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segunda-feira, 27 de junho de 2022

Resenha n° 192 - Nada digo de ti, que em ti não veja, de Eliana Alves Cruz

 



Título: Nada digo de ti, que em ti não veja

Autora: Eliana Alves Cruz

Editora: Pallas

Edição: n/c

Copyright: 2020

ISBN: 978-65-5602-000-6

Gênero literário: Romance

Origem: Literatura brasileira

200 páginas

 

Eliana Alves dos Santos Cruz, ou Eliana Alves Cruz, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 1966. É graduada em Comunicação Empresarial pela Universidade Cândido Mendes. Foi gerente de imprensa da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos e cobriu quinze campeonatos mundiais, além de seis jogos Pan-Americanos e mais seis Jogos Olímpicos.

Na literatura, sua estreia se deu com o romance Água de Barrela. Baseado na trajetória de sua própria família, desde o século XIX, na África, foi obra vencedora da primeira edição do Prêmio Literário Oliveira Silveira, oferecido pela Fundação Cultural Palmares, em 2015.

O segundo romance recebeu o título de O crime do cais do Valongo, publicado em 2018. O terceiro é este Nada digo de ti, que em ti não veja, de 2020. Recentemente, foi publicado seu quarto romance, Solitária, pela Companhia das Letras, em 2022.

Nada digo de ti, que em ti não veja é minha primeira incursão nos trabalhos desta escritora. Como os outros dois que o precedem, trata-se de um romance histórico, ambientado no período escravagista brasileiro. Vitória é um travesti que atua como prostituta. Tema dos mais delicados e inusuais, em se tratando de romance situado na época do Brasil colônia. Ainda mais que, além de já ser estigmatizado por ser, como diz o texto – um invertido, passível de ser punido pelo crime de sodomia pela Inquisição – tem a pele negra, e é mandingueiro.

Vitória tem uma paixão declarada por Felipe Gama, e por este é correspondido. Os encontros se fazem às ocultas. Para complicar, Felipe está noivo de Sianinha – um relacionamento “arranjado” – como era prática entre famílias mais bem postadas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

O livro nos conta, também, sobre o relacionamento entre os escravos Zé Savalú e Quitéria. O casal trabalha na casa de dona Manuella, mãe de Sianinha. A filha, embora não ame Felipe, enxerga com bons olhos o seu noivado com ele. A família tem boa ascendência social e se enriquece com seus negócios. No entanto, Sianinha tem uma queda por Zé Savalú, apesar de ele ser seu escravo.

Para complicar mais ainda as coisas, entra em cena, vindo do Santo Ofício, em Portugal, frei Alexandre Saldanha Sardinha, Inquisidor. Este personagem terá papel fundamental em toda a trama.

O próprio frei Saldanha, tão ciente de suas obrigações como sacerdote e como Inquisidor, não consegue passar incólume aos encantos femininos nem aos apelos do ouro das Gerais. E é um ponto interessante, pois se os portugueses colonizaram estas terras brasileiras, impondo sua cultura, o Brasil, por sua vez, impôs-lhes novos costumes. Frei Saldanha pode ser visto, desta forma, como símbolo desta aculturação dos portugueses pelos locais.

Eliana Alves Cruz trabalha, deste modo, com elementos explosivos em sua história. A autora constrói, logo de início, um narrador que anuncia a si próprio como tal:

“Vou lhes contar aqui algumas vidas. Apenas existências que passaram diante de meus olhos. Se você está aqui, é porque vamos passar algum tempo junto, então saiba que sou um confesso bisbilhoteiro, um fofoqueiro dos mais terríveis. Acabo revelando tudo o que vejo sem dó ou enfeites e, no confortável papel de espectador, lhes digo: não sejam tão duros porque, com o passar dos segundos, minutos, dias, horas, semanas, meses e anos, grande parte dos dramas vão morar no reino do ridículo.” (página 10)

Em outro trecho, o narrador também se manifesta:

“Prezados, estou me esforçando para não interferir na história, tentando ater-me aos fatos, mas Vitória era alguém a quem eu acompanhava com muito gosto, pois, se existiu uma pessoa com perfeita noção de tempo e espaço, este alguém era ela, não perdia um mísero segundo.” (página 174)

Um narrador assim constituído justifica os fatos que traz a público. Ele é “um fofoqueiro dos mais terríveis”; não terá escrúpulos para narrar as escabrosidades dos personagens postos a agir numa sociedade fortemente influenciada por julgamentos religiosos. Naquela época, a igreja católica era uma força inibidora. Este narrador, na verdade, acrescenta uma “pimenta” à narrativa, pois ele é não confiável e, além do mais, os ouvidos humanos amam uma fofoca, não é mesmo?

A chegada do representante desta força julgadora e punitiva, frei Saldanha, ao Brasil, já dá o tom:

“Olhava espantado e tapava o nariz, pois São Sebastião do Rio de Janeiro podia ser considerada a cidade mais suja que jamais vira. Os dejetos atirados às ruas e nas praias traziam de volta a imundície de um lugar que superlotou sem qualquer ordem. Alguns sobrados pomposos sobressaíam entre muitas casas feias, porcos e outros animais domésticos comiam o lixo a se amontoar por todos os cantos das ruas.” (página 28)

Ou, ainda:

“Viu dois moleques banhando-se em um chafariz, reluzidos pela água e pelo sol que os dourava. Os panos que levavam atados nas cinturas, mal lhes cobriam “as vergonhas” e, molhados, deixavam os jovens praticamente nus. Procurou não deter as pupilas nos seios quase à amostra sob a bata de tecido ordinário da mulher que levava um balaio enorme na cabeça, em equilíbrio e malabarismo impressionante.” (página 29)

É, portanto, naquele inferno tropical que o frei Saldanha vai exercer – ou tentar exercer – seu santo ofício. Um vulcão de calor, hormônios, sujeira, corpos seminus dos escravos. A sexualidade explosiva ali só podia ser refreada por fortes convenções sociais e religiosas. Entretanto, atrás de portas fechadas as convenções sociais se afrouxavam, o látego religioso era abandonado por atitudes... digamos, mais prazerosas.

A certa altura, o romance abandona a ambientação do Rio de Janeiro. Zé Savalú, Felipe Gama e frei Saldanha viajam para a cidade de Vila Rica – capital da Capitania das Minas Gerais. Vão em busca do enriquecimento, pois a notícia que corre solta é que, por aquelas paragens, o ouro se encontrava facilmente. Um ouro de cor escura, daí o batismo da localidade, tempos depois, como Ouro Preto.

Eliana Alves Cruz procedeu a uma pesquisa histórica detalhada. O que regulava a sociedade, na época abordada, eram as chamadas “Ordenações Filipinas”. Estas eram uma compilação do precedente Código Manuelino. Melhor explicando, tais ordenações regulavam, juridicamente, as punições e as obrigações dos cidadãos.

Em Vila Rica, como de resto no Rio de Janeiro e em toda a colônia, disseminava-se a prática de corrupção. Balthazar, irmão de Felipe, por exemplo, transportava o ouro encontrado por seus escravos sem o pagamento do quinto – imposto cobrado pela coroa sobre valioso ouro. Transportavam-no por caminhos alternativos e difíceis, para evitar os fiscais de Portugal. Mais tarde, esta revolta contra o recolhimento do imposto será um dos veios a alimentar a futura Inconfidência Mineira.

São vários os perigos a que estão sujeitos os transportadores de mercadorias, viajantes, daquela época. A trilha de mulas entre o Rio e Vila Rica é vencida, muitas vezes, a custo de vidas, em três meses de duríssima viagem. Índios à espreita, ataques de animais selvagens ou peçonhentos, acidentes nas trilhas, chuvas torrenciais e o risco das travessias de rios caudalosos eram comuns.

Sobre a personagem Vitória, é dito que ela teve 5 existências: ainda na África, teve os nomes de Kiluanji Ngonga (ao nascer, como menino); Nzinga Ngonga (quando se reconhece sua natureza feminina); Nganga Marinda (sacerdotisa dos mistérios ancestrais). No Brasil, Manuel Dias (nome cristão, quando chegou como escravo); finalmente, como Vitória.

Calunduzeira – nome dado à época aos afrodescendentes que entendiam de magias e feitiçarias – Vitória era, ao mesmo tempo, temida e procurada por muitos. Previa o futuro, receitava beberagens para cura de doenças. Entretanto, ser calunduzeira também era passível de crime sob a Inquisição.

As tais Ordenações Filipinas previam benesses para quem denunciasse praticantes de crimes. Naquela cidade do Rio instituiu-se um verdadeiro salve-se quem puder; os dedos-duros surgiam por todos os lados. Daí, um outro costume, tão presente ainda no Brasil de hoje: para se assegurarem, pessoas não tinham rubores de serem puxa-sacos. Era melhor estar bem com quem tinha o poder de punir do que deixar pontas soltas, sem a devida amarração.

Nada digo de ti, que em ti não veja é um ótimo livro. Gosto muito de romances históricos. Neles, aprendo muito de outros tempos, de uma forma muito mais lúdica, interessante do que a dos livros didáticos. Há, digamos, uma socialização dos fatos. Pelo texto contamos – mas não vou reproduzi-los aqui – com várias notícias sobre costumes, limitações, características daquele tempo.

Penso ser muito válido uma escritora de cor preta contar a história da época da escravidão. Temos muitos depoimentos do ponto de vista do branco. Precisamos de mais relatos como este, necessitamos que mais vozes como a de Eliana se disponham a abordar o passado.