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quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Resenha nº 79 - Fahrenheit 451, de Ray Bradbury

Resultado de imagem para livro Fahrenheit 451 folha de são pauloTítulo: Fahrenheit 451
Tradução: Cid Knipel
Copyright: 1953 renewed 1981
Edição: Mediafashion, 2016
Gênero: Romance de ficção científica
Número de páginas: 164
ISBN: 23-978-85-7949-298-3
Coleção “Grandes Nomes da Literatura”


Ray Douglas Bradbury nasceu em 22/08/1920, em Waukegan, estado de Illionois, nos EUA. Morreu em Los Angeles, em 06/06/2012, aos 91 anos de idade. Autor prolífico, começou escrevendo obras de ficção científica e fantasia. Sua bibliografia conta com a) Romances: Fahrenheit 451 (1953); It came from Outer Space (1953); Dandelion Wine (1957); Something Wicked This Way Come (1962); The Halloween Tree (1972); Death Is A Lonely Business (1985); A Graveyard For Lunatics (1990); Green Shadows, White Whale (1992); Ahmed and The Oblivion Machines (1998); From The Dust Returned (2001); Let’s All Kill Constance (2003). b) Contos: Dark Carnival (1947); The Martian Cronicles (1950); The Illustred Man (1951); The Golden Apples of The Sun (1953); The October Country (1955); A Medicine for Melancholy (1959); R Is for Rocket (1960); Bloch and Bradbury (1969); I Sing The Body Electric! (1969); S Is for Space (1970); Stories of Ray Bradbury (1980); The Toynbee Convector (1988); Quicker Than The Eye (1996); Driving Blind (1998); One More for The Road (2002); Bradbury Stories: 100 of His Most Celebrated Tales (2003); The Cat’s Pajamas: Stories (2004).
 Tome-se um bom tema de ficção científica, adicione-se a ele largas porções de fantasia; mexa-se bem essa mistura e acrescente-se, aos poucos, mas sem miséria, grandes partes de poesia. Criatividade a gosto. Não se esqueça de juntar uma forte e decisiva pitada de distopia. Se pudéssemos resumir este Fahrenheit 451 a uma receita, esta seria uma possibilidade.  Impossível de ser reproduzida por outro autor, vivo ou morto. Esta obra é diferente de tudo que já li, não só considerando o campo da ficção científica e fantasia, mas também o campo enorme de todos os livros lidos. E olha que já li horrores nesta vida!
 O enredo não é complicado: um certo bombeiro, de nome Guy Montag, faz seu serviço com eficiência, dentro de uma rotina montada para que ele tenha todas as satisfações básicas de um ser humano atendidas. Ele é casado com Mildred (Millie), tem uma boa casa, bom emprego, com alguma economia pode comprar o que a tecnologia da época lhe oferece.
 O mundo estável e confortável de Montag começa, lentamente, a se desmoronar quando ele conhece sua vizinha Clarisse McClellan. A garota impressiona fortemente o bombeiro:
“Que incrível poder de identificação tinha a garota! Era como o ansioso espectador de um teatro de marionetes, antecipando cada piscar de olhos, cada gesto de mãos, cada estalar de dedos, um instante antes de o movimento começar. Quanto tempo haviam caminhado juntos? Três minutos? Cinco? No entanto, como aquele momento agora parecia longo. Que figura imensa era ela no palco diante dele, que sombra projetava na parede o seu corpo esguio! Montag tinha a impressão de que caso ele coçasse os olhos ela talvez pestanejasse. E se os músculos de suas mandíbulas se tencionassem imperceptivelmente, ela bocejaria muito antes que ele o fizesse. ” (página 16)
 O curioso é que esse narrador onisciente, capaz de nos dizer o que se passa na cabeça e no coração dos personagens, não nos traz grandes emoções de Montag. Simplesmente, porque ele não as tem... Montag é superficial, não pensa, não deduz – é pago para fazer o que faz e o que faz, faz bem.
 Nesse estranho mundo plano, os bombeiros têm a sua função deslocada, pois, ao invés de apagar incêndios e salvar vidas e objetos, eles os queimam. Sim, é um mundo sem livros; os livros promovem sentimentos, reflexões, descontentamentos, questionamentos e isso deve ser extirpado dessa sociedade. É a “felicidade” do não-ser, do não-conhecer, do não-sentir. Toda a História do mundo fora apagada.
 Guy Montag se descobre infeliz. Seu desconforto, agora, ao queimar importantes obras literárias da humanidade é visível. E o incômodo não é porque saiba exatamente o valor dos livros postos na fogueira; o que o move é a curiosidade de experimentar aquele mundo antigo, escondido de quase todos e suas novas possibilidades.
 Como naquela outra excelente obra distópica, o 1984, de George Orwell, o menor desvio de conduta do indivíduo é notado pelos mecanismos de vigilância existentes por toda parte. E um sabujo – cão rastreador – eletrônico começa a “implicar” com Montag, dentro da corporação. Ele é uma máquina capaz de matar, infalível quando se atira sobre a presa, matemático e frio. Possui oito patas e uma agulha injetora de um anestésico que paralisa a vítima:
“Montag recuou. O Sabujo deu um passo para fora de seu canil. Montag agarrou o poste de metal com as duas mãos. O poste, reagindo, deslizou para cima e o fez atravessar o teto, silenciosamente. Montag estendeu o pé para o deque à meia-luz do nível superior. Seu corpo tremia e seu rosto estava pálido e esverdeado. Lá embaixo, o Sabujo tornara a assentar-se sobre as suas incríveis oito patas de inseto e zumbia novamente para si mesmo, os olhos multifacetados em paz.Montag parou ao lado do poço de acesso, aguardando o tremor passar. Atrás dele, quatro homens sentados a uma mesa de jogo, sob uma luminária verde no canto da sala, olharam de relance sem dizer nada. Apenas o homem com o quepe de capitão com a insígnia da fênix, por fim, curioso, as cartas na mão magra, falou do fundo do recinto:— Montag?...— Ele não gosta de mim – disse Montag.— Ele quem, o Sabujo? – O capitão estudou as cartas. – Deixe de bobagem. Ele não gosta ou desgosta. Apenas “funciona”. É como um exercício de balística. Ele tem uma trajetória definida por nós. Ele executa. Segue a pista, faz a mira e dispara. É só fio de cobre, baterias recarregáveis e corrente elétrica. ” (Páginas 29/30)
 Apesar da ameaça constante sobre sua cabeça, Montag está irremediavelmente mudado. E passa, cada vez mais, a ler o mundo e sua própria vida a partir dessa nova chave interpretativa. Conhece Fraser, e torna-se amigo dele. Fraser caracteriza a si mesmo como um covarde, que poderia ter gritado quando as coisas começaram a mudar, quando o mundo da conformação se instalava e preferiu ficar calado. O contraponto entre Fraser covarde e Montag, meio ingênuo, mas com vontade de buscar o que lhe falta é produtivo para os dois.
 Ray Bradbury é um escritor singular. Vejam como ele consegue juntar poesia, recursos literários à ficção científica que permeia seu texto:
“Uma gota de chuva. Clarisse. Outra gota. Mildred. Uma terceira. O tio. Uma quarta. O fogo de hoje à noite. Uma, Clarisse. Duas, Mildred. Três, tio. Quatro, fogo. Uma, Mildred, duas Clarisse. Uma, duas, três, quatro, cinco, Clarisse, Mildred, tio, fogo, pílulas para dormir, homens-lenços descartáveis, fraldas de camisas, assoar, limpar, dar descarga, Clarisse, Mildred, tio, fogo, pílulas, lenços, assoar, limpar, dar descarga. Uma, duas, três, uma, duas, três! Chuva. A tempestade. O tio rindo. Trovão descendo céu abaixo. O mundo inteiro se derramando em água. O fogo jorrando num vulcão. Tudo se apressando numa enxurrada estrondosa e fluindo como rio rumo à manhã. ” (página 22)
 Apesar de o livro Fahrenheit 451 ser bastante conhecido do público, resisto a fornecer um spoiler. Não vou adiantar o final da história. Mas tenho vontade de fazê-lo, há muito o que comentar. Além de não desejar a presença do spoiler, caro leitor, não é o objetivo deste blog entrar por análises textuais mais aprofundadas. Direi apenas que Montag, com uma visão mais crítica sobre a sociedade na qual está mergulhado, já não terá lugar nela. Torna-se um elemento por demais perigoso.
 Novas realidades o estarão esperando, para além da curva dos trilhos ferroviários enferrujados. Acorda dentro de um outro contexto e de lá, deste novo posto, pode enxergar melhor seu próprio trabalho, seu amigo Fraser, sua vizinha Clarisse McClellan, sua esposa Mildred e suas amigas, o capitão Beatty e suas ações (sobretudo a última).
 A resenha de Fahrenheit 451 já está muito longa, mas não posso deixar de fazer algumas contextualizações com a sociedade em que vivemos; o livro é por demais rico e a leitura por demais propícia para algumas reflexões.
 Vivemos numa sociedade atroz, em que parte dela é extremamente hedonista e valoriza a “felicidade” entregue pela tecnologia, pela falta de criticidade, manipulada pelas classes dominantes por trás das mídias. Os tais “formadores de opinião”, na verdade, formam apenas uma opinião – a dominante. Coisa igualmente instaurada nas escolas, instituição que deveria ser o espaço consagrador das opiniões variadas, das muitas visões de mundo; as escolas deixaram de ser a entidade “que não ensina a pensar”, como diziam os antigos. Agora, é pior: ensinam a pensar, sim; mas apenas de um modo. Esquecemo-nos de que a felicidade não pode ser construída na ignorância, a não ser, talvez, na infância. A felicidade adulta é mais difícil de ser atingida, deve ser construída pela paz interna nos contatos com o diferente. No respeito ao direito do próximo de ser quem é, de pensar como pensa. Pessoalmente, não acredito numa felicidade duradoura onde houver pessoas a quem faltam mesmo as coisas mais básicas.
 Tema para Zygmunt Balman e seu conceito de sociedade líquida, amor líquido, medo líquido. Resenha para um próximo livro, o Medo Líquido, do professor Balman.

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