Título
Original: Dresden
Autor:
Frederick Taylor
Tradutor:
Vítor Paolozzi
Copyright:
2004
ISBN:
978-85-01108-7
Número
de páginas: 587
Bibliografia do autor: Auf Wiedersehen, 1983; Walking
Shadows, 1984; The Kinder Garden,
1990; The Peacebrokers, 1992. Não
ficção: Dresden: Tuesday, 13 February
1945, 2004; The Berlin Wall: 13
August 1961; Exocising Hitler: The
Occupation and Denazification of Germany, 2011; The Dowfall of Money: The Germany’s Hyprinflation and Destruction of The Middle Class, 2013.
O ônibus da excursão,
vindo de Berlim, após uma curva suave, passou em meio a prédios antigos. Seguiu
a rua de acesso a uma praça ampla, Theaterplatz (Praça do Teatro), onde ao
fundo está a Semperoper, ultrapassou um restaurante e pizzaria do lado direito
e estacionou em frente a um prédio antigo. Nosso guia nos disse que aquela
cidade alemã – Dresden – fora completamente destruída pelo fogo dos aliados no
mês de fevereiro de 1945. Nós, turistas, não podíamos fazer ideia, nem
aproximada, da realidade dos fatos ali acontecidos, naqueles fatídicos dias,
entre 13 e 15 de fevereiro de 1945. Dresden – também conhecida pelo apelido
merecido de “Florença do Elba” – erguia-se imponente em sua beleza plástica,
cidade barroca, com belas fachadas dos prédios. O palácio Zwinger se destacava
na paisagem, com sua área interna, intitulada “A Fonte do Banho das Ninfas”. Nada
nos fazia lembrar os horrores da Segunda Guerra Mundial; as construções em
arenito se apresentavam, em muitos casos, encardidas, escurecidas, e o guia nos
disse que, por ser o arenito material muito poroso, a poluição se lhe
entranhara. Verdade, mas não toda a verdade; vim a saber depois: pedras, blocos calcinados pelo
fogo do incêndio ocasionado pelo bombardeio lhes emprestavam também a cor
escura. Dresden, a bela e cultural capital da Saxônia alemã, a que fora
conhecida como “Florença do Elba”, havia sido reconstruída, recuperando algumas
de suas mais belas expressões arquitetônicas.
Frederick Taylor (não confundir
com Frederick Winslow Taylor, pai do taylorismo) nasceu em Aylesbury, Buckinghamshire,
Inglaterra. Frequentou a escola local e a Aylesbury Grammar School. Em 1967,
foi para a Universidade de Oxford estudar História e Línguas Modernas (Alemão).
Fez pós-graduação na Universidade de Sussex, onde obteve uma bolsa de estudos
pela Volkswagen e trabalhou na Alemanha do Leste e do Oeste, pesquisando uma
tese sobre a extrema-direita germânica antes de 1918. Desde então, ele trabalha
como editor, tradutor de ficção e não ficção, romancista e roteirista. Ele traduziu
e editou O Diário de Goebbels 1939-1941 como um dos muitos trabalhos
de divulgação histórica voltados para o público.
O trecho acima, em itálico, expõe
minhas primeiras impressões de Dresden, quando de uma viagem de turismo em 2014.
A excursão ao leste europeu me deixou fortes impressões e, a partir daí,
passei a pesquisar sobre os países componentes da região. Descobri muito: uma
cultura interessante, uma história intrigante – em que se sobressaía o antigo Império
Austro-Húngaro e suas tramas – e uma literatura de primeiríssima qualidade,
felizmente representada por edições no Brasil.
O livro Dresden, objeto desta resenha, pertence à categoria dos
calhamaços e o texto de Frederick Taylor é preciso, cheio de fatos e documentos
pesquisados com rara disposição e é, também, uma narrativa fluente e sensível,
na qual fica extremamente clara a condenação do autor à tragédia ocorrida ali.
E – o que não é pouco – é um livro capaz de pôr um ponto final nas especulações
sobre ter sido o ataque uma barbárie gratuita (barbárie o foi, como o fora
também a ação alemã na guerra, mas não gratuita) contra uma cidade inocente.
Produto em parte de desconhecimento sobre o que representava Dresden para o
esforço de guerra alemão, além de seu aspecto cultural, em parte pela
propaganda habilmente maliciosa de Goebbels – Ministro da Propaganda de Hitler.
O texto de Taylor tem trechos
extremamente técnicos; expõe dados, planilhas das incursões da RAF – Royal Air
Force – sobre a cidade às margens do Rio Elba; naturalmente, há um motivo para
que o autor faça isso, tão minuciosamente: desfazer os enganos sobre Dresden
ter sido atacada sem motivo, como se unicamente fosse uma vingança pelo ataque
alemão à cidade britânica de Coventry. Opto conscientemente por fornecer alguns
dados extraídos do livro Dresden, mas
o que me orienta nesta resenha não são os dados estatísticos do conflito, mas a
sua dimensão humana.
Dresden teve sua fundação com
base num povoado de origem eslava, de nome Drezdane e começou a ser germanizada
a partir do século XIII. Ao longo de sua história, sofreu outros incêndios, um
deles perpetrado pelos nazistas, destruindo a sinagoga durante a famosa “Noite
dos Cristais”, em 09/11/1938.
Taylor nos dá uma ideia da
pujança da cidade, à página 58:
“O sutiã foi inventado em Dresden pela Fräulein Christine Hardt em 1889. (De forma ainda mais curiosa, o primeiro e último gauleiter (líder de província) da Saxônia nazista foi um fracassado fabricante de lingerie). A cidade também podia proclamar ter sido o primeiro lugar na Europa a fabricar cigarros (no começo manualmente e depois com máquinas), filtro de café, saquinho de chá, pasta de dente em tubo (“Chlorodont”) – e preservativo de látex. Ah, e tornou-se um grande centro das indústrias de máquinas fotográficas e de escrever. A clássica e portátil máquina datilográfica Erika, de Seidel & Naumann ganhou fama mundial. Carl Zeiss pode ter estabelecido suas lentes e espelhos especiais em Jena, mas, na hora de produzir câmeras para o público, foram dedos ágeis e olhos treinados de milhares de trabalhadores de Dresden que ganharam sua confiança. Muitas outras companhias ergueriam fábricas de câmeras em Dresden, não apenas Zeiss, tornando-a a mais importante indústria individual da cidade. ”
Acrescente-se a essas indústrias
a fábrica de porcelana em Meissen (cidade a 25 km de Dresden), rivalizando seu produto com as marcas chinesas. Toda esta atividade industrial pouco conhecida foi
adaptada ou transformada para produzir peças necessárias aos aviões e
armamentos. Por exemplo, a Carl Zeiss passou a fabricar lentes para a mira das
armas utilizadas pelos soldados alemães.
Na noite de 14 de novembro de
1940, a Luftwaffe – Força Aérea da Alemanha – com 515 bombardeiros, fez um
ataque à cidade de Coventry, bem ao sul da Inglaterra, utilizando-se de sinais
luminosos lançados por paraquedas, com o fito de marcar o alvo. Cilindros
incendiários, à base de fósforo, foram jogados sobre o alvo. Quando estavam
caindo, tais cilindros emitiam uma chuva de fagulhas, espalhando incêndio por
todos os lados. Logo depois, vieram as bombas de alto poder explosivo. O ataque
atingiu seu máximo por volta da meia-noite. Embora a destruição tenha sido
intensa, “apenas” 568 civis morreram. A Luftwaffe, entretanto, tinha limitações
e só podia realizar incursões por etapas, pois os aviões tinham de voltar à
base, reabastecer e retomar o ataque.
Naquele momento, a Alemanha
possuía uma Força Aérea muito superior à dos aliados e essa supremacia desequilibrava
francamente as coisas para os alemães. São figuras importantes, do lado inglês,
Winston Churchill e o mal-humorado major-brigadeiro Sir Arthur Travers Harris. Nas
mãos de Harris estavam as decisões operacionais da RAF – Royal Air Force. E ele
era partidário do arrasamento sistemático das cidades alemãs, como forma de
lhes abater o moral.
Os fatos seguem, num crescendo
trágico. O esforço britânico logo consegue produzir aviões melhores,
bombardeiros de alta carga de destruição, apelidados de “pesadões” e, junto com
os aliados americanos, começam a virar o jogo na cena da guerra. Entra no
cenário a tal “guerra moral”, em que se procura infringir derrotas vexatórias
ao lado inimigo, com o propósito de tirar o ânimo combativo dos soldados.
Dresden, bem como algumas outras
localidades alemãs, ainda não havia sido alvo de qualquer tentativa de ataque
sistemático. Não obstante, longe dos olhos do inimigo, o alto comando britânico
já selara o destino de Dresden. Era apenas uma questão de momento certo e
condições meteorológicas apropriadas. A população dresdense não podia conceber
um ataque à cidade, em parte por ela estar muito distante da Inglaterra e em
parte, pelo convencimento de serem um oásis em meio à guerra. Desta forma, a
cidade se descuidou; as autoridades não construíram abrigos antiaéreos
eficientes, não havia bateria antiaérea. Muitos ingleses e americanos haviam
estudado nas universidades de Dresden, o que contribuiu para aquele bem-estar dresdense em relação ao inimigo.
Quando o ataque britânico se
tornou visível, pegou uma cidade completamente desprevenida. Iniciou-se às
12h35 de 13/02/1945:
“Tudo começou em poucos minutos, com as bombas sendo jogadas entre 12h35 e 12h40. As fotos da Força Aérea dos EUA remanescentes mostram marcadores de alvo ainda em queda e bombas explodindo no perímetro sul dos pátios de manobra da Friedrichstadt. Algumas das bombas destinadas aos pátios desviaram-se a norte, caindo na vizinha fábrica Seidel & Naumann, onde no passado eram feitas máquinas de escrever, de costura e bicicletas, mas que agora se devotava à produção de armamentos. ”
Os aliados desenvolveram o ataque
em cascata, isto é, aviões atacavam e não precisavam voltar à base para o
reabastecimento; ao invés disso, reinvestiam sobre os alvos. O plano arquitetônico
de Dresden atuou contra a cidade: a localidade era constituída por vários
prédios antigos, com muita madeira seca e secular, as construções eram muito
próximas umas das outras.
A segunda onda de ataque aéreo
aconteceu de 1h21 a 1h45, já na noite do dia 14/02/1940. Dentro em pouco, o
centro de Dresden não existia mais. Tanto na primeira onda do ataque quanto na
segunda, as pessoas eram orientadas a se esconderem nos porões das construções,
num sistema que se interconectava a outros, por meio de túneis e passagens
estreitas. Tal orientação se revelou além de ineficiente para muitos, uma
verdadeira tragédia.
As bombas incendiárias ateavam
fogo em toda parte e logo os pequenos focos se juntavam e formavam uma
verdadeira fornalha. O oxigênio, em temperatura mais baixa e mais perto do
chão, era sugado para cima pelo calor ascendente, matando uma enorme quantidade
de pessoas por asfixia, mesmo dentro dos porões. Os túneis e passagens
tornaram-se impraticáveis pelo calor, pela fumaça, pelo gás carbônico gerado e
pela propagação do fogo. Os depoimentos recolhidos por Frederick Taylor nos
impressionam, ainda hoje – tanto tempo passado:
“No entanto, nós logo percebemos que o avanço era impossível. Ao passarmos por uma rua estreita atrás do Altmarkt – a Webergasse, eu creio –, nos vimos sugados por uma forte corrente rasteira de fogo. De repente, minha mãe parecia estar voando. Papai disse: ‘Temos que dar o fora daqui.’ Nós conseguimos chegar à Zeughausstrasse. A casa comunitária judaica estava em chamas. Nós deveríamos nos apresentar ali dois dias mais tarde para o ‘deslocamento’. Que ironia, estarmos agora diante da construção incendiada com a ordem de deportação dentro da mochila! ”
Por volta do meio-dia de
14/02/1945, um terceiro e curto ataque à já combalida Dresden aconteceu. Desta vez,
perpetrado pela Força Aérea dos EUA, utilizando suas temíveis Fortalezas Voadoras
B17.
“Dresden inteira era um inferno!
Na rua, as pessoas vagavam, impotentes. Vi minha tia. Ela havia se embrulhado com um cobertor molhado e, ao me ver, gritou: ‘Vá para o terraço do Elba! ’ O som da tempestade de fogo crescente engoliu suas últimas palavras. A parede de uma casa ruiu com grande estrondo, enterrando várias pessoas. Uma grossa nuvem de poeira subiu e, combinada à fumaça, tornou a visão impossível. Então uma mão me agarrou pelo pescoço e me puxou para longe dos destroços. Era o jovem piloto, que com toda a sua tranquilidade, provavelmente salvou minha vida no meio desse caos. A gente não parava de tropeçar em cadáveres...”
Em 15/02/1945, por volta das
15h45, a única construção dresdense que ficara de pé, a Frauenkirche (Igreja de Nossa Senhora) começou a ruir. Com a
diferença de temperatura entre o auge do incêndio a que fora submetida e o
posterior resfriamento, uma série de distorções na construção ocorreram. As
traves que sustentavam o teto, encimado por um domo feito de cobre soltaram-se
e a igreja implodiu.
Frederick Taylor, neste magnífico
livro Dresden sobre os ataques à “Florença
do Elba” arrola alguns motivos para os fatos terem se passado como se passaram.
Primeiro, Dresden não era uma cidade “inocente”, como a propaganda de Goebbels
fez crer; a bela cidade participava do esforço de guerra alemão, fornecendo
peças para armamento. Nesse caso, os ataques, dentro da lógica bélica, não foram indevidos. Segundo, “os russos
haviam iniciado mais cedo sua ofensiva rumo ao leste da Alemanha, a pedido dos
aliados – nos relata Taylor – para reduzir a pressão nas forças
anglo-americanas. Em resposta a esse ‘favor’, os aliados usaram seu poderio
aéreo para destruir cidades alemãs aquém do front russo – incluindo Dresden –
com a intenção de produzir uma recompensa que pudesse ser demonstrada de
maneira prática. ”
Um terceiro motivo, não
confessado, nem documentado, mas perfeitamente dedutível, os Estados Unidos
queriam mostrar de maneira cabal aos comunistas russos – seus aliados de
momento – o quão destrutivo poderia ser um ataque aéreo, no qual mantinham a
soberania absoluta de forças. Uma prática intimidatória, portanto.
Fica extremamente difícil não
pensar, após a leitura dessa volumosa obra, tão rica em detalhes, dados,
depoimentos, que não tenha havido um componente de vingança por parte dos
britânicos – eles não esqueceram Coventry.
Deixo a finalização desta longa
resenha por conta do autor, Frederick Taylor, às páginas 475/476:
“É verdade que muito do que se pensou e falou sobre Dresden desde a sua destruição se deve em grande parte aos esforços dos propagandistas nazistas, primeiro, e comunistas, depois. Mesmo assim, tão logo a guerra acabou e nós começamos a procurar por símbolos para compreendê-la, o instinto popular corretamente identificou, e continua a identificar, o que aconteceu em 13/14 de fevereiro de 1945 como alerta de excesso. Dresden permanece como uma terrível ilustração do que seres humanos aparentemente civilizados são capazes de fazer sob circunstâncias extremas, quando todos os freios normais no comportamento humano se erodiram por anos de guerra total. O bombardeio de Dresden não foi irracional ou sem sentido – ou pelo menos não para aqueles que o ordenaram e o realizaram, que estavam profundamente imersos numa guerra que já havia custado dezenas de milhões de vidas, e ainda poderia custar outros milhões, e que não tinham como prever o futuro. Se foi errado – moralmente errado –, é uma outra questão. Quando pensamos em Dresden, nos debatemos com os limites do que é permissível, mesmo na melhor das causas.”
(...)
“Ou, como o pintor Goya – igualmente familiarizado com o horror – expressou de maneira ainda mais econômica: ‘O sono da razão faz surgir monstros.’”