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sexta-feira, 10 de abril de 2020

Resenha nº 156 - Êxtase da Transformação, de Stefan Zweig


Êxtase da Transformação - Stefan ZweigTítulo Original: Rausch der Verwandlung
Título em português: Êxtase da Transformação
Autor: Stefan Zweig
Tradutor: Kurt Jahn
Editora: TAG/Cia das Letras
Copyright: 2019
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-359-3290-4
Origem: Literatura austríaca
Gênero: Romance
Bibliografia do autor: Cordas de prata (Poemas) 1901; A filosofia de Hippolyte Taine (Tese de Doutorado) 1904; O Amor de Erika Ewald (Contos) 1904; As Primeiras Grinaldas (Poemas) 1906; Tersites (drama teatral em três atos) 1907; Emile Verhaeren 1910; Segredo Queimado 1911; Primeira experiência. Quatro histórias de mundo infantil 1911; A casa junto ao mar. Um drama em duas partes (Em três atos) 1912; O comediante se virou. Um jogo do rococó alemão 1913; Jeremias - Poema dramático em nove cenas 1917; Memórias de Emile Verhaeren 1917; O Coração da Europa - Uma visita à Cruz Vermelha de Genebra 1918; Lenda de uma vida (Drama teatral em três atos) 1919; Viagens - Paisagens e cidades 1919; Três mestres: Balzac - Dickens – Dostoiévski 1920; Marceline Desbordes-Valmore, A imagem de um poeta vivo 1920; Romain Rolland. O homem e a obra' 1921; Carta de uma desconhecida 1922; Amok. Histórias de paixão 1922; Os olhos do irmão eterno. Uma lenda 1922; Frans Masereel (com Arthur Holitscher) 1923; Os poemas reunidos 1924; A monotonia do mundo (Ensaio)1925; Ansiedade 1925; A batalha com o demônio, Hölderlin - Kleist – Nietzsche 1925; Ben Johnson ‘Volpone’. Uma comédia sem amor em três atos (Livremente editado por Stefan Zweig. Com seis pinturas de Aubrey Beardsley) 1926; O fugitivo. Episódio do Lago Genebra 1927; Adeus a Rilke. Um discurso 1927; A confusão de emoções. Três novelas (Vinte e Quatro Horas na Vida de Uma MulherO Naufrágio de um Coração e A Confusão de Sentimentos) 1927; Grandes momentos da humanidade. Cinco miniaturas históricas 1927; Três poetas de sua vida. Casanova - Stendhal – Tolstoi 1928; Rachel pede a Deus 1928; Joseph Fouché. Retrato de uma pessoa política 1929; O cordeiro do pobre. Tragicomédia em três atos 1929; A cura através do Espírito. Mesmer - Mary Baker Eddy e Freud 1931; Maria Antonieta. Retrato de um personagem central 1932; Triunfo e Tragédia de Erasmo de Rotterdam 1934; A Mulher Silenciosa. Ópera cômica em três atos 1935; Mary Stuart 1935; 24 horas na vida de uma mulher 1935; Pequenas Histórias Selecionadas – ‘A cadeia’ e ‘Caleidoscópio’ 1936; Castellio ou Contra Calvino. Uma consciência contra a violência 1936; O candelabro enterrado 1937; Encontros com pessoas, livros e cidades 1937; Fernão de Magalhães. O homem e sua ação (Biografia) 1938; Cuidado da Piedade 1939; Brasil, País do Futuro (Ensaio) 1941; Histórias de Xadrez 1942; Tempo e lugar. Ensaios e Palestras selecionados - 1904-1940 1943; O Mundo que Eu Vi - Memórias de um Europeu 1942; Amerigo. A história de um erro histórico 1944; Lendas de Estocolmo 1945; Balzac. Romance de sua vida 1946; Fragmentos de um romance 1961; Ruído da transformação 1982.

Êxtase da Transformação: um livro que começa como um conto de fadas, apesar de escrito após a segunda guerra mundial. A leitura fluía e eu pensava cá com os meus botões, “este autor vai mudar o tom da narrativa a qualquer momento”. Minha experiência de leitor me dizia, me gritava isto. Pouco a pouco, a história de Christine Hoflehner Kleinreifling se desenrola, na Áustria. Está referida  a derrota de Austerlitz, sofrida por Francisco José, imperador. Não consigo entender como um escritor do quilate de Stefan Zweig pôde estar tanto tempo no ostracismo. Não aceito a falta de oportunidade de lê-lo. ainda mais – pelo menos isto eu sabia – por ele ter morado no Brasil, mais precisamente na cidade de Petrópolis. Êxtase da Transformação é um daqueles grandes romances, devia frequentar uma destas listas de “nunca deixar de ler antes de morrer.

Stefan Zweig foi um escritor austríaco extremamente prolífico. Basta olhar-se para sua bibliografia acima; este Êxtase da Transformação foi um dos seus últimos trabalhos. Nosso autor nasceu na belíssima cidade de Viena (Áustria), em 28/11/1881 e morreu em Petrópolis (Brasil), em 1942.

Zweig era pacifista de carteirinha, defendia o fim da Segunda Guerra Mundial e a unificação da Europa; foi amigo de outra celebridade, o francês Romain Rolland. Ele fora muito bem recebido pelo povo e pela crítica brasileiros, mas por conta de sua bagagem liberal e antinazista, foi visto com certa reserva pelo então Presidente Getúlio Vargas, um homem de fortes tendências autoritárias. Após três viagens ao Brasil, ele e a esposa passaram a residir na cidade carioca de Petrópolis. Chamou o Brasil de “país do futuro” e esta alcunha logo pegou. Entretanto, sob forte depressão, acabou por se suicidar. A notícia foi um choque para os brasileiros e para o mundo, pois Zweig era um autor muito conhecido.

Uma das mais incríveis introduções que já tive a oportunidade de ler. Vejam como ele descreve o ambiente de trabalho de Christine, sua protagonista, em uma simples agência de correio em Kleinreifling, “uma insignificante aldeia não longe de Krems, a umas duas horas de trem de Viena”:
“Um livro de registro dura um mês, uma lâmpada três meses, um calendário um ano. À cadeira de palha foi atribuída uma duração de três anos antes que ela seja renovada, àquele alguém que passa a vida nela sentado, trinta anos de serviço ou 35, depois sentam um novo alguém na mesma cadeira. Nesse último não há diferença.
“Na sala de repartição de Kleinreifling, uma insignificantes aldeia não longe de Krems, a umas duas horas de trem de Viena, aquela peça substituível da decoração que se chama “funcionário” pertence ao sexo feminino, e sua designação oficial, já que esse posto pertence a uma classe de baixa remuneração, é de assistente postal. Dela se vislumbra, através da vidraça, pouco mais que o perfil simpático e discreto de uma moça, os lábios um pouco finos, as faces um pouco pálidas, um pouco de cinza sob as sobrancelhas. À note, quando ela precisa acender a lâmpada elétrica que lhe acentua as feições, um olhar mais atento perceberá na testa e nas têmporas alguns sulcos e rugas.” (páginas 16/17)
Stefan descreve com pormenores perfeccionistas os utensílios, os objetos constantes da sala onde trabalha a moça, incluindo-a entre eles: peça substituível da decoração. Para nosso escritor, está claro, o trabalho, por si, não dignifica o homem, como muito se diz por aí. Christine é reduzida a um objeto, ou seja, sem liberdade, sem vida. A descrição de sua rotina vai seguindo o mesmo tom.

A assistente postal ganha pouquíssimo, tem uma mãe doente, de quem cuida e com quem mora, sendo solteira.  Nada digno de nota acontece naquela pequena e misérrima localidade. O texto, muito focado incialmente na descrição torna a leitura desta primeira parte um pouco arrastada; compensa, entretanto, pelo perfeito domínio de técnica e pela inteligência utilizada pelo autor ao realizá-la.

A vida de Christine começa a mudar quando lá mesmo, na agência postal, ela recebe um telegrama – fato quase inusitado na calmaria da pequena sala – endereçado a ela:
“De repente: Taque! Ela leva um susto. E de novo, mais forte, mais metálico, mais impaciente: Taque, taque, taque. O aparelho Morse martela com insistência, o mecanismo de relógio matraqueia: um telegrama – hóspede raro em Kleinreifling – quer ser recebido com respeito. A assistente postal impetuosamente se livra da sonolenta sensação de preguiça, corre à mesa e liga a fita. Mas, assim que ela decifra as primeiras palavras da escrita que corre em volta, o sangue lhe sobe até a raiz dos cabelos. Pois é a primeira vez, desde que serve nessa agência, que ela vê seu próprio nome num despacho telegráfico. Ela lê uma, duas, três vezes, a mensagem que agora já foi martelada até o fim, sem entender o sentido. Mas como? O quê? Quem é que lhe telegrafa de Pontresina?” (página 18)
E eis que a acomodada Christine, se vê, de uma hora para outra, a bordo de um trem, em uma viagem para a tal cidade, nos Alpes suíços. Um verdadeiro éden com o qual a moça jamais poderia sonhar. Mas os édens podem esconder muita coisa estranha ou mesmo maléfica, como nos diz o mito da criação bíblica. Adão e Eva foram, afinal, seduzidos pela serpente e violaram a única regra edênica que não podiam violar.

As férias de Christine são do tipo “tudo pago”, incluindo o hotel. Portando sua melhor roupa, ainda assim, não condiz com o apuro do lugar. Pontresina é um lugar para ricos. Sua chegada é descrita:
“Excitada, a face quente e corada colada ao caixilho da janela com apaixonada curiosidade, nesse primeiro momento de revelação encontra-se todo o tempo diante da paisagem uma pessoa alheada de si própria. Nenhum pensamento sonda o passado. Esqueceu-se da mãe, do emprego, da aldeia, esqueceu-se do mapa na bolsa, desenhado com tanto carinho, e que poderia lhe revelar o nome de cada um dos  picos e cada um dos regatos que com apressado ímpeto se lançam no vale, esqueceu-se do próprio eu de ontem.” (página 44)
Não obstante, a tia Claire, “em outros tempos chamada simplesmente Klara”, como nos diz o narrador em terceira pessoa, cuida de tudo, ao perceber que sua protegida não passa de uma simplória para os padrões daquela estação de lazer. Anthony – seu marido – concorda com tudo, um pouco penalizado pelo completo despreparo demonstrado por Christine.

Após o banho, veste o maravilhoso vestido que a tia lhe emprestara e eis a cena na qual ela, transformada, vê sua imagem refletida no espelho pela primeira vez:
“Levanta os olhos, e então leva um susto, um susto tão grande que sem querer a empurra um passo para trás. O que é isto? Quem é esta esbelta e nobre dama, de busto inclinado para trás, a boca entreaberta, os olhos arregalados, que a encara com sincera e iniludível surpresa? É ela própria? Não é possível! Ela não o diz, não o pronuncia conscientemente, mas involuntariamente a palavra não pronunciada lhe move os lábios. E, é um milagre: também a imagem no espelho move os lábios.” (página 63)
Naquele meio, a fascinada Christine custa a perceber que tudo se regula pela procedência nobre ou rica, que se media pela aparência. Não demora muito e a origem pobre de Christine é do conhecimento de toda aquela sociedade, como se torna claro nesta passagem:
“Assim que a porta se fecha às suas costas, as forças tão custosamente reunidas abandonam Christine. Como um animal ferido pelo caçador ainda cambaleia alguns passos e se mantém de pé só pelo movimento, para depois cair com os membros inertes, assim ela se arrasta apoiando-se na parede até o seu quarto, onde desaba na poltrona, rígida, fria, imóvel.” (páginas 139/140)
Stefan Zweig expõe, neste Êxtase da Transformação, a podridão de uma sociedade que vive sua abastança em um mundo que se esforça como pode para se recompor, diante dos horrores da segunda guerra mundial.

Christine nunca mais será a mesma. Ela agora tem consciência da sua miséria, gritaram-lhe ao rosto sua equiparação aos objetos da sala do correio onde trabalho e que tão laboriosamente o autor a colocara. Não posso, entretanto, abordar mais nada sob pena de arruinar sua leitura, caro leitor, caso se disponha a ler o livro.

Comento apenas que o final é surpreendente. Mais do que isso, já que o fim do romance se afunila para duas propostas. O desenlace incomoda. Há um estranhamento porque, no final das contas, esta protagonista faz considerações pouco esperadas para alguém em sua situação, diante daquelas duas possibilidades. Mais que isso, não digo.

Êxtase da Transformação. Primeiro livro que leio deste autor e desejaria ler outro. Indiscutível, um escritor e obra que valem a pena se conhecer. É o último romance de Zweig; logo depois, ele se suicida na cidade carioca de Petrópolis, para onde se exilara. Tal ato extremo é perpetrado pelo desgosto com o desenrolar do conflito mundial. Naquele momento, parecia a Stefan que a Alemanha de Hitler ganharia a guerra; ele não o podia suportar, pacifista que era.

O tom do livro é pessimista. Mas parece um pessimismo conformado, de alguém que balança negativamente a cabeça diante do que vê – e simplesmente constata – a humanidade é mesmo assim, hipócrita.

Como disse, Êxtase da Transformação é uma leitura incômoda. Denúncia, libelo contra o egoísmo, o jogo do poder. Mesmo assim, me deixou com vontade de voltar a esta leitura em algum outro momento e aí se comprova o mérito do romance.