Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

sábado, 25 de novembro de 2017

Resenha nº 106 - Antes que os pássaros acordem, de Josué Montello

Título original: Antes que os pássaros acordem
Autor: Josué Montello
Editora: Nova Fronteira
Edição: não consta. 3ª Reimpressão
Copyright: 1987
Gênero literário: Romance
Número de páginas: 200
ISBN: 85-209-1325-3
Literatura Brasileira
Bibliografia do autor - Romances: Janelas Fechadas 1941; Luz da Estrela Morta, 1948; Labirinto de Espelhos, 1952; A Décima Noite, 1959; Os Degraus do Paraíso, 1965; Cais da Sagração, 1971; Os Tambores de São Luís, 1975; Noite Sobre Alcântara, 1978; A Coroa de Areia, 1979; O Silêncio da Confissão; 1980; Largo do Desterro, 1981; Aleluia, 1982; Pedra Viva, 1983; Uma Varanda sobre o Silêncio, 1984; Perto da Meia-Noite, 1985; Antes que os Pássaros Acordem, 1987; A Última Convidada, 1989; A vida eterna do major Taborda, 1989; Um Beiral para os Bem-te-vis, 1989; O Camarote Vazio, 1990; O Baile da Despedida, 1992; A Viagem sem Regresso, 1993; Uma Sombra na Parede; 1995; A Mulher Proibida, 1996; Enquanto o Tempo não Passa, 1996; Sempre Serás Lembrada, 2000. Novelas: O Fio da Meada, 1955; Duas Vezes Perdida, 1966; Numa Véspera de Natal, 1967; Uma Tarde, Outra Tarde, 1968; Um Rosto de Menina, 1983; A Indesejada Aposentadoria, 1972; Glorinha, 1977; O Melhor do Conto Brasileiro, 1979; Pelo Telefone, 1981. Teatro: Precisa-se de um Anjo, 1943; Escola da Saudade, 1946; O Verdugo, 1954; A Miragem, (1959; Através do Olho Mágico, 1959; O Anel que Tu Me Deste, 1960; A Baronesa, 1960; Alegoria das Três Capitais, 1960; Um Apartamento no Céu, 1995; O Baile da Despedida, 1997. Ensaios: Gonçalves Dias; 1942; O Hamlet de Antonio Nobre, 1949; Fontes Tradicionais de Antonio Nobre, 1953; Artur Azevedo e a Arte do Conto, 1956; O Oratório Atual do Brasil, 1959; Caminho da Fonte, 1959; O Presidente Machado de Assis,1961; Uma Palavra Depois de Outra, 1969; Um Maître Oublié de Stendhal, 1970; Estante Giratória, 1971; A Cultura Brasileira, 1977; Brazilian Culture, 1983; Viagem ao Mundo de Dom Quixote, 1983; Os Caminhos, 1984; Lanterna Vermelha, 1985; Janela de Mirante, 1993; Fachada de Azulejo, 1996; Condição Literária, 1996; Memórias Póstumas de Machado de Assis, 1997; Baú da Juventude, 1997; O Juscelino Kubitschek de Minhas Recordações, 1999. Contos: Um rosto de menina, 1980. Outros: Pequeno Anedotário da Academia Brasileira, 1961.

Josué de Sousa Montello (Josué Montello), nascido em 21/08/1917, em São Luís, Maranhão e falecido em 15/03/2006, aos 88 anos. Com apenas 15 anos de idade, Josué Montello começou a integrar a Sociedade Literária Cenáculo Graça Aranha, da qual faziam parte jovens talentos ligados ao movimento do modernismo. Após uma passagem significativa pela cidade de Belém (Pará), seguiu para o Rio de Janeiro, onde se integrou também ao semanário literário Dom Casmurro. Janelas Fechadas foi seu romance de estreia, em 1941. Em novembro de 1954, foi eleito para ocupar a Cadeira de número 29 da Academia Brasileira de Letras. Dono de uma invejável produção espalhada por vários gêneros de expressão escrita, como se pode ver em sua bibliografia acima, Josué Montello possui uma prosa refinada, elegante, que nos passa aquela falsa sensação de que haver sido projetada com simplicidade.
Antes que os pássaros acordem, romance de 1987, me chamou a atenção pela capa, pelo nome do autor (eu já possuía uma edição, do mesmo autor, A vida eterna do Major Taborda, pelo extinto Círculo do Livro). Uma bela capa, mostrando a famosa Torre Eiffel de Paris ao fundo, em meio a um alvorecer. Este é o único livro de Montello ambientado fora do Brasil, mais precisamente, em Paris, na França. A temática também é francesa, envolvendo várias questões da invasão e permanência das tropas alemãs em solo parisiense, quando da Segunda Guerra Mundial.
Dividido em cinco partes, o romance se inicia:
“A cena foi rápida. Só o tempo necessário para abrir e fechar a alta porta do edifício, quase sem ruído, e atirar para dentro do vestíbulo o adolescente que se encolhia junto à ombreira de pedra, protegido pelas lâmpadas apagadas.
Depois, tanto Gérard quanto o desconhecido permaneceram de respiração suspensa, a olhar na direção da porta, ouvindo passos da patrulha na calçada da rua, ambos imóveis e com medo.” (página 11)
Início no meio da ação, ou como é tecnicamente conhecido, in medio res. O adolescente é Daniel Cohen, ficamos sabendo pouco depois; é um idealista lutando como pode contra a ocupação alemã. A Gestapo o procura por toda a cidade. Gérard o esconde em seu apartamento, onde vive com Isabelle. O protagonista da história tem seus próprios problemas. Chega a fugir de Paris, mas retorna à cidade, para o que der e vier. Além do mais, ele tem um problema sério: embora desejem – tanto ele quanto Isabelle – um filho, Gérard é estéril.
Trabalha numa agência publicitária como desenhista de talento. É amigo do seu chefe, Augustin. a trama que conduz o romance passa pelo fato de um desenho de Gérard representando o Arco do Triunfo ter sido utilizado pela agência, numa fusão com outro desenho dele, representando a águia alemã. A agência realizara uma fusão entre os desenhos, de modo que a águia sobrepaira o Arco do Triunfo, numa clara propaganda pró-nazista.
A relação de Gérard com Isabelle não é tranquila, assombrada pela impossibilidade de gerarem um filho. Este será o outro gatilho que move a história. O texto é muito bem escrito, dosando as informações num crescendo, até que, lá pelas páginas 40, me vi completamente conquistado pelo livro.
Mesmo a ambientação sendo parisiense, envolvendo fatos parisienses e fazendo, o tempo todo, referências à cidade-luz, Josué toca em algumas questões universais. Uma delas, por exemplo, é a grande questão sobre o que legitima atos violentos, como abaixo:
“Antoine, puxado por Isabelle, ia saindo de costas, na direção da orla da praça, enquanto Gérard dava por si defronte do guarda, interpelando-o:
— Que é que fez a menina? E, por que não pode brincar?
A resposta veio rápida, em tom ríspido, com o guarda a levantar ainda mais a cabeça autoritária:
— É judia, senhor. Sei que é. E os judeus estão proibidos de brincar nas praças públicas.
E para a senhora, que tinha a menina junto a si, protegendo-a com os braços por cima de seus ombros assustados:
— Onde está sua estrela amarela? E a estrela da menina? A senhora não sabe que tem de usar a sua em cima do peito, bem à vista? E que as crianças também têm de usá-la, depois dos seis anos, aqui no peito, como a senhora?
E a judia, já com ar acossado:
— As duas estrelas estão na bolsa, senhor. Me esqueci de pegá-las. Desculpe.
E o guarda, mais enérgico:
— Eu vou levar a senhora, com a sua neta, para o Comissário de Polícia. Tenho ordens severas para agir contra os judeus.” (página 115/116
E este outro trecho, desta vez, com a violência deflagrada pelos franceses:
“Ela, primeiro, enxugou os olhos. E atenuando a exaltação, como se houvesse conseguido superar a cólera:
— Eu estava sozinha na Agência, abrindo a correspondência atrasada, no momento em que dois homens e uma mulher apareceram na porta, um deles perguntando pelo Pierre. Depois, por ti. Com um gesto, mostrei-lhes as salas vazias, e logo fiquei gelada, vendo que o outro trazia na mão direita um revólver. Enquanto os dois passavam para a sala do Pierre, e ali revolviam gavetas e armários, a mulher me ordenou, já de tesoura em punho: — Baixa a cabeça. — Intimidada, obedeci. Senti que meus cabelos iam sendo arrancados a tesouradas. E quando eu pensava que já estava livre, começou o pior, com a navalha me raspando o crânio.” (página 149)
Dominando perfeitamente os truques narrativos, perto do desfecho Montello introduz um “personagem-alívio”, isto é, um personagem criado para dar ao leitor uma respirada antes do clímax e que tem, ao final das contas, a função de “esticar” o suspense, adiando-o. Até certo ponto, tal personagem – um visconde real ou suposto – me remeteu à figura tresloucada de Dom Quixote, quer pela descrição física, quer pela loucura evidente, quer pela função histriônica ou, talvez mais completo, por todas estas coisas juntas:
“Conquanto houvesse chegado ali pela manhã, o senhor alto e magro, de unhas bem tratadas...
— O cavalheiro não se importa se eu fizer uma pequenina alteração na sua cama? Obrigado. Ponho a minha do outro lado. Faço isso pelo senhor. Dizem-me que ronco um pouco nos meus sonos mais profundos. Quanto mais longe eu estiver, melhor será, tanto para mim, que não serei acordado pelo carteiro, quanto para o senhor, que não terá de me acorda para poder dormir.” (página 179)
É do tal visconde a estapafúrdia Teoria do Pavio, sobre a qual ele discorre, didaticamente:
“— A teoria é simples. Simplérrima. O senhor, como artista, não precisará recorrer a raciocínios metafísicos para entendê-la. Imagine uma vela. Há velas grandes. Há velas pequenas. Refiro-me às velas de cera que pomos nos altares. Cada vela tem seu pavio. Uns maiores. Outros menores. Conforme o tamanho da vela. Cada um de nós, para Deus, é uma vela. Maior. Menor. Sem que o tamanho da vela corresponda ao tamanho da pessoa. Se correspondesse, eu estaria, aqui, em posição melhor do que o senhor. Por quê? Já vai me entender. O tamanho de nossas vidas depende de nosso pavio. Tanto eu quanto o senhor podemos ter pavio longo ou pavio curto. Ou seja: eu posso ter pavio longo; p senhor pode ter pavio curto. Ou vice-versa. O curto é o meu, e o seu é longo. Por quê? Mistério. O importante é que há um pavio para cada um. Quando nascemos, esse pavio é aceso, lá em cima. E enquanto vivemos, ele vai queimando. Na hora em que tem de apagar, apaga mesmo, no finzinho da vela. Tudo quanto se fizer, aqui embaixo, para manter o pavio aceso, não adianta coisa alguma. Acabou, acabou.” (página 181)

Delicioso o livro, meu caro leitor. E quase passou despercebido, quando o comprei, naquela baciada de saldos. Também ficou um tempão sem que eu o lesse, até que, ao mexer na minha estante, dei de cara com ele. E me decidi a lê-lo, para o meu prazer literário.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Resenha nº 105 - O Estrangeiro, de Albert Camus

Resultado de imagem para livro o estrangeiroTítulo original: L’Etranger
Título em português: O Estrangeiro
Autor: Albert Camus
Tradutora: Valerie Rumjanek
Editora: Record
Copyright: 1957
Edição: 40ª
Origem: Literatura Francesa
ISBN: 978-85-01-01486-3
Bibliografia do autor: Révolte dans les Asturies (Revolta nas Astúrias), 1936; L'Envers et l'Endroit (O Avesso e o Direito), 1937; Noces (Núpcias), 1939; Réflexions sur la Guillotine (Reflexões sobre a Guilhotina), 1947; L'Étranger (O estrangeiro), 1942; Le Mythe de Sisyphe (O mito de Sísifo), 1942; Les justes (Os justos), 2008; Malentendu (O malentendido), 1944; Lettres à un ami allemand (Cartas a um amigo alemão),1941; La peste (A peste), 1972; L'État de siège (Estado de sítio), 1948; L'Artiste en prison (O Artista na prisão), 1952; Actuelles (Atuais) I, Crônicas, 1944-1948", 1950; "Actuelles (Atuais) II, Crônicas, 1948-1953; L’homme révolté (O homem revoltado); L'Été (O Verão), 1954; Requiem pour une nonne (Réquiem para uma freira); La chute (A queda),  1972; L'Exil et le Royaume (O exílio e o reino), 1957; La Femme adultere (A mulher adúltera), Le Renégat (O Renegado), Les Muets (Os Mudos), L'Hôte (O Hóspede), Jonas. La Pierre qui pousse (A Pedra que brota, Os discursos da Suécia (publicado juntamente com O avesso e o direito); Carnets I (Cadernetas I), 1962; Carnets II (Cadernetas II), janeiro 1942-março 1951, 1964; Carnets III (Cadernetas III), março 1951-dezembro, 1959; La Postérité du soleil, photographies de Henriette Grindat. Itinéraire par René Char (A posteridade do Sol, fotografias de Henriette Grindat. Itinerário por René Char, 1965;  Les possédés (Os possessos),  adaptação ao teatro do romance de Fiódor Dostoiévski, 1959; Résistance, Rebellion, and Death (Resistência, Rebelião e Morte); Le Premier Homme (O primeiro homem), 1994; La mort heureuse (A morte feliz); Albert Camus, Maria Casarès. Correspondance inédite (1944-1959). Avant-propos de Catherine Camus, Gallimard, Collection Blanche, 2017.

Albert Camus é um escritor argelino de nacionalidade francesa. Nasceu em 07/11/1913, em Mondovi, Argélia, e faleceu em 04/01/1960, em Villeblevin, França. Um homem de vários talentos: romancista, ensaísta, jornalista, dramaturgo e filósofo. Na sua terra natal, viveu sob o guante da fome, da guerra, da miséria e do sol. Tais referências vão aparecer em toda a sua obra.
Camus foi agraciado com o Prêmio Nobel de 1957, pelo conjunto da obra. Ele era tuberculoso e esta condição, à época uma ameaça real de morte, lhe traz a dimensão da falibilidade do ser humano. Como filósofo, Albert integra a corrente existencialista; como escritor, vincula-se ao que se convencionou chamar “estética do absurdo”. Como precedentes, dentro da mesma proposta estética, temos Dostoiévski e Franz Kafka; como filiados posteriores, Samuel Beckett e Eugène Ionesco.
Vale transcrever a abertura de O Estrangeiro:

“Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.” Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.
O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel. Vou tomar o ônibus às duas horas e chego ainda à tarde. Assim posso velar o corpo e estar de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de licença a meu patrão e, com uma desculpa destas, ele não podia recusar. Mas não estava com um ar muito satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe: “A culpa não é minha.” Não respondeu. Pensei, então, que não devia ter-lhe dito isto. A verdade é que eu nada tinha por que me desculpar. Cabia a ele dar-me os pêsames. Com certeza, irá fazê-lo depois de amanhã, quando me vir de luto. Por ora é um pouco como se mamãe não tivesse morrido. Depois do enterro, pelo contrário, será um caso encerrado e tudo passará a revestir-se de um ar mais oficial.” (página 13)

Uma das mais perfeitas páginas de abertura que já li. E o parágrafo introdutório é simplesmente irretocável. Perfeito. Várias informações importantes são adiantadas já neste introito. Vejamos.
  • A mãe do protagonista morreu em um asilo para velhos, na localidade de Marengo;
  • A relação do protagonista com o patrão não é das mais afetivas;
  • O narrador é em primeira pessoa, narrando do ponto de vista do protagonista e se constitui, pelo tom já demonstrado, numa voz neutra, distante de qualquer envolvimento emocional com os fatos;
  • O estilo desenvolvido pelo autor é seco, direto, quase sem adjetivos;
  • ·Por fim, o protagonista é um homem sem grande importância social;
  • Não é demais perceber-se, de saída, o tom de pessimismo assumido.

Mersault leva uma vida banal, completamente convencional. A tudo que lhe é proposto, reage com um “tanto faz”, que nos lembra muito, a nós, leitores do século XXI, a extraordinária novela de Herman Melville, Bartleby, o escrivão. Também ele reage de forma parecida, quando lhe propõem alguma tarefa: “melhor não”. Mersault não tem quase desejos, ambições; a vida o leva.
Coloca-se, desde cedo, a grande questão da liberdade. Mersault, não tendo opções a fazer, não tendo ambições, não sendo vinculado a sentimentos, nem a correntes filosóficas, religiosas ou ideológicas e mesmo não sendo filiado a nenhuma corrente teórica científica, configura-se como um homem completamente livre. É um homem que realmente pode escolher o caminho que desejar, pois tem todas as cartas à sua disposição. O que acontece, entretanto, é que ele não escolhe. É livre para escolher, mas tudo lhe parece tão banal, tão sem propósito, que não há o que escolher.
O narrador-protagonista nos narra os fatos no tempo do presente, às vezes fazendo incursões ao passado. Estas incursões, não obstante, não são portadoras de afetividade ou saudosismo. São apenas referências que desembocam no presente.
Penso ser de muita utilidade a transcrição de outro trecho, desta vez de autoria de Manuel da Costa Pinto, jornalista que assina o prefácio:

“Estamos diante de uma consciência esvaziada, estranha (ou “estrangeira”) a tudo, que vive no tempo presente e na recusa de estabelecer nexos entre a gratuidade dos fatos. Esse novo tipo de herói – ou, no caso, de anti-herói, pelo caráter banal de sua existência nua – antecipa em duas décadas o nouveau roman de Alain Robbe-Grillet e Claude Simon, com seus enredos confinados na descrição fenomenológica das coisas e em ações que rejeitam determinações sociais ou explicações de ordem psicológica.” (páginas 5 e 6)

Somos obrigados a fazer relação direta ao livro anteriormente resenhado neste blogue, ainda dentro do mês de novembro, O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati. Aqui como lá, o tom de desencanto; aqui como lá, a percepção de que a vida não é significativa, de que existe apenas o esvaziamento dos sentidos atribuíveis à vida.
Mesmo no caso das relações amorosas, especificamente entre Mersault e Marie, há um esvaziamento, por parte dele:

“À noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar-me com ela. Disse que tanto fazia, mas que se ela queria, poderíamos nos casar. Quis, então, saber se eu a amava. Respondi, como aliás já respondera uma vez, que isso nada queria dizer, mas que não a amava.
— Nesse caso, por que se casar comigo? – perguntou ela.
Expliquei que isso não tinha importância alguma e que, se ela o desejava, nós poderíamos casar. Era ela, aliás, quem o perguntava, e eu me contentava em dizer que sim. Observou, então, que o casamento era uma coisa séria.
— Não – respondi.
Ela se calou durante alguns instantes, olhando-me em silêncio. Depois, falou. Queria simplesmente saber se, partindo de outra mulher com a qual tivesse o mesmo relacionamento, eu teria aceitado a mesma proposta.
— Naturalmente – respondi.” (página 49)

De vez em quando, Mersault a desejava, mas era apenas uma necessidade fisiológica, um impulso natural e automático.
A falta de religião do protagonista vai levar, a certa altura da narrativa, um padre à exasperação. Ele havia tentado obter de Mersault uma declaração de pertencer a esta ou àquela religião:

“Ia dizer-lhe que estava errado em obstinar-se: este último ponto não tinha tanta importância assim. Mas ele me interrompeu e exortou-me uma última vez, do alto de sua posição, perguntando-me se acreditava em Deus. Respondi que não. Sentou-se, indignado. Disse-me que era impossível, que todos os homens acreditavam em Deus, mesmo os que lhe viravam o rosto. Essa era a sua convicção, e se algum dia viesse a duvidar dela, a sua vida deixaria de ter sentido.
— O senhor quer – exclamou – que a minha vida não tenha sentido?Na minha opinião, eu não tinha nada com isso, e foi o que lhe disse. Mas do outro lado da mesa ele já brandia o Cristo sob os meus olhos e gritava de maneira irracional:— Eu sou cristão. Peço perdão pelos seus pecados a esse aqui. Como pode não acreditar que ele sofreu por você?” (página 73)

Não tive, leitor, o planejamento de ler duas obras tão densas, enquadradas na “estética do absurdo” – obras tão desesperançadas – uma após a outra. O deserto dos tártaros, sim, foi opção; queria ler essa obra há muito tempo. Mas não este O estrangeiro. Ele me foi indicado pelo instrutor de um curso que estou fazendo. Ademais, Albert Camus era uma lacuna imperdoável na minha vida de leitor – lacuna que reparo agora.
Se você gosta de leituras densas, é uma boa indicação. Aliás, é mais do que a questão posta. Na verdade, se você gosta desta linha pessimista, ou se você consegue lê-la, mesmo não se identificando com o tom tão pessimista (sou desses, otimista de carteirinha, mas que consegue mesmo assim gostar de algo tão contrário à minha disposição), leia-o. É um dos clássicos da literatura ocidental.

domingo, 19 de novembro de 2017

Resenha nº 104 - O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati

Resultado de imagem para livro o deserto dos tártarosTítulo original: Il deserto dei Tartari
Título em português: O deserto dos tártaros
Autor: Dino Buzzati
Editora: Editora Nova Fronteira
Tradução: Aurora Fornoni Bernaradini/Homero Freitas de Andrade
Origem: Literatura Italiana
ISBN: 9788520923849
Bibliografia do autor: Bàrnabo delle montagne, 1933; Il segreto del bosco vecchio (O segredo do bosque velho), 1935; Il deserto dei Tartari, 1940; I sette mesaggieri, 1942; La famosa invasione degli orsi in Sicilia, 1945; Il libro delle pipe, 1945; Paura ala Scala, 1949; In quel preciso momento, 1950; Il crollo della Baliverna, 1957; Sessanta racconti, 1958; Le storie dipinte, 1958; Esperimento di magia, 1958; Il grande ritratto, 1960; Egregio signore, siamo spiacenti di..., 1975; Un amore, 1963; Il capitano Pic e altre poesie, 1965; Scusi da che parte per Piazza Duomo?, 1965; Tre colpi alla porta, 1965; Il colombre, 1966; Presentazione a L'opera di Bosch, 1966; Due poemetti, 1967; Prefazione a R.James, 1967; Prefazione a W:Disney, Vita e dollari di Paperon de' Paperoni, 1968; La boutique del mistero, 1968; Poema a fumetti, 1969; Le notti difficili, 1971; I miracoli di Val Morel, 1971; Prefazione a Tarzan delle scimmie, 1971; Cronache terrestri, servizi giornalistici, a cura di Domenico Porzio, 1972; Congedo a ciglio asciutto di Buzzati, 1974; Romanzi e racconti, 1975; I misteri d'Italia, 1978; Teatro, 1980; Dino Buzzati al Giro d'Italia, 1981; Le poesie, 1982; 180 racconti, 1984; Il reggimento parte all'alba, 1985; Lettere a Brambilla, 1985; Il meglio dei racconti, 1990; Le montagne di vetro, 1990; Lo strano Natale di Mr. Scrooge e altre storie, 1990; Bestiario, 1991; Il buttafuoco, 1992; La mia Belluno, 1992; Il borghese stregato ed altri racconti, 1994. Teatro: Piccola passeggiata, 1942; La rivolta contro i poveri, 1946; Un caso clinico, 1953; Drammatica fine di un musicista, 1955; Sola in casa, 1958; Una ragazza arrivò, 1958; Le finestre, 1959; L'orologio, 1959; Un verme al ministero, 1960; I suggeritori, 1960; Il mantello, 1960; L'uomo che andrà in America, 1962; L'aumento, 1962; La colonna infame, 1962; Spogliarello, 1962; La telefonista, 1964; La famosa invasione degli orsi in Sicilia (representado em Milão em 1965); La fine del borghese, 1968.

Dino Buzzati Traverso nasceu San Pellegrino (Itália), em 16/11/1906 e faleceu em Milão, em 28/01/1972. Foi jornalista, escritor italiano de romances, teatro. Em 1924, ingressou na Universidade de Milão, onde curso Direito. Quando terminava seu curso, iniciou suas atividades jornalísticas no Corriere della Siera, ficando neste emprego durante toda a sua vida. É bastante difundida a tese de que sua carreira jornalística tenha influenciado diretamente sua atividade literária, dando-lhe um estilo objetivo e próximo da realidade, mesmo nos escritos nos quais se aproxima do absurdo. Durante a Segunda Guerra Mundial, serviu na África como jornalista da Marinha Italiana. Logo após, publicou sua obra O deserto dos tártaros, obtendo fama mundial.
Este O deserto dos tártaros é um clássico, indubitavelmente. Filiado à corrente literária que propõe uma narrativa cujos elementos constitutivos pertencem ao mundo do absurdo, a leitura da obra é angustiante. Ela me deixou ansioso em vários trechos. Apesar de ter fatos absurdos, desconcertantes, Dino Buzzati os descreve com riqueza de detalhes, como se estivesse tratando de coisas aceitáveis, corriqueiras.
Em muitos livros, realiza-se a catarse grega, isto é, uma espécie de depuração; seguimos o drama do personagem e depois nos advém o alívio. Não precisamos experimentar o drama em nossa vida, observamos tais acontecimentos na vida do personagem e, ao fim, o sentimento de empatia nos eleva. Não, entretanto, neste O deserto dos tártaros. Não há catarse. Ao término da leitura, fica-se com a amargura do personagem, sem remissão.
Certo Giovanni Drogo é designado para servir no Forte Bastiani, uma fortaleza de fronteira. Ela guarda a segurança das terras contra a invasão dos tártaros, que devem atravessar um deserto. Daí o nome da obra. Não obstante, a história não é sobre militarismo ou guerra.
O Forte Bastiani não é considerado importante, por um pequeno detalhe: ninguém acredita ser possível um ataque dos tártaros, tendo de atravessar um deserto inóspito. Ela se configura, então, como uma fortaleza protocolar, uma afirmação da autoridade. Tão desimportante é a construção que nem mesmo o comum dos habitantes de uma cidade próxima se lembram da existência dela:
“Da sombra acumulada aos pés da muralha surgiu então um homem, uma espécie de vagabundo e mendigo, com uma barba grisalha e um pequeno saco na mão. Na penumbra, contudo, não se distinguia bem, somente o branco de seus olhos emitia reflexos. Drogo fitou-o, reconhecido.
— O que está procurando o senhor? – perguntou.
— Procuro o forte. É este?
— Não existe mais forte aqui – disse o desconhecido, com voz afável. – Está tudo fechado, já faz uns dez anos que não há ninguém.
— E onde fica o forte, então? – perguntou Drogo, repentinamente irritado com aquele homem.
— Que forte? Aquele, talvez? – E o desconhecido estendia um braço para indicar alguma coisa.” (página 10)
Giovanni Drogo é um homem simples e acompanhamos sua trajetória; é um tenente e se apresenta, então, ao comando militar. Conhece a rotina do forte e, pouco a pouco, se integra a ela. E vai percebendo duas coisas: primeira, as pessoas que servem no forte vão se acomodando a ele e não desejam mais ir embora; segunda, ciclicamente, alguém diz ter identificado ao longe, no deserto, alguma movimentação do inimigo, o que poria em estado de atenção o destacamento do forte. Entretanto, tais avistamentos não se concretizam.
Os acontecimentos cíclicos marcam o romance. O ciclo das estações, que vão se sucedendo, o ciclo dos avistamentos, o ciclo da água que goteja na cisterna, inicialmente se tornando uma tortura para Drogo, no silêncio da noite. O madeirame do forte range quando se dilata sob o calor do verão ou quando se retrai, sob os rigores do inverno.
A certa altura, Giovanni Drogo vai passar um tempo com a família. Acentua-se a sensação do absurdo que é a vida no forte e é um ponto a mais para termos a percepção de que o forte significa muito mais do que uma mera construção militar:
“Não pense mais nisso, Giovanni Drogo, não se vier para trás, agora que chegou à borda do planalto e a estrada está para mergulhar no vale. Seria uma tola fraqueza. Você conhece, pedra por pedra, o forte Bastiani, certamente não corre o risco de esquecê-lo. O cavalo trota alegremente, o dia está bom, o ar, morno e leve, a vida à frente é longa, como que ainda por começar, que necessidade haveria de dar uma última olhada nas muralhas, nas casamatas, nas sentinelas de turno na borda dos redutos? Assim uma página lentamente é virada, passada para o outro lado, acrescenta-se a outras já findas, por hora é apenas uma leve camada; as que falta ler são, em comparação, um monte inesgotável. Mas é sempre uma outra página gasta, senhor tenente, uma porção de vida que se foi.” (página 110/111)
Drogo retorna, entretanto. A sua vida de antes da apresentação ao forte não tem mais significado; a sua própria casa se torna estranha a ele. O forte exerce uma estranha atração sobre Giovanni. Não lhe importa o absurdo de servir a uma fortaleza decrépita, quase inoperante porque antiga, defasada, contra um inimigo que não comparece.
E, num dos belos trechos desta obra, entre tantos outros, lemos o seguinte:
“Aos poucos a fé se enfraquecia. É difícil acreditar numa coisa quando se está sozinho e não se pode falar com ninguém. Justamente naquela época Drogo deu-se conta de que os homens, ainda que possam se querer bem, permanecem sempre distantes; que, se alguém sofre, a dor é totalmente sua, ninguém mais pode tomar para si uma mínima parte dela; que, se alguém sofre, os outros não vão sofrer por isso, ainda que o amor seja grande, e é isso o que causa a solidão da vida.” (páginas 144/145)
O trecho acima é fundamental para o entendimento do livro. Estamos lendo uma obra literária sobre o grande tema da solidão do Homem, mesmo em meio aos seus semelhantes. O forte nos dá uma amostragem da sociedade em que vivemos; ali, os soldados e oficiais, desejam ardentemente a tal invasão dos tártaros, cujo combate lhes trará glória, os tornará importantes. Dão os melhores anos de sua vida para este gran finale, que, afinal de contas, provavelmente não vai acontecer.
O famoso mal de siècle, o mal-estar da humanidade. A sociedade que começa a emergir do período de guerras mundiais, que nos promete o paraíso se todos participarmos da sua sustentação. Entretanto, a premiação é pífia e difusa, num mundo líquido (Bauman, obrigado), em que nada é aquilo que parece ser, tudo muda o tempo todo. Agimos com um cão correndo atrás de um naco de carne amarrado, numa extremidade, a uma vara e a vara, na outra extremidade, na própria coleira do cão. Nunca a alcançará.
Perturbador, sim, mas leitura obrigatória, pelo menos para aqueles que gostam ou sentem necessidade de reflexão. Na minha opinião, este é um livro que trafega no mesmo caminho de A fera na selva, de Henry James, Bartleby, O escriturário, de Herman Melville, Esperando Godot, de Samuel Beckett, A metamorfose, de Franz Kafka. Cada uma deles tem suas peculiaridades, os temas não são exatamente os mesmos, mas trabalham a percepção de um mundo absurdo. Em sentido amplo, são obras distópicas, embora se tenha convencionado a aplicação desta palavra – distópico – a obras de ficção científica que mostram uma visão pessimista de uma sociedade futura.
Para degustação final, outro belo trecho deste O deserto dos tártaros:
“À soleira estava sentada uma mulher, ocupada em tricotar uma meia, e a seus pés dormia, num rústico berço, uma criança. Drogo fitou espantado aquele sono maravilhoso, tão diferente do dos homens grandes, tão delicado e profundo. Não haviam nascido ainda naquele ser os sonhos turvos, a pequena alma vagava despreocupada, sem desejos ou remorsos, por um ar puro e calmo. Drogo permaneceu parado, admirando a criança adormecida, e uma aguda tristeza penetrava em seu coração. Tentou imaginar a si mesmo mergulhado no sono, um Drogo estranho que ele nunca pudera conhecer.” (página 167)
Curiosa aqui a presença de uma mulher tricotando uma meia, provavelmente para a criança. Uma construção possível é a da mulher que, ao pôr o filho no mundo, já começa a construir para ele os passos que fatalmente o levarão ao sofrimento de ser sozinho.
Pessimista, caro leitor, mas belo. Este O deserto dos tártaros é um livro que certamente revisitarei. Esquecê-lo, provavelmente, nunca mais.


quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Resenha nº 103 - A Metamorfose, de Franz Kafka

A Metamorfose Título original: Die Verwandlung
Título em português: A Metamorfose
Autor: Franz Kafka
Tradutor: Marcelo Backes
Editora: Folha de São Paulo (em parceria com a LP&M)
Copyright: 2016
ISBN: 978-85-7949-282-2
Bibliografia: Romances – O Desaparecido, 1912; O Processo, 1914; O Castelo, 1922. Contos – Na Colônia Penal, 1914; Um Médico Rural, 1919; Um Artista da Fome, 1922; A Grande Muralha da China, 1918. Novela – A Metamorfose, 1912.

Franz Kafka nasceu em 03/07/1883, em Praga, na República Tcheca e morreu em 03/06/1924, na Áustria. Pertencia a uma família judia de classe média, morando em Praga, à época pertencente ao famoso Império Austro-Húngaro. Os habitantes daquela capital falavam, em sua maioria, o idioma tcheco e a outra parte dela, o alemão. Cada um destes grupos idiomáticos tentava a supremacia, pois trabalhavam para fortalecer a identidade nacional.
Kafka cursou Direito e logo conseguiu emprego numa companhia de seguros. No seu tempo livre, escrevia contos e por toda a sua vida reclamou muito do pouco tempo para cumprir o que ele chamou de seu “chamado”. A ocupação com o seu ganha-pão não lhe deixava tempo suficiente para se dedicar à sua obra. Escreveu centenas de cartas para seus familiares e amigos mais próximos, como seu pai, sua noiva Felice Bauer e sua irmã mais nova, Ottla Kafka.
A relação turbulenta com o pai, a condição de ser judeu são condições normalmente apontadas como influência sobre as características de suas histórias, onde prevalece a estranheza, o absurdo, o labiríntico, surreal. O adjetivo kafkiano, para dizer destas características foi criado.
A Metamorfose, livro que acabei de ler, tem um dos inícios mais impressionantes e sensacionais de quantos eu tenha lido:
“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobe suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco sua cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto de seu corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos.” (página 5).
O texto segue, num tom de completo absurdo. Kafka, ao invés de focar na condição estranha de Gregor, em nenhum momento nos dá qualquer explicação sobre o que teria motivado tal transformação. Ao contrário, ele vai tratar a metamorfose abjeta do seu personagem como algo comum, possível de acontecer a qualquer um de nós. O próprio Gregor, logo depois de verificar sua nova figura, procura se adaptar a ela, tentando dominar suas pernas e seu abdômen em forma de couraça.
Ele trabalhara num pequeno negócio, como caixeiro-viajante; nunca se atrasara ou faltara ao serviço. Não adoecia. E assim, quando sua família percebe que Gregor ainda não se aprontou para ir trabalhar, começa a se preocupar. Até seu gerente comparece, pois, naquele horário, ele deveria ter viajado e estar muito distante dali. A única pessoa que vai cuidar dele, limpar o quarto, alimentá-lo é sua irmã mais nova, Grete.
O processo de mudança de homem em animal continua. Logo Samsa não se alimenta mais como um ser humano, mas começa a demonstrar preferência por alimentos estragados, não frescos, chegando até mesmo a consumir dejetos, lixo. Adquire nova habilidade e aprende a subir pelas paredes e andar pelo teto:
“Gostava em particular de ficar pendurado no teto; era bem diferente do que ficar deitado sobre o piso; conseguia-se respirar com mais facilidade; uma leve vibração percorria o corpo; e na distração quase feliz em que Gregor se encontrava lá em cima às vezes acontecia que, para sua própria surpresa, ele se deixava cair estalando no chão. Mas agora, naturalmente, ele já tinha domínio de seu corpo, bem diferente de antes, e não se danificava mesmo numa queda tão grande.” (página 39)
A família Samsa é caracterizada como irremediavelmente burguesa; Samsa a carrega nas costas com seu trabalho aviltante, como fica explícito no trecho:
“Mas em volta estava tudo tão silencioso, ainda que, com certeza, a casa não estivesse vazia. “Que vida sossegada que a família não levava”, disse Gregor a si mesmo e sentiu, enquanto fixava os olhos à frente de si na escuridão, um grande orgulho pelo fato de ter conseguido dar a seus pais e sua irmã uma vida dessas numa casa tão bonita.” (página 28)
Em uma outra passagem, fica bastante evidente o conflito edipiano de Gregor Samsa em relação a seus pais:
“Com o último olhar ainda viu a porta de seu quarto ser escancarada e a mãe correndo à frente da irmã, gritando em desespero, em roupas de baixo, uma vez que a irmã tivera de despi-la a fim de que ela respirasse com mais liberdade enquanto estava desmaiada; viu também como a mãe correu em direção ao pai a seguir, enquanto as saias despertadas caíam uma a uma no caminho, e como ela, tropeçando sobre as saias, caiu sobre o pai, abraçando-o, em completa união com ele –, mas nesse momento a vista de Gregor já falhava – implorando  com as mãos sobre a nuca do pai, para que ele poupasse a vida de Gregor.” (página 48)
O conflito de Édipo se traduz da peça Édipo Rei, do grego Sófocles, em que o filho cumpre seu destino de matar o pai para se casar com Jocasta, sua própria mãe. E a referência mitológica se faz porque Samsa observa a mãe quase nua, caindo sobre o pai e abraçando-o “em completa união com ele”. Neste momento, a vista de Gregor começa a falhar – ele não pode ver o ato de união entre o pai e a mãe - na peça do grego, Édipo vaza seus próprios olhos.
A Metamorfose é uma novela pequena, a edição que tenho, da Coleção Folha Grandes Nomes da Literatura, tem apenas 71 páginas, texto integral. Mas é uma história rica em referências de toda sorte. Escrita com um cuidado artesanal na composição dos elementos sintáticos/semânticos, é uma leitura para reflexão. Kafka não é um autor fácil.
A transformação de Samsa em inseto asqueroso é uma grande metáfora para a incomunicabilidade entre os seres – principalmente, na história, entre os familiares –, a absurda subserviência do ser ao sistema dominante (mesmo transformado Gregor continua a se preocupar com seu emprego), uma crítica aos valores burgueses e alienantes.
A edição traz várias notas de pé de página, esclarecedoras, que nos enriquecem a leitura consideravelmente. Apontam, às vezes, concomitâncias com outras grandes obras, como O Duplo, do russo Dostoiévski. É que certos temas, certas relações são recorrentes em literatura, como de resto, na arte.
Marc Chagall, por exemplo, foi um pintor que se serviu muito, para compor parte de sua obra, dos temas, situações e personagens de outro grande russo, Nikolai Gógol, de sua obra Almas Mortas.
Absolutamente imperdível a leitura atenta deste A Metamorfose, do genial Franz Kafka. Se você, leitor, sente-se disposto a enfrentar uma leitura que, provavelmente, irá marcá-lo pela originalidade, pela competência com que os temas são tratados, leia este livro. Se já o leu alguma vez, disponha-se a enfrentá-lo outra vez.

Afinal, nunca lemos o mesmo livro duas vezes. A Metamorfose é um destes clássicos do século XX, tão citados que, ao compulsá-lo, temos a impressão de já conhecermos sua história; nada mais enganoso. O subtexto, as entrelinhas, o sugerido, torna a leitura desta obra um inesgotável prazer estético.