Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

domingo, 12 de maio de 2024

Resenha nº 222 - A Analfabeta, de Ágota Kristóf

 




Título original: L’Analphabète: Récit autobiographique

Autora: Ágota Kristóf

Tradutora: Prisca Agustoni

Edição: N/c

Editora: Nós

Copyright: 2024

ISBN: 978-65-85832-15-1

Gênero literário: Relato autobiográfico

Origem: Literatura húngara

 

Ágota Kristóf é uma escritora húngara nascida na cidade de Csikvánd, em 30/10/1935. É considera uma das maiores escritoras europeias do século XX. Abandonando seu país, aos vinte e um anos de idade, juntamente com sua filhinha de quatro anos e seu marido, fugiu da repressão soviética que se seguiu à Revolução Húngara de 1956. Passou pela Áustria, em sua rota de fuga, com destino à Neuchatêl, Suíça. Nesta mesma cidade suíça, faleceu Ágota Kristóf em 27/07/2011, aos setenta e cinco anos.

Foi bem acolhida no novo país. Lá começou a trabalhar numa fábrica de relógios – época em que aprendeu o francês, idioma que seria, dali para frente, sua língua de expressão literária.

Escreveu os seguintes livros: 1986: Le grand cahier; 1988: La Preuve; 1991: Le Troisième mensonge; 1995: Hier; 2004: L’analphabète; 2005: C'est égal. Existe, ainda – sem tradução para o português do Brasil – uma coletânea de quatro peças, denominada L’Heure grise, de 1998, (A hora cinza), contendo os seguintes textos: John et Joe (1972), La clé de l’ascenceur (1977), Un rat qui passe (1972-1984), L’heure grise ou le dernier client (1975-1984).

No Brasil, Ágota Kristóf não é muito conhecida, apesar de sua importância literária. Pelo que consegui apurar, há traduções brasileiras para Le grand cahier (Um caderno e tanto), La preuve (A prova) e Le Troisième mensonge (A terceira mentira), que vão compor uma trilogia, conhecida como Trilogia da cidade de K. Infelizmente, tais obras estão esgotadas há anos e mesmo estas, encontradas em sebos pelo Brasil, são antigas e as publicações não estão à altura do que merece nossa escritora húngara.

A Editora Nós tomou a si a responsabilidade de publicar A Analfabeta, em uma edição mais caprichada. Um volume pequeno, de bolso, contendo apenas cinquenta e duas páginas, ao modo dos livros da francesa Ernie Arnaux. Talvez por influência de Arnaux é que a Editora Nós tenha se animado a publicar o trabalho de Ágota.

Nesse caso, da força de Ernie, um prêmio Nobel, e do prestígio indiscutível que ganhou sua autoficção, pela proximidade de gênero, teria vindo a lume A Analfabeta – um relato biográfico – escrito em primeira pessoa.

Creio, como disse a tradutora e escritora Prisca Agustoni, no Instagram, parece haver um momento propício aos relatos autobiográficos, enquanto acontecem movimentos imigratórios intensos pelo mundo. Tornam-se importantes os depoimentos pessoais, para a compreensão da cultura do outro, modernamente desaguando num gênero específico, que ficcionaliza histórias de vida, num contexto cultural multifacetado.

Tenho na minha biblioteca, em volumes separados, a Trilogia da cidade de K., ou como é mais conhecida, a “trilogia dos gêmeos”. Consegui adquiri-los, editados pela Editora Rocco, mas, como disse acima, o tratamento dado a estas publicações não condiz com o valor da escritora.

Tudo isto posto, vamos ao volume A Analfabeta.

Não é bom a gente ficar tentando descobrir a biografia do autor por trás de sua literatura. Mas, no caso assumido deste relato biográfico, isto não só é permitido, como recomendado, de vez que a própria classificação de biografia reporta à vida do autor ou autora.

O parágrafo inicial já impacta o leitor:

“Leio. É como uma doença. Leio tudo o que me chega às mãos, aos olhos: jornais, livros escolares, manifestos, pedaços de papel achados pela rua, receias de cozinha, livros para crianças. Tudo o que está impresso.” (página 5)

A mesma compulsão que moveu o fidalgo Dom Quixote. Entretanto, enquanto na fantástica obra de Miguel de Cervantes a “doença” da leitura leva o cavaleiro andante à loucura, jogando-o num mundo imaginário impossível, a leitura é uma iniciação e um ato de preservação psicológica diante da guerra que começa.

A Hungria estava subordinada ao comando da União Soviética. Explode, então, um movimento de revolta ao comando central. A repressão é violenta, como o é a repressão de qualquer ditadura.

O trecho abaixo representa bem a opressão que vive a autora, mandada estudar num internato – no caso, um internato linha-dura, muito semelhante à ditadura vivida:

“Mas não tenho a liberdade de visitar meu irmão Yano, que se encontra somente a vinte quilômetros daqui, na mesma situação que eu, e que também não pode me visitar. Somos proibidos de deixar a cidade, e, de qualquer forma, não temos dinheiro para o trem.” (página 15)

Um dos capítulos se inicia com um título incisivo: Língua materna e línguas inimigas. A narradora havia sido alfabetizada em húngaro, sua língua natal. Sob a repressão soviética, é obrigada a alfabetizar-se em russo, a língua imposta:

“Ninguém conhece russo. Os professores de línguas estrangeiras – alemão, inglês, francês – começam a frequentar cursos intensivos de russo durante alguns meses, mas não podemos dizer que o aprendam de fato, e acabam não tendo vontade nenhuma de ensiná-lo. De qualquer forma, os estudantes não têm vontade nenhuma de aprendê-lo.” (página 23).

Ao fugir do seu país, aos vinte e um anos, junto com a filha e o marido, Ágota terá de ser alfabetizada pela terceira vez na vida, o que levanta a questão de como será alguém se pensar e pensar o mundo numa língua estrangeira que possivelmente o limita:

“É assim como, com 21 anos, ao chegar na Suíça, e absolutamente por acaso numa cidade onde se fala francês, encaro uma língua para mim totalmente desconhecida. É aqui onde começa minha luta para conquistar essa língua, uma luta longa e acirrada, que por certo durará por toda a minha vida.” (página 23)

E, um pouco adiante, na mesma página:

“Falo francês há mais de 30 anos, o escrevo há 20, mas ainda não o conheço. Não consigo falar sem erros e só consigo escrever com a ajuda de um dicionário que consulto frequentemente.

É por esta razão que defino a língua francesa também como sendo uma língua inimiga. Mas tem outra razão, a mais grave: essa língua está matando minha língua materna.” (página 23)

A vida continua, Kristóf trabalha numa fábrica de relógios. É bem-tratada pelos suíços, “um sujeito grandalhão” a aborda no ônibus, no intuito de tranquilizá-la lhe diz que os suíços jamais deixarão os russos chegarem até ela. Não suspeita que, apesar de se sentir acolhida, persiste na estrangeira o sentimento de expatriada:

“Como explicar, sem ofendê-lo, e com as poucas palavras eu sei em francês, que seu lindo país é apenas um deserto para nós refugiados, um deserto que temos que atravessar para chegar àquela que chamam “a integração”, “a assimilação”. Naquele momento eu ainda não sei que vários entre nós não conseguiriam chegar até lá.” (página 41)

A Analfabeta é um relato lírico e, ao mesmo tempo, muito realista. São expostos aqui os sentimentos como os de nosso Gonçalves Dias, em sua Canção do Exílio:

“Minha terra tem primores

que tais não encontro eu cá;

em cismar – sozinho à noite

mais prazer encontro eu lá;

minha terra tem palmeiras

onde canta o sabiá.”

E escrever se torna uma profissão de fé. Quem sente esta segunda doença, a de escrever – a primeira, como nos disse a autora, é a de ler – pode aquilatar o significado de estar-se impedido de vazar para o papel seus registros, literários ou não:

“Primeiramente, é claro, é preciso escrever. Em seguida, é preciso continuar escrevendo. Inclusive quando não interessa a ninguém. Inclusive quando temos a impressão de que nunca interessará a ninguém. Inclusive quando os manuscritos se acumulam nas gavetas e nós os esquecemos, mesmo continuando a escrever outros.” (página 43)

Poderia continuar escrevendo sobre o pequeno volume A Analfabeta. Por identificação, além da qualidade literária de seu texto. Também sou mordido pela doença de escrever. Escrevo, reviso, reviso textos que nem sei se um dia estarão nas mãos do público. Não importa: escrever é preciso. Viver não é preciso.

Como sou igualmente leitor, tenho de decidir outro dilema: ler também é preciso. Não, talvez não haja dilema: ler e escrever, afinal, se contraídas, são doenças incuráveis. Não é, meu caro Fernando Pessoa?

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Resenha nº 221 - Sorte, de Nara Vidal

 




Título: Sorte

Autora: Nara Vidal

Editora: Faria e Silva

Edição: N/c

Copyright: 2022

ISBN: 978-65-89573-67-8

Gênero literário: Novela

Origem: Literatura brasileira

 

Nara Vidal é escritora mineira, nascida em 1974. Formada em Línguas e Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É Mestre em Artes pela London Met University. Ela conquistou o terceiro lugar no Prêmio Oceanos, de 2019, a única brasileira entre os três vencedores. Colunista do jornal Rascunho e A Tribuna de Minas, este, escrevendo no caderno de cultura. É ainda editora da Capitolina Revista – uma publicação promotora da literatura contemporânea em língua portuguesa. Reside na Inglaterra desde 2001.

Talvez seja útil, para o leitor iniciante, caracterizar um pouco melhor o que seja o gênero literário novela. É uma composição textual narrativa, portanto, conta com personagens, narrador, enredo, tempo, em que os acontecimentos narrados se dão. Em termos de tamanho, fica entre o romance e o conto – embora esta característica não seja tão delimitadora assim, principalmente quando estamos no terreno da literatura contemporânea, com forte tendência a misturar os gêneros.

Este Sorte, de Nara Vidal, talvez seja uma mostra de novela das mais convincentes: como o conto, ela possui reviravolta de enredo (plot twist) vigorosa e estruturalmente colocada próximo ao desfecho. Com isto quero dizer que, sendo um texto enxuto, a forte guinada de enredo se encaminha de imediato para o desenlace, deixando ao leitor a ligação entre informações cruciais para o entendimento da obra.

Não conhecia a autora. Estava à procura de um livro de contos contemporâneos, quando dei de cara com a coletânea Mapas Para Desaparecer, de Nara Vidal. A sinopse dizia tratar-se de onze contos sobre a temática de relacionamento humano – tema que muito me interessa.

Constatei haver outra publicação, Eva, um romance sobre o mesmo tema e, ainda, um trabalho não acadêmico, Shakespearianas, subtítulo: As Mulheres em Shakespeare. As premissas de Sorte me convenceram a comprar o livro. Pronto. Construía-se ali o elo necessário para um leitor interessado apropriar-se do texto de uma autora.

Sorte não me decepcionou. O texto de Nara Vidal é enxuto, com poucos adjetivos, os capítulos são curtos e concisos e nos contam a história da protagonista Margareth Cunningham, da Irlanda do século XIX. Sua família é composta do pai, da irmã pequena Martha, Mary – esta, com dois anos – e Monica; e como o pai desejava um filho homem, continua engravidando a mulher, até nascerem Daniel e James:

“O pai fazia filhos na mãe até uma hora sair dela um homem. Martha, Margarth, Mary e outro na barriga. Deus há de nos conceder sua graça e encher essa casa com um homem.” O pai não escondia a predileção por um filho. Não sentia particular interesse dele por mim e nem por Martha ou Mary. Éramos uma tentativa, um erro, uma rasura, algo a ser refeito, refinado, melhorado até sair um filho.” (página 22)

O capítulo I se inicia na Irlanda, em 1806:

“Sabíamos lá em casa que aquela chuva, a enchente, os móveis arruinados, os ratos que subiam do porão para escapar do afogamento, aquilo era castigo de Deus. A nossa pobreza também era punição do Senhor. Concordamos desde cedo que abrir os olhos e atravessar horas infelizes até fechar as pálpebras de novo era a nossa maior sorte.” (página 17)

A carga dramática desta obra enxuta já nos dá um murro inicial no estômago. E, naquela chuvarada, a narradora – mais precisamente, Margareth – nos descreve outra cena, desta vez, com a participação de Martha:

“A Martha, com aquelas mãos esquisitas voando como se ouvisse música, batia os pés e ria. Não era gargalhada. Era riso. Um riso nervoso. As costas para mim. Nem percebeu que fiquei parada atrás daquele corpo fino e elegante. Estiquei os olhos para ver o riso dela. Dentro da bacia velha do quintal, cheia de água da chuva, uma ratazana morria.

Presa ao horror do espetáculo, assisti à cena inteira. Os olhos feios do bicho começando a esbugalhar, de certo já inchados pela carne tomada pela imundície da água. Debatia-se incessantemente. A ratazana revirava-se só para, em seguida virar de novo, buscando um sopro de ar já escasso. Os pés e as patas fizeram meus joelhos tremerem. Agitavam-se desfiando a morte que ria dela, feito a Martha da janela.

Primeiro caiu o rabo, cansado da luta. Túrgida, roliça, a ratazana parecia estourar. A pele da barriga brilhava de tão esticada. Dentro dela, vivia a morte.” (páginas 17/18)

Um escritor competente não elabora, de cara, uma cena impactante assim, se ela não tiver nada a ver com o projeto de sua obra. A morte é um elemento muito forte nesta história, e vai acompanhar de perto as personagens desta novela.

A situação geral da Irlanda do século XIX não era boa. Apesar de ainda ligada ao Reino Unido, era um país muito pobre e não contava com investimentos ingleses. E, para piorar as coisas, houve a Grande Fome (de 1845 a 1849). Este evento não atingiu apenas a Irlanda, tendo lugar em toda a Europa. Uma praga dizimou a produção de batatas pelo continente todo. Mas, como a batata era o único alimento disponível para um terço da população irlandesa, a fome foi devastadora. Em torno de vinte a vinte e cinco por cento da população pereceu.

O patriarca da família tem avaliações diretas deste inferno na Terra:

“Os gritos pela casa, quase diariamente, eram a sua admiração pelos conflitos napoleônicos. O pai sempre frustrado, já que a agitação nunca chegou na Irlanda. “Nem a guerra quer este país.” Bradava com revolta e esperanças de outro horizonte.

Qualquer um. “Até Brasil, a ilha movediça, é melhor que isso aqui. Não fosse minha perna, pegava vocês e ia pra Brasil, a ilha da fantasia.” (página 19)

Aqui devo fazer um corte. O leitor desta resenha deve estar se perguntando, como é isso? Não estou entendendo... a que Brasil se refere o pai de Margareth? Refere-se a uma lenda antiga. Esta lenda dizia que, nas costas da Irlanda, havia uma ilha chamada de Brasil, ou ainda, Hy-Brasil, ilha sempre envolta em mistérios. Movediça, porque aparecia de sete em sete anos, desvestida do nevoeiro que a encobria.

As embarcações, segundo a lenda, não conseguiam aportar à ilha. E pesava uma espécie de magia, ou maldição, se o quiserem: aquele que, por algum motivo, pisasse o solo de Hy-Brasil apresentaria um olho de cor diferente do outro, como uma marca.

As péssimas condições da Irlanda fazem o pai sonhar com Hy-Brasil, “até a ilha movediça é melhor do que aqui”.

Quem pôde, imigrou, principalmente, para os Estados Unidos e Canadá. Este acontecimento drástico – a fome – é o que moveu a família Cunningham a imigrar para o Brasil.

O Brasil (o país) facilitava o assentamento de terras aos imigrantes. Isto é o que era divulgado. A verdade, um pouco diferente: os imigrantes masculinos tinham de lutar sob as ordens brasileiras, na guerra cisplatina. Aqui, devo fazer outro corte.

Guerra cisplatina foi um conflito que envolveu Brasil e Argentina, pelo domínio da região do Rio da Prata, entre os anos de 1825 e 1828. O imperador brasileiro era Dom Pedro I, que foi muito criticado por se meter nesta aventura: o Brasil perdeu a guerra e no conflito gastou-se muito dinheiro, agravando a crise econômica brasileira.

Ainda no navio que trazia os imigrantes, Margareth engravida de um tal Orlando:

“O único que possivelmente sabia da minha gravidez era Orlando. Eu mesma me convenci do balanço tortuoso das águas dos trópicos. A mãe queria voltar. Dizia que os ares daquela quentura toda já mostravam em mim que não me fariam bem. Ela mesma padecia. O pai, um inválido, menos pelas pernas, mais pelo coração em desuso, só bradava. Mary e Monica acomodavam todas as ordens.” (página 36)

Outra personagem importante é a preta Mariava:

“Com pose de princesa, pescoço longo e fino, Mariava sabia todos os nomes de rios e cachoeiras. Tinha vindo de uma permuta em Minas Gerais, lugar de esmeraldas feito Hy-Brasil. Ela não falava o “C”. A Mary debochava dela e pedia que repetisse os nomes das cachoeiras da cidade dela em Minas.” (página 39)

Mariava e Margareth se tornam amigas. Ainda mais porque estavam grávidas, o que, de certo modo, as unia:

“Entre o azul-claro dos meus olhos e os olhos pretos da Mariava, nos reconhecemos. Era ela a minha amiga. Depois da Justine, era da Mariava que eu sentia saudades. Abracei apertado a minha preta com cheiro de pus. Tinha infecções pela pele afora. Ganhava uma surra por dia. Ordens de Don’Ana Vaz Peixoto, a mulher traída que era obrigada a ver a Mariava carregar um Vaz Peixoto bastardo dentro dela. A dona da quinta mandou que cortassem a cabeleireira de Mariava, cortassem a pele, cortassem o viço, já que para um golpe só não tinha coragem. Assim, preferiu sacrificá-la aos poucos. Da próxima vez, prometera cegar os olhos para que não pousassem em homem errado.” (páginas 91/92)

Mãe solteira era algo vergonhoso para as famílias da época. Havia a questão da honra feminina perdida. E, nestes casos, a saída usual era mandar a grávida para algum lugar longe dos olhos da sociedade “de bem”; normalmente, estas jovens eram mandadas para um convento que “piedosamente” as recebia, garantia a boa saúde delas. Em compensação, quando seus filhos nasciam, elas deixavam de ser mães: os filhos eram sequestrados e encaminhados para famílias que ajudavam a manter todo aquele esquema. Com Margareth não foi diferente.

O desfecho deste Sorte é surpreendente, mas não vou contá-lo. Hy-Brasil, a ilha movediça, é citada algumas vezes no decorrer da história. A lenda celta (este povo está na ancestralidade da Irlanda) conecta o local misterioso, a ilha da fantasia com o país Brasil. Nara Vidal aproveita a aproximação onomástica para exercer sua crítica social. E – é claro – a crítica se estende à atualidade brasileira.

Intrigado, fui à pesquisa sobre a lenda de Hy-Brasil. A lenda existe. A mitologia celta é pródiga em imaginações deste tipo. Basta lembrar a ilha encantada de Avalon, citada pela primeira vez nas Historia Regium Britanniae (História dos Reis da Bretanha), de Godofredo de Monmouth. É citada, também na quadrilogia As Brumas de Avalon, da escritora inglesa Marion Zimmer Bradley.

É o lugar onde foi forjada a Excalibur, a espada do Rei Arthur. É o lar da Senhora de Avalon, Fata Morgana, abordada na quadrilogia citada.

Recomendo fortemente a leitura deste Sorte.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Resenha nº 220 - Memphis, de Tara M. Stringfellow

 



Título original: Memphis

Autora: Tara M. Stringfellow

Tradutora: Carolina Cândido

Editora: Tordesilhas/TAG

Edição: 1ª

Copyright: 2022

ISBN: 978-65-5568-084-3                                    

Origem: literatura americana

Gênero: romance

 

Tara M. Stringfellow é escritora americana, poeta, advogada e graduada em Master of Fine Arts pela Northwestern University. Tem contribuições em vários jornais e publicações americanas. Morou em Okinawa, Gana, Cuba, Chicago, Espanha, Itália e Washington D.C. Finalmente, retornou para Memphis, onde, segundo consta a nota biográfica que acompanha a edição da TAG, ela se senta no balanço da varanda, com seu cão Huckleberry todas as noites.

Lamentavelmente, isto é tudo que consegui em termos de dados biográficos desta escritora. Não sei nem mesmo que nome se esconde sob a inicial “M” antes de Stringfellow. Portanto, sem mais delongas, deixemos falar o parágrafo inicial deste Memphis:

“A residência parecia habitável. Mamãe apertou minha mão com força enquanto nós três a observávamos, nosso cansaço enfadonho destoando do brilho alegre à nossa frente.

— Meu pai, Myron, escolheu e colocou cada pedra da fundação dessa casa sozinho – sussurrou ela para mim e para Mya. – Com paciência e o empenho de um homem totalmente apaixonado.” (página 3)

Aqui, temos um início de romance diferente; ao invés de começar o romance em meio às ações, Tara Stringfellow preferiu nos dar um quadro: uma mulher, Miriam, mãe de Mya e de Joan, está em frente da casa em Memphis – casa esta construída pelo pai de Miriam. Logo me indaguei: o que estão fazendo as três criaturas diante da casa que “parecia habitável”?

Não é uma casa qualquer. É a residência ancestral, onde a mãe da narradora tinha sido criada. Ela está voltando, acompanhada das filhas. O que terá acontecido? Como ela foi parar ali? Qual a sua motivação? Vai ficar por mais tempo, ou será apenas uma visita?

Um pouco mais abaixo, outro parágrafo nos dá mais informações importantes:

“A casa baixa era um respiro nas sombras das ameixeiras, nada parecida com a fortaleza vitoriana de três andares que acabávamos de abandonar. Essa casa parecia, ao mesmo tempo, grande e pequena. Tinha tantas divisões diferentes que se espalhava em todas as direções, em selvagem labirinto do Sul. Um longo caminho de acesso percorria a extensão do jardim, cortado ao meio por um portão pivotante de madeira. Mas o que fazia a casa respirar, o que dava pulmões à casa, era a varanda da frente. Largos degraus de pedra levavam a uma varanda coberta por uma densa trepadeira, madressilvas e glórias-da-manhã. Acima da varanda, meu avô ergueu um pergolado de madeira. Os raios de sol surgiam entre as vinhas verdes e placas de madeira que faziam da varanda uma confusa estufa. As madressilvas atraíam beija-flores do tamanho de bolas de beisebol; eles flutuavam sobre o dossel em tons de anil esmeralda e vinho.” (páginas 3 e 4)

Miriam – cuja vida é narrada pelo olhar de Joan –, é uma mulher preta e teve uma vida melhor, sinalizada, neste parágrafo, pela referência à sua casa anterior – “fortaleza vitoriana de três andares que acabávamos de abandonar”.

É interessante observar como um escritor/escritora trabalha a progressão da sua história, da sua obra. Note o leitor como as informações vão sendo liberadas pouco a pouco. A autora deseja que você leia o livro dela até o final. Ela quer te seduzir para a leitura. As informações aqui e ali vão se somando e formando um todo no livro e na cabeça de quem o lê. Tal é a construção de sentido, caro leitor que me dá o prazer da leitura deste blog. Não se iluda, eu mesmo estou usando agora mesmo a mesma técnica. Desejo sua atenção até o final deste texto.

Usando a casa ancestral como âncora para o enredo – ali é que se passa grande parte das etapas importantes das personagens envolvidas – o enredo se completa também em outros lugares. Mas esta narrativa se caracteriza pelo retorno à casa do pai.

Antes de prosseguir com este raciocínio, porém, será necessário explicar a importância de Memphis para esta narrativa.

Trata-se da segunda cidade mais populosa do estado americano do Tennessee. O nome da cidade presta homenagem à cidade egípcia Mênfis, às margens do rio Nilo – a versão americana localiza-se às margens do rio Mississipi. A mansão Graceland se edifica nesta localidade. Para os fãs de Elvis Presley, vai a informação: Graceland é a mansão do famoso e revolucionário cantor norte-americano – um branco que ajudou a divulgar o modo de o povo negro cantar.

 Memphis se notabilizou por várias coisas. Foi um centro produtor de algodão e madeira, foi um importante centro da política norte-americana; durante a década de 1960, foi muito importante para as manifestações em prol dos direitos dos trabalhadores negros. Mais: a cidade investiu pesado em realizações culturais e educacionais.

Nem tudo são flores. Memphis se tornou conhecida por um crime: em quatro de abril de mil novecentos e sessenta e oito, ali foi morto o maior líder negro em luta contra o racismo: Martin Luther King Jr.

Memphis é uma história de uma família preta em uma cidade – agora você já sabe por que o livro se chama Memphis – onde a maioria é de gente preta. Stringfellow usa muito de suas memórias, embora não faça autoficção.

O enredo retrocede e Miriam está casada com Jax, que havia se alistado para a guerra como Fuzileiro Naval dos Estados Unidos:

“O que havia acontecido com aquele homem? Com o casamento dela? Miriam não sabia com exatidão. Tudo o que sabia é que não estava preparada para o quão solitário o casamento podia ser. Jax estava sempre longe, em formação durante meses, sabe lá Deus onde, treinando para a guerra. Então uma guerra começou. E lá foi ele, deixando-a sozinha. Mais uma vez, Miriam odiava a grande casa vitoriana para a qual haviam se mudado após o casamento dezessete anos antes, com as escadas em espiral, cantos e fendas secretos e o chão que rangia.  Ela odiava todo aquele momento da noite, após colocar as meninas para dormir, em que seus passos ecoavam pelo corredor. Não tinha ninguém com quem conversar na Carolina do Norte. Sentia saudade de Memphis.” (página 49)

Jax, ao voltar da guerra, é um homem diferente. Está violento, atormentado. Bate em Miriam. É por isso que ela está diante da casa ancestral, em Memphis, viajando numa van claudicante, com Joan, Mya e a cachorra Loba. A casa é habitada pela irmã de Miriam, August e o filho dela, Derek.

Hazel é a mãe de Miriam e já falecida. A vida para ela também não foi nada fácil:

“Ela mordeu o lábio inferior enquanto trabalhava, espalhando o batom vermelho nos dentes. A mãe atendia a uma cliente de outro lado da sala. Dela estava de joelhos, alfinetes na boca. Ela prendia um babado de renda eu começava na altura do joelho e ia até a barra do vestido de linho branco da Sra. Finley – uma raridade. Desde que a guerra estourara, dois dezembros antes, era cada vez mais difícil encontrar rendas. E estavam mais caras. Apenas as clientes brancas e ricas usavam meias de seda agora. As encomendas de vestidos novos também diminuíram. As entregas de novas sedas e chiffons transformara-se em entregas de lenços passados e estampados. Agora, quando Hazel atendia o telefone e anotava compromissos, eram apenas para consertar vestidos que a mãe fizera na temporada anterior.” (página 138)

Hazel se casou com Myron:

“Ela notou que, mesmo depois de casados, eles não se comportavam como as pessoas casadas que Hazel conhecia. Muitas vezes, Myron a perseguia pela casa que construiu para ela, a risada de Hazel preenchendo o ambiente, até conseguir agarrá-la na cama de dossel. Às vezes, que durava até tarde, e eles se sentavam à mesa da cozinha para fumar cigarros, tomar café e conversar sobre o que estava por vir.” (página 141)

Myron se torna o primeiro detetive negro em Memphis. Enfrenta muitas dificuldades no exercício do cargo, pois mora em uma cidade com maioria negra, como ele, em que há uma elite branca, usufrutuária da chamada supermacia branca.

“— Eles não deixam. Estou em um caso bastante sério. Não posso falar muito sobre isso, amor, enquanto estiver aqui. – Myron olhou por cima do ombro e continuou: — Mas eu sei que é. Eu sei. Um universitário branco matriculado em Memphis. Eu o cerquei e o peguei em flagrante. Mas não me deixam prender o cara. Disseram que devia verificar minhas provas de novo. Eles acham que é melhor que um homem que estupra mulheres em um bairro de cor seja negro também. Arranjaram um coitado para prender. É o jeito.” (página 182)

Joan tem um talento especial para o desenho. A mãe, Miriam, deseja que ela curse algo que a faça ter empoderamento – claro que o termo não é usado, não era da época em que os eventos têm lugar. Miriam deseja o melhor para a filha e pô-la a salvo, naquela sociedade injusta, era sua meta. O talento de Joan fala mais alto, entretanto. Com a ajuda da tia August – ela mesmo possuidora de bela voz – vai estudar desenho em uma faculdade.

Joan é uma batalhadora. O reconhecimento de suas habilidades se dá quando ela pede para desenhar as mãos da Srta. Dawn:

“Paramos perto da base da escada e Loba se sentou, quase tão alta quanto Mya, mesmo quando sentada. Mãos são a coisa mais difícil de ser desenhada. Mas as mãos daquela mulher, com as veias anciãs e os nós dos dedos endurecidos – eu sabia que suas mãos seriam minha Mona Lisa, as Laranjas de Cézanne, as Nenúfares de Monet, se conseguisse desenhá-las corretamente.” (página 99)

Embora esta Srta. Dawn não tenha protagonismo no romance, ela permanece como um símbolo, os olhos que viram tudo na vida, as mãos que lidaram com as agruras da vida e por isso, merecem referência. Ela é anciã, guardadora da sabedoria empírica, não teorizada.

São três gerações de mulheres, cada uma delas brava a seu jeito. Hazel, a matriarca; Miriam, filha de Hazel e mãe de Joan. Joan, a seu turno, vence um trauma de infância e se empenha naquilo em que acredita. Há também Mya, irmã mais nova que Joan, sem protagonismo no livro.

Outra figura resiliente até certo ponto é a irmã de Miriam, August. Ela é mãe de Derek e tem de lidar com a prisão do filho. Todas estas mulheres fortes têm de emergir numa sociedade de supremacia branca.

Memphis é uma obra acima do comum. Tara M. Stringfellow é uma escritora excelente, sensível para as causas dos seus. E tem a virtude de não tentar produzir literatura panfletária – aliás, expressão infeliz, já que Literatura e panfletarismo não podem se coadunar. É o motivo pelo qual não gosto de ler certos autores, como alguns escritores russos de esquerda. Não por serem de esquerda, mas pelo panfletarismo exercido.

O que mais impressiona, no entanto, é o fato de este livro ser o primeiro escrito por Tara M. Stringfellow. A qualidade literária é inegável, mas coloca sobre a autora uma expectativa muito grande. Nós, leitores, não esperamos dela nada menos que outra obra de igual qualidade, que nos agrade do mesmo modo.

Creio que, ao final do ano, este Memphis vai estar, tranquilamente, entre os melhores livros lidos por mim. Ao recomendar com ênfase a leitura deste volume (disponível pela Editora Tordesilhas), devo alertá-lo, meu caro leitor, que o enredo é do tipo não linear, isto é, o enredo recua e avança no tempo – um lapso de 70 anos envolve as três principais mulheres.

A autora facilitou o nosso trabalho de recuperação do sequenciamento dos fatos em Memphis, nomeando cada capítulo Joan, Miriam, Hazel, August, seguidos dos anos em que os acontecimentos tiveram lugar.

Boa leitura!