamente, uma onde de fúria varreu o Japão quando os 23 tripulantes e a carga de atum de um navio pesqueiro, o Dragão Afortunado nº 5, foram afetados pela radiação da bomba de hidrogênio que os americanos testaram no atol de Bikini, em 1954.” (página 99)
Eis aqui, amigo leitor, duas evidências muito claras de que não se pode crer na possibilidade de um texto cem por centro neutro: no trecho acima transcrito, o narrador objetivo de Hersey se trai exatamente nos adjetivos, essa classe de palavras vinculada à transmissão de afetividade e emoção: “hediondos” e “horripilantes”. Não é, neste caso, a transcrição de depoimento, mas um comentário do narrador... não absolutamente objetivo.
Como se não bastasse, os hibakushas sofreram preconceitos sociais. Não conseguiam emprego, porque se divulgara que eles possuíam males escondidos no corpo, que a qualquer momento lhes impediria de trabalhar. Eram francamente segregados.
Uma das passagens que me impressionaram muito, advindas da cultura japonesa, está na descrição abaixo, sobre uma comunicação do fim da guerra, via rádio, do imperador (o Tenno):
“Havia um alto-falante nos destroços da estação. Muitos civis, todos com ataduras, alguns se apoiando no ombro das filhas, outros amparando-se com bengalas, escutaram a transmissão e, ao compreender que era o imperador que lhes falava, exclamaram, com os olhos cheios de lágrimas: ‘Que bênção maravilhosa o Tenno se dirigir a nós, em pessoa, e podermos ouvir sua voz! Estamos plenamente satisfeitos em meio a tamanho sacrifício.’ Quando souberam que a guerra terminara – quer dizer, que o Japão fora derrotado –, naturalmente ficaram decepcionados, mas, com o espírito tranquilo, obedeceram à ordem imperial de fazer um sacrifício sincero pela paz duradoura do mundo – e o Japão tomou seu novo caminho”. (página 71)
Estranha para nós, esta atitude é plenamente explicável pela cultura japonesa, em que do imperador emanava um poder absoluto sobre a vida e a morte de seus súditos. Então, temos a forte hierarquia, o reconhecimento do poder imperial, a sagração dos antepassados (culto aos mortos) e as diretrizes do budismo. Para o budista, pelo menos para uma das vertentes, o sofrimento aqui e agora proporciona ao seguidor de Buda uma reencarnação melhor, depurada. Este conjunto de crenças – não as estou questionando, mas tentando explicar as reações daquelas pessoas, apoiado no que me diz o livro – leva aquela gente a exercer o desapego, isto é, a se conformar com os fatos acontecidos e suas consequências. Claro que muitos não tiveram reações tão espiritualizadas, como vimos no contágio radioativo do pesqueiro Dragão Afortunado Nº 5. Mas, de resto, compreendo melhor agora o que motivava os kamikazes, pilotos suicidas desta segunda guerra, que pilotavam seus aviões diretamente sobre os navios inimigos, em rota de colisão. Não se discutia ordens emanadas do imperador.
Podemos achar tanta coisa muito estranha, deslocada assim do contexto cultural. Entretanto, no ocidente também temos coisas como a infalibilidade papal, que vigorou para os católicos, pelo menos até o Papa Francisco contestá-la. De novo, não estou fazendo juízo de valor, apenas relacionando fatos e atitudes.
Temos estes casos de terroristas muçulmanos, verdadeiros homens-bomba. Sabem que vão morrer e, ainda assim, morrem satisfeitos por vislumbrarem algum tipo de recompensa num outro mundo.
Hiroshima é, sem dúvida, um grande livro. John Hersey é, sem dúvida, um senhor jornalista. Suas opções ao escrever esta que é considerada a melhor reportagem de todos os tempos foram amplamente acertadas.
Não é que a leitura de Hiroshima dê prazer. Ao contrário, ela incomoda. E incomoda porque, lá no fundinho de nossa alma, temos dois sentimentos distintos, mas que correm para o mesmo estuário: primeiro, pertencemos todos a uma humanidade (solidariedade básica), e embora possamos “amolecer” nossa consciência, fatos de tais envergaduras não são possíveis de minorar (contundência); segundo, sabemos que a maldade não está vencida totalmente por nós mesmos (quem de nós não é capaz de alguma violência – às vezes, desarrazoada, vejam-se as brigas de trânsito).
Não é, portanto, leitura que se faça por prazer. É leitura que se faz pela importância do acontecido. Tais fatos nunca mais devem ser perpetrados. Até porque, como diz a brilhante frase dita pelo gênio Albert Einstein, “Não sei como será a terceira guerra mundial, mas sei como será a quarta: com paus e pedras.” Evidentemente, uma frase de efeito, mas verdadeira. Com a atual reserva atômica instalada para fins bélicos, se acontecer uma terceira guerra mundial, não haverá vencedores. Seremos todos perdedores, perderemos os avanços civilizatórios e retornaremos à era das cavernas.
Tal a importância de se ler Hiroshima, de John Hersey. Eu o recomendo enfaticamente, caro leitor. Incomoda, dói, é amargo, mas é necessário. Como alguns dos melhores remédios.