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quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Resenha nº 103 - A Metamorfose, de Franz Kafka

A Metamorfose Título original: Die Verwandlung
Título em português: A Metamorfose
Autor: Franz Kafka
Tradutor: Marcelo Backes
Editora: Folha de São Paulo (em parceria com a LP&M)
Copyright: 2016
ISBN: 978-85-7949-282-2
Bibliografia: Romances – O Desaparecido, 1912; O Processo, 1914; O Castelo, 1922. Contos – Na Colônia Penal, 1914; Um Médico Rural, 1919; Um Artista da Fome, 1922; A Grande Muralha da China, 1918. Novela – A Metamorfose, 1912.

Franz Kafka nasceu em 03/07/1883, em Praga, na República Tcheca e morreu em 03/06/1924, na Áustria. Pertencia a uma família judia de classe média, morando em Praga, à época pertencente ao famoso Império Austro-Húngaro. Os habitantes daquela capital falavam, em sua maioria, o idioma tcheco e a outra parte dela, o alemão. Cada um destes grupos idiomáticos tentava a supremacia, pois trabalhavam para fortalecer a identidade nacional.
Kafka cursou Direito e logo conseguiu emprego numa companhia de seguros. No seu tempo livre, escrevia contos e por toda a sua vida reclamou muito do pouco tempo para cumprir o que ele chamou de seu “chamado”. A ocupação com o seu ganha-pão não lhe deixava tempo suficiente para se dedicar à sua obra. Escreveu centenas de cartas para seus familiares e amigos mais próximos, como seu pai, sua noiva Felice Bauer e sua irmã mais nova, Ottla Kafka.
A relação turbulenta com o pai, a condição de ser judeu são condições normalmente apontadas como influência sobre as características de suas histórias, onde prevalece a estranheza, o absurdo, o labiríntico, surreal. O adjetivo kafkiano, para dizer destas características foi criado.
A Metamorfose, livro que acabei de ler, tem um dos inícios mais impressionantes e sensacionais de quantos eu tenha lido:
“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobe suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco sua cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto de seu corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos.” (página 5).
O texto segue, num tom de completo absurdo. Kafka, ao invés de focar na condição estranha de Gregor, em nenhum momento nos dá qualquer explicação sobre o que teria motivado tal transformação. Ao contrário, ele vai tratar a metamorfose abjeta do seu personagem como algo comum, possível de acontecer a qualquer um de nós. O próprio Gregor, logo depois de verificar sua nova figura, procura se adaptar a ela, tentando dominar suas pernas e seu abdômen em forma de couraça.
Ele trabalhara num pequeno negócio, como caixeiro-viajante; nunca se atrasara ou faltara ao serviço. Não adoecia. E assim, quando sua família percebe que Gregor ainda não se aprontou para ir trabalhar, começa a se preocupar. Até seu gerente comparece, pois, naquele horário, ele deveria ter viajado e estar muito distante dali. A única pessoa que vai cuidar dele, limpar o quarto, alimentá-lo é sua irmã mais nova, Grete.
O processo de mudança de homem em animal continua. Logo Samsa não se alimenta mais como um ser humano, mas começa a demonstrar preferência por alimentos estragados, não frescos, chegando até mesmo a consumir dejetos, lixo. Adquire nova habilidade e aprende a subir pelas paredes e andar pelo teto:
“Gostava em particular de ficar pendurado no teto; era bem diferente do que ficar deitado sobre o piso; conseguia-se respirar com mais facilidade; uma leve vibração percorria o corpo; e na distração quase feliz em que Gregor se encontrava lá em cima às vezes acontecia que, para sua própria surpresa, ele se deixava cair estalando no chão. Mas agora, naturalmente, ele já tinha domínio de seu corpo, bem diferente de antes, e não se danificava mesmo numa queda tão grande.” (página 39)
A família Samsa é caracterizada como irremediavelmente burguesa; Samsa a carrega nas costas com seu trabalho aviltante, como fica explícito no trecho:
“Mas em volta estava tudo tão silencioso, ainda que, com certeza, a casa não estivesse vazia. “Que vida sossegada que a família não levava”, disse Gregor a si mesmo e sentiu, enquanto fixava os olhos à frente de si na escuridão, um grande orgulho pelo fato de ter conseguido dar a seus pais e sua irmã uma vida dessas numa casa tão bonita.” (página 28)
Em uma outra passagem, fica bastante evidente o conflito edipiano de Gregor Samsa em relação a seus pais:
“Com o último olhar ainda viu a porta de seu quarto ser escancarada e a mãe correndo à frente da irmã, gritando em desespero, em roupas de baixo, uma vez que a irmã tivera de despi-la a fim de que ela respirasse com mais liberdade enquanto estava desmaiada; viu também como a mãe correu em direção ao pai a seguir, enquanto as saias despertadas caíam uma a uma no caminho, e como ela, tropeçando sobre as saias, caiu sobre o pai, abraçando-o, em completa união com ele –, mas nesse momento a vista de Gregor já falhava – implorando  com as mãos sobre a nuca do pai, para que ele poupasse a vida de Gregor.” (página 48)
O conflito de Édipo se traduz da peça Édipo Rei, do grego Sófocles, em que o filho cumpre seu destino de matar o pai para se casar com Jocasta, sua própria mãe. E a referência mitológica se faz porque Samsa observa a mãe quase nua, caindo sobre o pai e abraçando-o “em completa união com ele”. Neste momento, a vista de Gregor começa a falhar – ele não pode ver o ato de união entre o pai e a mãe - na peça do grego, Édipo vaza seus próprios olhos.
A Metamorfose é uma novela pequena, a edição que tenho, da Coleção Folha Grandes Nomes da Literatura, tem apenas 71 páginas, texto integral. Mas é uma história rica em referências de toda sorte. Escrita com um cuidado artesanal na composição dos elementos sintáticos/semânticos, é uma leitura para reflexão. Kafka não é um autor fácil.
A transformação de Samsa em inseto asqueroso é uma grande metáfora para a incomunicabilidade entre os seres – principalmente, na história, entre os familiares –, a absurda subserviência do ser ao sistema dominante (mesmo transformado Gregor continua a se preocupar com seu emprego), uma crítica aos valores burgueses e alienantes.
A edição traz várias notas de pé de página, esclarecedoras, que nos enriquecem a leitura consideravelmente. Apontam, às vezes, concomitâncias com outras grandes obras, como O Duplo, do russo Dostoiévski. É que certos temas, certas relações são recorrentes em literatura, como de resto, na arte.
Marc Chagall, por exemplo, foi um pintor que se serviu muito, para compor parte de sua obra, dos temas, situações e personagens de outro grande russo, Nikolai Gógol, de sua obra Almas Mortas.
Absolutamente imperdível a leitura atenta deste A Metamorfose, do genial Franz Kafka. Se você, leitor, sente-se disposto a enfrentar uma leitura que, provavelmente, irá marcá-lo pela originalidade, pela competência com que os temas são tratados, leia este livro. Se já o leu alguma vez, disponha-se a enfrentá-lo outra vez.

Afinal, nunca lemos o mesmo livro duas vezes. A Metamorfose é um destes clássicos do século XX, tão citados que, ao compulsá-lo, temos a impressão de já conhecermos sua história; nada mais enganoso. O subtexto, as entrelinhas, o sugerido, torna a leitura desta obra um inesgotável prazer estético.

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