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terça-feira, 16 de agosto de 2016

Resenha nº 76 - O caminho estreito para os confins do norte, de Richard Flanagan

O Caminho Estreito Para Os Confins Do Norte
Autor: Richard Flanagan
Editora: Globo/Biblioteca Azul
Tradução: Celso Mauro Paciornik/Augusto Pacheco Calil
1ª Edição: 2015; 1ª reimpressão: 2016
ISBN: 978-85-250-5917-8
Prêmio Man Booker Prize
430 páginas
TAG – Experiências Literárias


Richard Flanagan é um escritor da Tasmânia, Austrália, nascido em 1961. Muito prestigiado – ele ganhou o prêmio literário Man Booker Prize de 2014 – é autor de seis livros. Tem trabalhos traduzidos para vinte  e seis países, o que atesta bem seu sucesso de crítica e de público. Aqui, no Brasil, também podemos encontrar O livro dos peixes de Gould, de sua autoria, ganhador do prêmio Commonwealth Writer’s Prize. O pai do nosso escritor foi um sobrevivente da construção da estrada de ferro Thai-Burma, mais conhecida como “Ferrovia da Morte”. Flanagan usou parte das memórias paternas para compor a história de O caminho estreito para os confins do norte, que, aparentemente, vai falar de guerra, somente.
Nada mais enganoso, porém. Esse é um texto excelente de um autor talentoso. Não é fundamentalmente uma história sobre qualquer episódio da Segunda Guerra Mundial, mas um mergulho na condição humana e em suas relações de cultura e de poder.
Richard Flanagan mistura uma poesia seca com uma prosa objetiva, sem muitos floreios, o que já transparece nas páginas 29/30, em um diálogo com Lynette Maison:
“Serei um monstro carniceiro, ele sussurrou na concha coralina da orelha dela, um órgão das mulheres que ele considerava indescritivelmente comovente com seu vórtice macio, espiralado, e que sempre lhe parecera um convite à aventura. E beijou com extrema suavidade o lobo da orelha da moça.
Você devia dizer o que pensa com suas próprias palavras, disse Lynette Maison. Palavras de Dorrigo Evans.
Ela tinha cinquenta e dois anos, estava além da idade de procriar, mas não de cometer loucuras, e se desprezava pelo domínio que o velho tinha sobre ela. Sabia que ele tinha não somente uma esposa, mas outra mulher. E, suspeitava, uma ou duas outras. Faltava-lhe até a glória sensual de ser sua única amante. [...]
Com ele, ela sentia a segurança inexpugnável de ser amada. Mas sabia, contudo, que uma parte dele – a parte que ela mais desejava, a parte que era luz nele – continuava elusiva e desconhecida. Em seus sonhos Dorrigo estava sempre levitando algumas polegadas acima dela. Em mais um dia ela se entregara à raiva, acusações, ameaças e frieza no trato com ele. Tarde da noite, porém, deitada ao seu lado, ela não desejava mais ninguém.”
Dorrigo Evans é um cirurgião militar e, junto com vários homens, é capturado e levado para o Japão, onde deverão atuar – esses australianos – na construção quase impossível da Ferrovia da Morte, ou Estrada de Ferro Thai-Burma. Centenas de soldados terão, capitaneados por Dorrigo, de patente mais alta, de construir tal via férrea vencendo uma intrincada floresta, por um caminho acidentado e difícil.
Instala-se um laboratório de horrores, sob a atuação de homens como Tomokawa, Fukuhara, Nakamura. Não há condições mínimas de preservação de saúde, de alimentação. Os homens começam a morrer como moscas, vítimas de tinha (um tipo de micose também conhecido como pé-de-atleta), carrapatos, exaustão física.  Um pequeno trecho, extraído da página 124 pode nos dar ideia de como era infernal aquele ambiente:
“Fiquei de pé atrás do prisioneiro, procurei meu equilíbrio, examinei cuidadosamente o seu pescoço – descarnado e velho com sujeira nas pregas; jamais esqueci aquele pescoço. Mal a coisa começava, ela já terminava, e eu fiquei pensando por que havia pequenos glóbulos de gordura na minha espada que não sairiam quando eu a esfregasse com o papel que eles me entregaram. Isso era tudo que eu pensava: de onde vinha aquela gordura num pescoço tão esquelético de um homem tão magricela. O pescoço dele estava sujo, cinzento, como terra onde você urina. Mas depois que eu o abri com o corte, as cores eram tão vívidas, tão vivas – o vermelho do seu sangue, o branco do seu osso, o rosado da sua carne, o amarelo daquela gordura. Vida! Essas cores eram a própria vida.”
O caminho estreito para os confins do norte não é uma leitura fácil. E isso em grande parte pela sua estrutura narrativa. O enredo é do tipo não linear, isto é, as cenas e os fatos narrados não seguem uma sequência cronológica, mas vão ao presente e retornam ao passado. Não existe qualquer marcação para esses deslocamentos temporais; não há títulos nos capítulos que possam dar uma pista ao leitor. Então, somente na leitura quem lê o livro pode estabelecer em qual faixa de tempo aquilo que se narra acontece.
Uma das propostas mais interessantes do livro, em termos de ponto-de-vista do narrador, é a elaboração de uma visão relativista a respeito dos japoneses. Explico-me: normalmente, em histórias passadas em guerras, o inimigo é geralmente retratado como o vilão, o monstro sem alma nem sentimentos. Flanagan, pelo contrário, instaura seu narrador que vê a frieza com a qual os nipônicos tratam seus prisioneiros, levando-os à morte pela exaustão física ou por doenças variadas como uma questão fundamental para os japoneses.
Criados numa cultura de absoluta submissão às ordens do seu imperador, a ferrovia simplesmente tem de ser construída, porque assim lhes foi ordenado. É a vontade emanada de um poder absoluto – inclusive, com poder sobre suas próprias precárias vidas. As falhas têm de ser punidas porque exatamente os nativos estão imersos nessa cultura. Não é demais lembrar que o fracasso, pelo menos no Japão daquela época, era visto como uma desonra punível com o suicídio ritualístico. Dentro dessa visão, por exemplo, a atuação dos kamikazes – pilotos-suicidas – perdiam suas vidas jogando seus aviões sobre os navios inimigos simplesmente estavam cumprindo ordens indiscutíveis.
Dorrigo Evans é um ser extremamente deslocado, no passado ou no presente. Não gosta de admitir, mas sente falta da guerra, onde – pelo menos em sua visão – fazia algo de útil, tentava salvar a vida de seus homens em condições completamente adversas. Por essa disposição, Dorrigo foi apelidado por seus comandados como “O Amigão”. Terminada a guerra, Evans se casa com Ella, mas se lembra o tempo todo de Amy.
Dessa forma, concluo eu em minha modesta opinião, o tema que perpassa todo o livro é o da perda e seus desdobramentos – principalmente a solidão. Amy é solitária, Evans é solitário, Ella é solitária. É o “solitário andar por entre as gentes”.
O caminho estreito para os confins do norte é daquelas leituras positivamente perturbadoras. Romance que – pelo menos, para mim – não se lê de uma sentada. Puxa reflexões, constrói novas interpretações sobre a convencionada realidade.
Pelo magnífico texto de Richard Flanagan perpassam haicais do poeta Bashô e Issa. Haicais são poemas característicos da cultura japonesa, caracterizados (geralmente) por conterem três versos, com esquema de sílabas 6-7-5. Bashô é considerado o maior “haicaísta” japonês. Essa forma poética é extremamente difícil de se elaborar, apresentando forte síntese de ideias.
Referências a livros vão pontuar a narrativa de Richard, informação com que a TAG – Experiências Literárias – teve a preocupação de nos brindar na revista anexa ao livro, ressaltando-nos tal importância, por meio de um texto e da indicação do livro resenhado anteriormente aqui nesse blog, Quando os livros foram à guerra.
O título – O caminho estreito para os confins do norte – é uma homenagem à obra de Bashô, de mesmo título – mas, sobretudo, uma apropriação extremamente significativa dentro da contextualização do livro do tasmaniano.


FLANAGAN, Richard. O caminho estreito para os confins do norte. 1ª Edição. Editora Globo S. A. São Paulo, SP: 2015