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domingo, 20 de fevereiro de 2022

Resenha nº 184 - Divórcio Em Buda, de Sándor Márai



Título original: Válás Budan

Autor: Sándor Márai

Tradutor: Ladislao Szabo

Editora: Companhia das Letras

Edição: s/n – 1ª reimpressão

Copyright: 1993

ISBN: 85-359-0440-9

Origem: literatura húngara

Gênero literário: romance

 

O escritor húngaro Sándor Márai (lê-se Tchándor Mároi) nasceu na cidade de Kassa (cujo nome atual é Kosice), no atual território da Eslováquia, no ano de 1900. À época do seu nascimento, os países da região ainda não existiam, estando todo aquele território sob o domínio do Império Austro-Húngaro. Tal império entrou em colapso em 1918, após derrota na Primeira Guerra Mundial (duração do conflito: de 1914 a 1918).

Autor de 46 livros – nem metade traduzida para o português, no Brasil – alcançou enorme popularidade na Hungria, até o momento em que foi proibido pelo regime comunista, em 1948. Neste mesmo ano, Sándor Márai vai viver nos Estados Unidos, em exílio. Mesmo em território norte-americano, continuou a escrever em sua língua natal, o húngaro. Morreu em 1989, na Califórnia, por suicídio.

Os direitos autorais das obras publicadas em terras brasileiras pertencem, em grande parte, à Companhia das Letras, a saber: As Brasas, 1999; O Legado de Eszter, 2001; Veredicto em Canudos, 2002; Divórcio em Buda, 2003; Rebeldes, 2004; Confissões de Um Burguês, 2006; De Verdade, 2008; Libertação, 2009; Jogo de Cena em Bolzano, 2017 e Brasas, em uma nova edição, de 2021. Encontram-se disponíveis na editora apenas duas obras: Brasas (edição de 2021) e Veredicto em Canudos (edição de 2002).

Dei de cara com o nome deste escritor quando fiz uma pesquisa sobre a literatura do Leste Europeu, pois, a partir da literatura russa, desejava descobrir o que mais existia, além de alguns escritores cujas obras já conhecia, como Kafka, Szigmond Móricz, Férenc Molnár (aquele, do clássico infantojuvenil, Os Meninos da Rua Paulo).

Há lacunas culturais que só se podem entender num país como o nosso, com pouco público para este tipo de literatura, somado à dificuldade de se conseguir bons tradutores de idiomas menos em evidência, como o húngaro e à valorização do que nos chega dos EUA. A julgar por este Divórcio em Buda, Sándor Márai é precioso. E dizem os entendidos, não é o melhor dele; Brasas (recebe, às vezes, o nome de As Velas Ardem Até O Fim) é considerada, por muitos, sua obra-prima. Não posso opinar a respeito, mas estou muito impressionado por este pequeno volume em minhas mãos.

O título Divórcio em Buda, para nós, brasileiros, soa meio estranho; por isso, merece explicação. O “Buda” que figura no título não tem nada a ver com o budismo. A capital da Hungria é Budapeste, e é uma junção da parte na margem direita do Danúbio, Buda (Ôbuda) e Peste, na margem esquerda do mesmo rio. Há uma ponte integrando definitivamente Buda e Peste. Portanto, o título se refere a certo divórcio acontecido na parte antiga da cidade, Buda.

Sándor Márai investe muito na caracterização psicológica de seus personagens. O juiz Kristóf Kömives tem 38 anos, é casado com Hertha e tem dois filhos pequenos. Certo dia, vem parar em suas mãos o processo de divórcio do casal Imre Greiner e Anna Fazekas. Acontece que Imre fora colega de sala de Kömives, nos tempos de escola.

Anna, também dos tempos de escola, despertara, em algum momento, seu interesse amoroso. Algumas vezes se encontraram, nas voltas da vida, mas nada aconteceu. E agora, Kristóf tem, diante de si, o retorno do passado: precisa dar uma definição para o processo de divórcio entre os dois antigos conhecidos.

Antes de continuar a resenha, seria interessante abordarmos alguns aspectos. As ações de Divórcio em Buda vão se localizar na década de 1930. Valores que seriam classificados de “modernos” pipocavam aqui e ali, mudando costumes, hábitos, interferindo nos relacionamentos. As pessoas descobrem que os banhos de sol são recomendados para a saúde, o modelo de mulher passa a ser magra, bronzeada – como Greta Garbo.

Também as tensões começavam no campo social, financeiro e político. A quebra da bolsa de Nova York acontecera em 1929, influenciando o mundo todo; os reflexos da Primeira Guerra Mundial ainda estão presentes na Europa como um todo. Num mundo assim, em ebulição, vamos localizar as questões envolvidas nesta obra.

Com o processo diante de si, sobre a mesa, o juiz Kömives divaga:

“Agora se lembrava do preciso instante em que soube, surpreso, irritado, que Imre Greiner, aquele Imre Greiner de quem sempre se recordava com carinho na escola e mais tarde na faculdade, com quem se encontraria e conversaria com prazer, e com quem nunca soube conversar quando ocasionalmente se encontravam, casara com aquela sua conhecida, que... e aqui parou. Quem era essa Anna Fazekas? Teria significado algo mais para ele do que um conhecimento superficial, até mais do que superficial, secundário, mundano? Quando solteiro, viu-a na quadra de tênis duas ou três vezes, e com certeza encontrou-a mais tarde, depois de seu casamento, mas de passagem, superficialmente, como outras moças e mulheres casadas que até conhecia, embora delas talvez nem soubesse o nome.” (página 14)

Kristóf Kömides é um homem arredio socialmente, não tem bom salário, pertence a uma família tradicional, com avô e pai também juízes. Ele é uma promessa, é um bom juiz, julga com lisura e, fatalmente, seguirá, tão logo a ascensão hierárquica o permita, os passos de seus predecessores e será reconhecido. Kristóf é, também, um homem que não gosta de certas modernices:

“A caminho, o juiz refletiu sobre como tudo se decompôs e se modificou naqueles últimos anos, inclusive as formas de convívio social. Ele conhecia e gostava dessa humilde classe média senhorial da qual fazia parte, sentia-a como uma única e grande família, em cujos costumes sociais percebia o mito da família, cujo gosto era o mesmo que o seu, no trabalho, e inclusive na vida particular, sentia-se responsável pelo seu bem-estar e segurança.” (página 18)

Em outro momento:

“Esse mundo contemporâneo, lamurioso, sem limites e irresponsável que manifestava excessivamente seus choros e desejos – como ele repudiava esses casamentos “modernos” e neuróticos, do qual marido e mulher fugiam com tamanha facilidade para a frente do juiz!” (página 21)

O juiz é um burguês, conservador, defensor da sacralidade da instituição casamento. A agitação ao redor, da qual a invasão do swing – ritmo alegre, barulhento, agitado – talvez fosse uma boa amostragem, o incomoda.

Numa das cenas mais dramáticas do livro, que demonstra muito bem a capacidade de Sándor Márai de criar cenas impactantes, de arranhar nossos sentimentos de leitores, eis a descrição da cena da morte do pai de Kömives:

“Ficou meses na cama, doente; só perdeu a paciência na última semana, e então, algumas horas antes da batalha final, ergue-se penosamente num momento em que ninguém o vigiava, arrastou-se até o escritório, tirou de uma gaveta um velho revólver e tentou dar um fim a tudo aquilo. Caiu com o revólver na mão e ficou estirado no chão do escritório, imóvel, paralisado sob os quadros que retratavam os membros da família; foi encontrado nessa posição, inconsciente. Horas mais tarde, entrou em agonia. O revólver com o qual procurou apressar seu fim, sem contudo ter dado o golpe de misericórdia, e alguns retratos da família foi tudo que Kristóf manteve do legado de seu pai.” (página 36)

A família, portanto, é a um tempo, uma instituição que acolhe o indivíduo e que pesa sobre ele. Que perpetua valores morais e sociais, dá segurança, mas que se constitui numa força de retenção do indivíduo. Este aspecto se torna mais dramático num mundo em transformação, para o bem ou para o mal.

Kristóf foi enviado para um internato. Lá, conhece a figura do Padre Norbert, uma construção de personagem muito bem-feita pelo escritor húngaro. Ele será uma espécie de pai substituto:

“O padre Norbert lhe deu aquilo que, na maioria das vezes, nem as mães são capazes de dar, nem a família, nem os irmãos: com tato e visão, o gênio pedagógico do padre Norbert colocou-o sob a proteção de uma comunidade humana. Lá onde cada indivíduo sentia pertencer a algo, a um lugar, isso era tudo. Mais tarde, Kristóf Kömides muitas vezes se perguntou se conseguia passar aos próprios filhos esse sentimento de proteção, se sabia construir dentro da família esse refúgio. Não tinha uma grande opinião sobre as modernas teorias de educação. Com o passar dos anos, conheceu pessoas, vislumbrou destinos e percebeu que aqueles que mantêm o equilíbrio, os que resistem, não necessariamente provêm de circunstâncias familiares felizes – vinham da pobreza, de famílias muito numerosas, onde o dinheiro, o ciúme, as paixões fizeram seu trabalho destrutivo na alma de seus componentes, sem ter demolido a fundação espiritual da estrutura familiar – por quê? De que reserva se alimentavam essas almas?” (página 41)

Este padre Norbert será a influência decisiva na religiosidade do juiz Kömives, uma religiosidade “natural, não aprendida em livros”.

Hertha Wiesmeyer é a esposa de Kristóf. Ela é o eixo de equilíbrio do esposo; serena, conhecedora de sua importância na construção familiar, eis como ela é descrita:

“Hertha Wiesmeyer era bonita. Sua beleza se afirmou com o passar do tempo, sua face fina e longilínea, de testa alta, irradiava uma harmonia simples e tranquila. Não era uma beleza arrogante, mas apenas consciente de si mesma, sem ser provocante ou encantadora – as pessoas não conseguiam desviar-se dos efeitos do seu rosto, olhavam-na seriamente, com uma comoção involuntária.” (página 57)

Aquele clima de insegurança, provocado pelas forças ainda subjacentes, vívidas, de um horror mundial remanescente  (a Primeira Guerra Mundial) e as apenas intuídas, de outro conflito que se avizinha, repercutem na alma das pessoas, ainda que sob a forma de um “mal-estar generalizado”, disfarçado sob momentos de alegria compartilhada:

“Surpresa verdadeira, pensou, só existe uma na vida: quando descobrimos que nós também, pessoalmente, somos mortais. Essa descoberta foi feita por Kristóf aos trinta e oito anos. Aquela sensação física de origem puramente nervosa, por sorte passageira, quando por um segundo sentimos que algo pode acontecer também conosco... o quê? (página 74)

E mais:

“Agora entende: a guerra começa quando as pessoas, em todos os lugares do mundo, estão sentadas e falam de seus problemas e desejos do dia-a-dia e, de repente, alguém pronuncia a palavra “guerra” – e então elas não se calam, não olham para o chão caladas e assustadas, mas respondem de todas as maneiras, em tom natural: ‘guerra” – e se perguntam se é possível, quando e em que medida. É assim que começa.” (página 90)

Tarde da noite, na véspera do julgamento do processo de divórcio, a criada dos Kömives anuncia ao patrão uma visita. O juiz está contrariado, ele não recebe casos jurídicos em andamento em casa, preservando sua vida particular. A criada insiste; é alguém que diz ser conhecido do juiz e, por isto ele o atende. É Imre Greiner quem se insinua. Devo apenas entremostrar o que se segue, sob risco de spoiler, meu caro leitor.

Direi, apenas, que o próprio juiz será obrigado a encarar o significado de certos fatos do seu passado. Terá de responder, a si mesmo, aquela pergunta feita lá na página 14, “quem era essa Anna Fazekas? Teria significado algo mais para ele do que um conhecimento superficial, até mais do que superficial, secundário, mundano?”

Literatura não é psicologia, este resenhista não é psicólogo de formação. Entretanto, ocorre-me o livro Em busca de sentido, de Viktor E. Frankl (resenhado neste blogue) e sua logoterapia. Ele defende, naquela obra, que os homens temos de buscar um sentido para a vida, para nos equilibrarmos neste mundo. Ele mesmo, Viktor, um sobrevivente dos campos de extermínio nazista, conseguiu manter sua sanidade, apesar dos horrores espreitados, encontrando algum sentido para sua vida.

Aquele mundo, localizado no ambiente de pós-guerra mundial, o Império Austro-Húngaro destruído, mas – calculo – se esforçando inutilmente por sobreviver, sob aquela camada feérica de alegria fabricada, o que ele poderia oferecer às pessoas? Que questionamentos, que inquietações imporia às mentes?

A alma pressente as graves modificações, embora não a tragamos ao nível consciente. Uma outra Guerra Mundial, muito mais devastadora, pouco a pouco se anuncia. A respeito do mal-estar civilizatório, deixemos falar quem entende do assunto, num excerto do Professor de Antropologia da PUC-SP, Edgard de Assis Carvalho:

“Hans Jonas, em Para uma ética do futuro (1998), afirmou serem necessárias duas tarefas preliminares a ser levadas a cabo por todos os humanos que investem energia libidinal na boa utopia de um mundo menos antropocêntrico e mais ecocêntrico: a primeira, a maximização do conhecimento das consequências de todos os nossos agires, dada a agonia planetária que acomete a todos nós; a segunda, a elaboração de uma forma de conhecimento transdisciplinar, que fosse capaz de conjugar saberes fatuais e saberes axiomáticos.

Para isso, a fabricação do real teria de se pautar pela combinação do intelecto com a emoção, do necessário e do contingente, da harmonia e do caos. Essa modalidade renovada de consciência coletiva, destituída de qualquer intenção prometeica, seria saturada de complexus, ou seja, de agires e fazeres que rejuntariam tudo aquilo que a disjunção cartesiana se incumbiu de separar no plano físico, metafísico e metapolítico. Qualquer sistema vivo passaria, então, a ser entendido como um sistema incompleto, indeterminado, irreversível, sempre marcado pela auto-organização que combina, descombina e recombina a ordem, a desordem, a reorganização.” (in Mal-estar civilizatório e ética da compreensão, acessado em 20/02/2022, < https://www.scielo.br/j/spp/a/f5jBZbXgjFSSwkjhvf75V9H/?lang=pt>)

Nada mais a dizer. Nada mais a considerar.

Apenas uma constatação: pode não ser o melhor de Sándor Márai. Entretanto, este Divórcio em Buda é magnífico. Acima da média. Tenho como certo, suas reverberações serão muito frequentes e poderosas na minha memória de leitor. Assumo o compromisso comigo mesmo e com o leitor: vou fazer deste autor um projeto de leitura.

Concordo, existem leitores para os mais diversos tipos de livros, para as mais diferentes propostas. Esta obra não é exceção. Não agradará a todos, aliás, não existem livros que agradem a todos. Para apreciá-lo, você deverá gostar de enredos que não se focam em ação. História de fundo psicológico, de análise de personagens requerem leitores com estas predisposições.

Não há demérito em se gostar de outras propostas. Que seria do amarelo, se todos gostassem do vermelho?

  

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Resenha nº 183 - A Peste, de Albert Camus

 









 

Título original: La Peste

Autor: Albert Camus

Tradutora: Valerie Rumjanek

Editora: Record

Edição:18ª

Copyright:1947

ISBN:978-85-01-01487-0

Gênero literário: romance

Origem: Literatura francesa

 

 

Albert Camus é um escritor argelino de nacionalidade francesa. Nasceu em 07/11/1913, em Mondovi, Argélia, e faleceu em 04/01/1960, em Villeblevin, França. Um homem de vários talentos: romancista, ensaísta, jornalista, dramaturgo e filósofo. Na sua terra natal, viveu sob o guante da fome, da guerra, da miséria e do sol. Tais referências vão aparecer em toda a sua obra.

Camus foi agraciado com o Prêmio Nobel de 1957, pelo conjunto da obra. Ele era tuberculoso e esta condição, à época uma ameaça real de morte, lhe trouxe a dimensão da falibilidade do ser humano. Como filósofo, Albert integra a corrente existencialista; como escritor, vincula-se ao que se convencionou chamar “estética do absurdo”. Camus sempre defendeu que o melhor modo de filosofar é através da literatura. E o romance, como gênero literário, é o campo mais favorável para tal intento. Como precedentes, dentro da mesma proposta estética, temos Dostoiévski e Franz Kafka; como filiados posteriores, Samuel Beckett e Eugène Ionesco.

Este é a segunda obra de Albert Camus resenhada neste blogue; O Estrangeiro conta com a postagem de número 105. Pretendo ler, em breve, A Queda. Como vê o leitor, este argelino está se tornando um queridinho deste leitor entusiasmado.

A Peste é de 1947, quando a Segunda Guerra Mundial tinha terminado. Os ecos deste conflito, sobretudo na Europa, marcavam forte presença. Como é dito na orelha do livro, edição da Record, que tenho em mãos,

“Com A Peste (1947), Albert Camus tenta a demonstração de um novo cogito cartesiano: ‘Eu me revolto, portanto, nós somos.

Pois a revolta (individual) contra o absurdo é também revolta (coletiva) a favor dos valores que a própria revolta revela.”

Toda a narrativa tem lugar na cidade de Oran, tomada pela epidemia. Clara alegoria da condição humana, pela semelhança desta cidade envolta em peste e a França ocupada da Segunda Guerra Mundial, A Peste nos diz mais do que uma leitura de superfície pode nos dar. Certos traços narrativos, algumas digressões postas na boca de alguns personagens nos levam a estabelecer termos de comparação com a infecção do Nazismo.

Em apenas dois parágrafos iniciais, Camus nos pinta uma cidade em tons neutros, absolutamente normais – cenário da insuspeitada chegada da peste bubônica – exatamente como acontecera na Idade Média:

“Os curiosos acontecimentos que são o objeto desta crônica ocorreram em 194... em Oran. Segundo a opinião geral, estavam deslocados, já que saíam um pouco comum. À primeira vista, Oran é, na verdade, uma cidade comum e não passa de uma prefeitura francesa na costa argelina.

“A própria cidade, vamos admiti-lo, é feia. Com o seu aspecto tranquilo, é preciso algum tempo para se perceber o que a torna diferente de tantas outras cidades comerciais em todas as latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombos, sem árvores e sem jardins, onde não se encontra o rumor de asas, nem o sussurro de folhas? Em resumo: um lugar neutro. Apenas no céu se lê a mudança das estações. A primavera só se anuncia pela qualidade do ar ou pelas cestas das flores que os pequenos vendedores trazem dos subúrbios: é uma primavera que se vende nos mercados. Durante o verão, o sol incendeia as casas muito secas e cobre as paredes de uma poeira cinzenta; então, só é possível viver à sombra das persianas fechadas. No outono, pelo contrário, é um dilúvio de lama. Os dias bonitos só chegam no inverno.” (página 9)

O quadro da cidade, fornecido pelo narrador, me traz à lembrança a modorrenta tranquilidade daquela cidadezinha do filme Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, tranquilidade esta que será drasticamente alterada pelo bizarro ataque dos pássaros. Lá, eram pássaros; aqui, são ratos.

Neste cenário se movimenta o Dr. Bernard Rieux. Aliás, este protagonista-narrador merecerá comentários à parte, nesta resenha.

Como tudo começa:

“Na manhã do dia 16 de abril, o doutor Bernard Rieux saiu do consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. No momento, afastou o bicho sem prestar atenção e desceu a escada. Ao chegar, porém, veio-lhe a ideia de que esse rato não estava no lugar devido e voltou para avisar o porteiro. Diante da reação do velho Michel, sentiu melhor o que sua descoberta tinha de insólito. A presença deste rato morto parecera-lhe apenas estranha, enquanto para o porteiro constituía um escândalo. A posição deste último era aliás categórica: não havia ratos na casa. Por mais que o médico lhe garantisse que havia um no patamar do primeiro andar, provavelmente morto, a convicção de Michel permanecia firme. Não havia ratos na casa e era necessário que tivessem trazido este de fora. Em resumo, tratava-se de uma brincadeira.” (página 13)

De fato, o negacionismo tem por base a ignorância.

Como bom escritor que é, Camus só constrói personagens que sejam importantes para sua narrativa. São vários, mas quero destacar dois: o jornalista Raymond Rambert e Jean Tarrou. Ambos acompanharão o protagonista quase até o fim da história e têm, cada um a seu jeito, o que contribuir para o enredo.

Como jornalista, Rambert traz um tom investigativo à narração. Ele está ali para fazer uma matéria sobre a condição de vida dos árabes, enviado por um grande jornal de Paris. Jean Tarrou é um homem introspectivo, “encarregado” de portar os comentários filosóficos do livro.

O narrador nos apresenta Rambert da seguinte forma:

“Na tarde do mesmo dia, Rieux, no início de suas consultas, atendeu um rapaz que lhe disseram ser jornalista e que já viera de manhã. Chamava-se Raymond Rambert. Baixo de estatura, ombros largos, rosto decidido, olhos claros e inteligentes, Rambert vestia roupa esporte e parecia à vontade na vida. Foi direto ao assunto.” (página 16)

Jean Tarrou nos causa outra impressão:

“Às cinco horas, ao sair para novas visitas, o médico encontrou na escada um homem ainda novo, de aspecto pesado, de rosto maciço e cansado, riscado por sobrancelhas espessas. Tinha-o encontrado algumas vezes na casa dos bailarinos espanhóis que moravam no último andar do seu prédio. Jean Tarrou fumava com empenho um cigarro e contemplava as últimas convulsões de um rato que morria.” (página 17)

Pouco a pouco, vão aparecendo ratos mortos em lugares imprevistos. Breve, não são apenas os ratos que morrem; a peste bubônica começa a matar também os habitantes de Oran. Nenhuma categoria, nenhuma classe social é poupada. O Dr. Rieux quase nada pode fazer; as pessoas apresentam nódulos purulentos pelo corpo, notadamente nas virilhas. A febre sobrevém, a secura, a falta de ar. A peste promove verdadeira mudança na disposição dos seres humanos:

“Homens que se julgavam volúveis no amor redescobriram-se constantes. Filho que tinha vivido junto da mãe, mal olhando para ela, depositavam toda a preocupação e angústia numa ruga de seu rosto que lhes povoava a lembrança dessa presença, ainda próxima e já tão distante, que ocupava agora os nossos dias. Na verdade, sofríamos duas vezes: o nosso sofrimento, em primeiro lugar; e em seguida aquele que atribuíamos aos ausentes – filho, esposa ou amante.” (página 66)

Outro personagem absolutamente importante nestes relatos é o padre Paneloux:

“No entanto, onde uns viam a abstração, outros viam a verdade. De fato, o fim do primeiro mês de peste foi obscurecido por recrudescência acentuada da epidemia e um sermão veemente do Padre Paneloux, o jesuíta que assistira o velho Michel no princípio da doença. O padre Paneloux já se havia distinguido por colaborações frequentes no boletim da Sociedade de Geografia de Oran, onde suas reconstituições epigráficas constituíam autoridade. Mas conquistara um auditório mais vasto que o de um especialista ao fazer uma série de conferências sobre o individualismo moderno. Mostrara-se, então, defensor ardoroso de um cristianismo exigente, igualmente distanciado da libertinagem moderna e do obscurantismo dos séculos passados. Nessa ocasião, não poupara duras verdades ao seu auditório. Daí sua reputação.” (página 84)

A Peste segue com sua história sobre a infecção de Oran, pontuando, aqui e ali, discussões muito instigantes entre o padre Paneloux, o próprio narrador Rieux e Tarrou a respeito de questões éticas e religiosas:

“A contradição, aliás, não o assustava, pois tinha dito pouco depois a Tarrou que, certamente, Deus não existia, já que, de outro modo, os padres seriam inúteis. No entanto, por certas reflexões que se seguiram, Tarrou compreendeu que esta filosofia estava estreitamente ligada ao estado de espírito que lhe davam os peditórios frequentes de sua paróquia.” (página 106)

A meu ver, Rieux é um ateu, típico homem da ciência; Tarrou questiona a ideia e a atuação de Deus, de um ponto de vista filosófico. O padre Paneloux, um homem religioso, um sacerdote, que também atua na área da ciência – haja vista sua participação na Sociedade Geográfica de Oran. É portanto, uma tentativa de síntese entre a Religião e a Ciência, sem o “obscurantismo dos séculos passados”.

Como não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe, a partir de certo momento a epidemia vai perdendo força. Não conto como acaba tudo, embora o como acabe não seja importante num romance como este, que ouso chamar de um romance de tese. Isto é, uma obra literária montada para discutir ideias e ideais. No caso, o quão absurda é a existência humana.

Linhas acima, disse que o narrador de Camus mereceria comentários à parte.

De fato, um dos elementos a serem descobertos, durante a história, é quem é o narrador. Sim, porque ele se esconde, nega-se a dar evidências de si. Usa, estrategicamente, a terceira pessoa. Chama a si mesmo de “narrador”:

“Aliás, o narrador, que se revelará no momento oportuno, não disporia de meios para lançar-se nem empreendimento deste gênero se o acaso não o tivesse posto em condições de recolher um certo número de depoimentos e se a força das circunstâncias não o tivesse envolvido em tudo o que pretende relatar. É isso que o autoriza a agir como historiador. É claro que um historiador, mesmo que não passe de um amador, tem sempre documentos. O narrador desta história tem portanto os seus: em primeiro lugar, o seu testemunho; em seguida, o dos outros, já que, pelo seu papel, foi levado a recolher as confidências de todos os personagens desta crônica; e, finalmente, os textos que acabaram caindo em suas mãos. Pretende servir-se deles quando lhe parecer útil e utilizá-los como lhe aprouver.” (página 12)

Este narrador assim constituído, vale-se realmente das anotações de Rambert, o jornalista, mas, principalmente, das observações escritas no caderno de Tarrou.

E por que o narrador de A Peste é instituído desta forma, um narrador confiável, tão ao avesso daquele outro narrador famoso, nada confiável, do nosso Machado de Assis, em Dom Casmurro?

Haverá, sim, um motivo:

“Esta crônica chega ao fim. É tempo de o doutor Bernard Rieux confessar que é o seu autor. Mas, antes de narrar os últimos acontecimentos, ele gostaria, ao menos, de justificar a sua intervenção e fazer compreender por que quis assumir o tom de testemunha objetiva. Ao longo de toda a duração da peste, sua profissão o colocou em condições de ver a maior parte dos seus concidadãos e de recolher os seus sentimentos. Estava, pois, em boa posição para narrar o que tinha visto e ouvido.” (página 263)

Para arrematar, apenas mais uma questão.

A partir de que elementos poderíamos aproximar a epidemia relatada neste livro à invasão nazista da França? Bom, em primeiro lugar, pelo contexto – o livro foi escrito em 1947, sob fortes impressões da Segunda Guerra; o autor já ensaiara em outros livros a sua “estética do absurdo”, um ponto de vista segundo o qual o mundo dos humanos é absurdo.

Mas, há mais. Um trecho que, na minha opinião “cola” fortes imagens dos campos de concentração de Auschwitz-Birkenau está transcrito abaixo:

“Um pouco depois, contudo, foi preciso procurar outro lugar, tomar outras medidas. Um decreto da prefeitura expropriou os jazigos perpétuos e todos os restos exumados foram encaminhados ao forno crematório. Em breve, tornou-se necessário conduzir os próprios mortos da peste para a cremação. Mas, então, foi preciso utilizar o antigo forno de incineração que se encontrava a leste da cidade, fora das portas. Afastou-se para mais longe o piquete da guarda e um empregado da prefeitura facilitou muito a tarefa das autoridades ao aconselhar o uso dos bondes que antigamente serviam à orla marítima e que se encontravam desativados. Para esse fim, arrumou-se o interior dos veículos retirando os assentos e desviou-se a linha para o forno, que se tornou, assim, uma estação final.” (páginas 157/158)

Não é demais lembrar aqui, os judeus eram constantemente caricaturizados, pelos nazistas, como ratos – raça impura e eliminável. Como acontece, também, na magnífica obra em quadrinhos, ganhadora do Prêmio Pulitzer, Maus (Rato, em alemão).

A Peste é um clássico. Talvez não seja uma obra para leitores iniciantes ou de leitura desatenta. Simplesmente – e aqui vou me apropriar do bordão do resenhista do blog “Bons Livros Para Ler”, Luiz Guilherme de Beaurepaire,

“Um livro que merece destaque na sua estante.”