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quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Resenha nº 166 - O Mundo da Escrita, de Martin Puchner



Título original: The Written World: The Power of Stories to Shape People, History Civilization

Autor : Martin Puchner

Tradutor : Pedro Maia Soares

Editora : Companhia das Letras

Edição : 1ª

Copyright : 2017

ISBN : 978-85-359-3222-5

Origem : Estados Unidos

Gênero : História e crítica da literatura

1.  Preliminares   ares

Um livro para apaixonados por livros. “Sapiens para fanáticos por livros”, na apreciação do Bookseller. Antes de tudo, é um prazer ler textos bem escritos, como este. O livro estava na minha prateleira há algum tempo (comprei-o em junho de 1919); havia uma fila de livros para ler e desobedeci à minha própria fila. Uma viagem pelo mundo da escrita, trazendo a história dela desde as primeiras manifestações até os dias de hoje. A literatura ganhou uma bela biografia.

Martin Puchner é professor de literatura comparada na Universidade de Harvard, na qual obteve o título de Ph.D e é organizador da Norton Anthology of World of Literature. Seu trabalho de crítico literário concentra-se no modernismo. Segundo ele, estamos passando por uma revolução no mundo da escrita ainda maior do que aquela do século XX.

2.      O Livro:

O Mundo da Escrita é um livro interessantíssimo, de não ficção; trabalho de fôlego, em 456 folhas. Entretanto, em uma obra que pretende traçar a evolução e a influência da escrita – e por tabela – os textos em qualquer suporte sobre os valores da humanidade, em menos de quinhentas páginas, forçosamente, algo se perde. Deduz-se, facilmente, tratar-se de uma panorâmica muito bem-vinda.

“Às vezes tento imaginar o mundo sem literatura. Eu sentiria falta dos livros nos aviões. Livrarias e bibliotecas teriam espaço de sobra nas estantes (e as minhas não estariam transbordando). A indústria editorial não existiria como a conhecemos, nem a Amazon, e não haveria nada em minha mesa de cabeceira quando não consigo dormir à noite.” (página 9, O nascer da Terra)

Páginas adiante, Puchner nos diz que o primeiro texto lido no espaço fora da Terra, a bordo da Apollo 8, foi a gênese bíblica. Um texto fundador. E ele nos ensina:

“Foi apenas quando a narração cruzou com a escrita que a literatura nasceu. Antes, o relato de histórias existia em culturas orais, com diferentes regras e objetivos. Mas, depois que a narração se ligou à escrita, a literatura despontou como uma força nova. Tudo o que se seguiu, toda a história da literatura, começou com esse momento de intersecção, o que significava que, para contar a história da literatura, eu teria de tratar tanto da narrativa quanto da evolução das tecnologias criativas, como o alfabeto, o papel, o livro e a impressão.” (página 18)

Martin Puchner divide a grande história da literatura em quatro etapas, a saber:

1)      Primeira etapa:

“A etapa inicial foi a dos pequenos grupos de escribas que dominaram sozinhos os primeiros e difíceis sistemas de escrita e, portanto, controlavam os textos que compilavam de contadores de histórias, como a Epopeia de Gilgamesh, a Bíblia hebraica e a Ilíada e a Odisseia de Homero.” (página 19)

2)      Segunda etapa:

“À medida que cresceu sua influência, esses textos fundamentais foram contestados, numa segunda etapa, por professores carismáticos como Buda, Sócrates e Jesus, que denunciaram a influência de sacerdotes e escribas e cujos seguidores desenvolveram novos estilos de escrita.” (página 19)

3)      Terceira etapa:

“Numa terceira etapa da literatura, começaram a surgir autores individuais, auxiliados por inovações que facilitaram o acesso à escrita. Embora esses autores imitassem textos mais antigos, escritores mais ousados, como a sra. Murasaki no Japão e Cervantes na Espanha, logo criaram novos tipos de literatura, sobretudo romances.” (página 19)

4)      Quarta etapa:

“Por fim, numa quarta etapa, o uso generalizado do papel e da imprensa deu início à era da produção em massa e da alfabetização em massa, com jornais e folhetos, bem como a novos textos, como a Autobiografia de Benjamin Franklin ou O Manifesto do Partido Comunista.” (página 19)

Alexandre, O Grande, é apontado por Puchner como um grande bibliômano: consta que o grande macedônio sempre levava consigo, para a cama ao dormir, seu punhal e uma caixa, com o manuscrito da Ilíada, de Homero. Alexandre se espelhava nos relatos homéricos e tanto ele era realmente um bibliômano que ao fundar a cidade de Alexandria, no Egito, tratou de mandar construir uma biblioteca que se tornou famosa e perpetuou seu nome – a Biblioteca de Alexandria.

A cópia da Ilíada utilizada por Alexandre continha anotações do seu professor, Aristóteles.

Não será possível, no espaço exíguo de uma resenha, resumir todos os passos importantes nesta história da literatura. Assim, sigamos adiante e vamos chegar à Epopeia de Gilgamesh:

“Graças a Assurbanípal, a Epopeia de Gilgamesh foi copiada muitas vezes e levada para longe, até o Líbano e a Judeia, a Pérsia e o Egito, como forma de assegurar território e assimilar culturas estrangeiras. Desse modo, a escrita passou a ser uma ferramenta para construir um império não somente por seus efeitos na administração e na economia, mas também em virtude da literatura. O ato de escrever, a vida urbana centralizada, os impérios territoriais e as histórias escritas eram aliados estreitos e assim permaneceriam por milhares de anos. Assurbanípal tanto percebeu a importância estratégica de ter um texto fundamental, como tomou Gilgamesh por modelo de suas conquistas, adotando seu título: Reis Poderosos, Sem Rivais.” (página 68)

Prosseguindo – estou arrolando somente as passagens mais importantes – chegamos à narrativa dos evangelhos:

“Concentrando-se na humilhação e morte do mestre, eles criaram um tipo incomum de herói, um rebelde que era também vítima. Não era como se supunha que um herói devia ser representado, mas os escritores perceberam que parte da estranha atração exercida por Jesus era que ele viera como um homem comum. Eles descreveram a humilhação de seu mestre porque eles, e seus leitores, podiam se identificar com ela.” (página 113)

Aos chineses devemos a existência do papel, como todos sabemos, mas a surpresa é que devemos também a da imprensa; o primeiro documento de que se tem notícia, impresso em papel, é o Sutra do Diamante – um texto do budismo – cuja cópia encontra-se bem guardada na Inglaterra. Ele havia sido impresso por um sistema de tipos de madeira, demorado e trabalhoso, o mesmo princípio do carimbo.

A proximidade da China e do Japão, não só geograficamente, como também pelos seus sistemas de representação escrita – ambos não utilizam alfabeto fonético, mas ideogramas – fez com que textos fossem intercambiados, o que se convencionou chamar escrita dos pincéis. E o trabalho que mais se aproxima da forma narrativa de um romance é Romance de Genji, escrito por certa Murasaki Shikibu, em 1000 d.C.

Esta obra, de acordo com Puchner, é riquíssima em referências à cultura, modo de vida e costumes da nobreza chinesa.

Um salto no tempo e aterrissamos na Pérsia – suposta origem das Mil e Uma Noites. Nesta obra, Sherazade usa de sua astúcia narrativa para entreter o rei e adiar sua morte. Como o sultão havia prometido, após a noite de núpcias ele mataria cada uma de suas esposas, como vingança por ter sido traído por uma delas. A inteligência com que Sherazade entretece suas histórias acaba fazendo o sultão se apaixonar por ela e poupar-lhe a vida.

Mil e Uma Noites traz uma narrativa em moldura. Por este nome entende-se a construção que se utiliza de histórias fechadas em si, mas que deixam “ganchos” para uma outra história a ser contada em outro momento. Eu diria, pela semelhança, quase como nossas modernas telenovelas.

Nesta nossa viagem, chegamos finalmente aos anos 1440. Gutenberg dá maior amplitude à utilização da prensa com tipos móveis. A seu favor, havia o alfabeto latino, de base fonética, muito mais simples de imprimir que os ideogramas chineses:

“Com a Bíblia, Gutenberg tocava no texto mais reverenciado e sagrado de todos. Teria de demonstrar que suas máquinas podiam produzir um livro tão nítido, preciso, correto e elegante com aqueles elaborados pelos escribas mais bem treinados, que costumavam ser monges que haviam dedicado a vida a esse propósito. Seu escriba, Peter Schöffer, criara o modelo para letras novas e mais elegantes. E Gutenberg planejava imprimir em duas cores, acrescentando um vermelho-rubi, à maneira de muito calígrafos que copiavam a Bíblia em duas cores diferentes – a Bíblia mecânica pareceria ter sido escrita à mão.” (página 192)

É reservado um papel proeminente a Martinho Lutero e sua decisão de fazer publicar panfletos em larga escala, propagandeando sua reforma da igreja. Além disso, ele fez publicar a Bíblia em língua nacional; ela havia sido publicada, tanto em manuscritos quanto nas edições impressas, na língua litúrgica por excelência: o latim.

“A Bíblia de Lutero tornou-se o protótipo de outras traduções da Bíblia. Muitas passaram a enfrentar a censura da Igreja, o que acabou por dar origem ao infame índex de obras proibidas, por meio do qual a Igreja procurou controlar a impressão. Evidentemente, o índex também foi impresso, e quase ao mesmo tempo instalou-se a primeira impressora no Vaticano.” (página 294)

Puchner nos diz que a invenção do livro se deu em duas frentes, independentes entre si: uma na Eurásia e outra, entre os maias da América Central:

“Para criar livros, os maias inventaram uma superfície de escrita apropriada. Na Eurásia, demorara mais de mil anos para que o papel chinês chegasse ao Oriente Próximo, e muitas centenas de anos para que desembarcasse na Espanha, justo a tempo de os espanhóis levarem seus livros de papel para o Novo Mundo. O equivalente maia baseava-se em empapar casca de árvore numa solução de limão, depois bater para transformar em folhas e então colar várias delas.” (página 215)

O Popol Vuh torna-se, então, o livro fundador da cultura maia. Nele, há o mito da criação, “a criação do céu-terra, como o universo é chamado, a partir da matéria informe”. Como nos diz apropriadamente Martin Puchner, “a história da literatura é a história da queima de livros” e este também foi o destino da literatura maia, considerada bárbara demais pelos espanhóis colonizadores.

E então, chegamos ao ano de 1605 – ano da impressão de outra referência literária – o Dom Quixote, de Cervantes:

“Um amplo sortimento de papel foi importante para Dom Quixote, já que a demanda pelo livro superou rapidamente as expectativas. Desde que a Igreja Católica havia despertado para o poder da impressão, cada livro precisava obter uma licença. Por sorte Dom Quixote recebeu aprovação no outono de 1605, permitindo que o editor Francisco Robles e o impressor Juan de la Cuesta produzissem uma primeira edição, que se esgotou com velocidade gratificante.” (página 241)

Outros passos dessa deliciosa história da escrita são dados pelo nosso autor de O Mundo da Escrita, mas precisamos abreviar esta já extensa manifestação escrita. Diremos que Benjamin Franklin, tão importante para a história da fundação dos Estados Unidos faz parte da história da escrita, de vez que ele importou impressoras da Europa e fez publicar jornais no país nascente, que se tornaram uma verdadeira febre de leitura.

Importante também foi o escritor alemão Goethe, com sua busca de uma literatura universal. Atuando como divulgador de obras alheias, o famoso autor de Os sofrimentos do jovem Werther contribuiu poderosamente para este conceito de literatura universal; mais livros passaram a ser publicados, vindos de culturas as mais variadas. Outra importante contribuição para esta longa história foi O manifesto do partido comunista, de Marx e Engels. Texto que inaugura o gênero textual manifesto, foi amplamente impresso e distribuído, alcançando os quatro cantos do mundo, sendo lido e cultuado por Lênin, Ho Chi Min, Mao e Fidel Castro.

Mas a poeta russa Anna Akhmátova e o escritor Alexander Soljenítsin inauguram um novo momento, o dos escritores produzindo contra o estado constituído. Pouco conhecida no Brasil, Akhmátova foi chamada de a Safo russa (alusão à produção erótica da poeta Safo, na ilha grega de Lesbos); Soljenítsin, mais conhecido, é autor de uma obra-referência da literatura de resistência, O arquipélago Gulag.

A Epopeia de Sundiata é texto fundador da África Ocidental (onde estão hoje o Mali e a Guiné), contando a história da fundação do Império Mali, ou Império dos Mandingas), no final da Idade Média. Tem, para aquela parte da África, a importância da Epopeia de Gilgamesh para a Suméria.

Puchner enceta a última etapa de sua história da escrita. Informa-nos ter chegado ao século XXI, adentrando o Pottermore.com, sítio oficial de Harry Potter:

“Me senti um pouco consolado quando o site decidiu me atribuir uma varinha de louro de 36 centímetros com um núcleo de pelo de unicórnio. Ao contrário da hiena, o unicórnio era uma criatura mágica elegante – fiquei feliz por estar associado a ele." 

"Terminada a penosa iniciação, decidi que estava pronto para a experiência completa de Hogwarts e iniciei um programa intensivo de ler e assistir as histórias de Harry Potter. Demorou cerca de um mês, e terminei um pouco sonolento e com meus ouvidos ressoando o modo como Severus Snape, o mestre de minha casa, dizia “Harry P’otter”, um desdenhoso P explodindo num perverso O.” (páginas 373/374)

Uma curiosidade, J. K. Rowling, autora inglesa de Harry Potter, escreveu outro livro, Os contos de Beedle, em tiragem limitadíssima (apenas 7 exemplares), todos escritos à mão, invertendo o processo de impressão, destinados a serem leiloados pela famosa casa Sotheby’s. A importância de Rowling nesta história? Ela revisitou o conceito de literatura universal de Goethe. Seu livro vendeu milhões ao redor do mundo todo e realmente é uma obra que formou novos leitores.

Para terminar esta resenha, Martin nos lembra que, para a nova revolução nas tecnologias de escrita se deve a duas coisas. Primeiro, a viagem do homem à lua, através da Apollo 8. Foi necessário desenvolver computadores capazes de lidar com cálculos complexos e gestão da viagem. Segundo, a invenção da Arpanet, precursora da atual Internet.

“Os computadores pessoais e as redes de informática mudaram tudo, desde o modo como a literatura é escrita ao modo como é distribuída e lida. É como se o papel, o livro e a impressão tivessem surgido todos ao mesmo tempo.” (página 376)

Você é, leitor amigo, como eu, maluco por livros? Então, valerá a pena ler este ótimo O Mundo da Escrita, do competente Martin Puchner. Se não e, claro, se houver curiosidade e paciência suficiente de sua parte, valerá ter adquirido algum conhecimento a mais sobre este importante suporte de conhecimento, prazer e informação.

Resta ainda comentar: em que medida este livro pode ser comparado ao Sapiens – Uma Breve História da Humanidade, de Yuval Noah Harari? Harari aponta a importância da criação da narrativa para o desenvolvimento da humanidade; a partir dela, o homem cria cultura, desenvolve o raciocínio e ganha uma ferramenta para preservar sua vida. Para Puchner, ao criar a escrita, os livros e, de quebra, a literatura, o homem embarca numa aventura sem precedentes.