Autora: Carla Madeira
Editora: Quixote + Do Editoras Associadas
Copyright: 2014
ISBN: 978-85-66256-08-6
Edição: 1ª/5ª Reimpressão
Gênero: Romance
Origem: Literatura Brasileira/Mineira
Páginas: 218
Bibliografia: Tudo é Rio, romance, 2014; A Natureza da
Mordida, romance, 2018.
Em
conversa com o vendedor de livros que habitualmente me atende, numa das
livrarias de BH, ele me recomendou este Tudo é Rio, como uma ótima leitura. Tive duas motivações – não sei
qual delas realmente me fez comprar o volume –; a primeira, aquele era um
vendedor que lê e conhece algumas de minhas características como leitor. Segunda,
adoro ler autores a que não estou acostumado. Gosto de garimpar. A cinta azul
que envolvia a obra continha o parecer de Martha Medeiros, dizendo que “era uma
obra-prima”. Assessorado por estas informações, dediquei-me à leitura do livro
em questão. Não começou bem. Lia com alguma dificuldade de concentração, mas
este fato é comum nas minhas aventuras literárias. Mas, de certo ponto em
diante, a leitura realmente me pegou. Concordo com Martha Medeiros, “Como
assim, um livro de estreia tão potente, tão perfeito, tão acabado”. Lá estava o
tema mais antigo da literatura, um triângulo amoroso. E, embora um pouco menos comum, um
triângulo amoroso envolvendo, de um lado, um casal e de outro, uma prostituta. Livro
cheio de traços eróticos, sobretudo bem-escrito, universal. Subtemas ódio, perdão,
bondade e perversidade humanas, amor, inveja, desejo, adoção. Uma obra e tanto!
Não consegui muitos dados da
autora. De concreto, sei apenas que Carla Madeira é mineira de Belo Horizonte. Cursava
matemática, largou este curso e se formou em jornalismo e publicidade. Atuou
como professora de redação publicitária na Universidade Federal de Minas Gerais
e é diretora de criação da agência de comunicação Lápis Raro. Em 2014, lançou seu primeiro romance, Tudo é rio, um sucesso editorial,
recebido com entusiasmo por público e crítica.
Tudo
é Rio é um romance muitíssimo bem-escrito. É a história de um casal, Dalva
e Venâncio. Conta com um estilo ao mesmo tempo muito realista (Carla não tem
medo das palavras) e poético. Vejamos a introdução do livro:
“Puta. Não tem outro nome para Lucy. De profissão ela era puta mesmo. Trabalhava num puteiro, vivia num puteiro. Mas não era puta só por isso. Se só por isso fosse, podia outros nomes mais respeitosos, como meretriz ou prostituta. Era puta e pronto, que essa palavra, a seco, carrega um xingamento, que quem conhecia Lucy queria logo desabafar. Tinha um jeito baixo e arrogante de provocar todo mundo, esfregando o sexo sem censuras, descobrindo os seios e atirando palavras cruas encharcadas de lama. Uma beleza disputada a tapa pelos frequentadores dava a ela o poder de não bastar aos olhos: quem via Lucy queria degustar. Dizem que sabia fazer o diabo com um homem na cama. Enlouquecia qualquer um que passasse pelos seus cuidados. Não tinha um que não quisesse mais.” (página 11)
Em um parágrafo inicial apenas, já
temos a caracterização da personagem polêmica que é Lucy. Temos, em nosso
imaginário, prostitutas que foram levadas a tal por falta de opção na vida, por
pobreza, por problemas psicológicos, por abandono social. Agora,
uma prostituta que escolhe esta vida porque gosta, é um tabu social. Lucy é exatamente
assim: é puta porque gosta. Cumpre, desta forma, uma das mais comuns fantasias eróticas
femininas, de acordo com vários artigos a respeito do assunto. Convenhamos,
entretanto, fantasias não são realidades.
E, como a caracterização de
personagem é magistralmente trabalhada pela autora, vamos reproduzir a de Dalva:
“Dalva nunca olhou para o alpendre, embora fosse pelo caminho da sombra. Passava de cabeça erguida, olhando para a frente, não por afetação de orgulho ou por força de algum julgamento, mas por não dar importância a nada que não fosse ir para onde estava indo. Carregava seu corpo pesado de tristeza, e isso era tudo o que parecia fazer. As putas reconheciam que ali não se podia bolinar, sabiam por experiência própria que não se deve aumentar uma dor sem tamanho. No fim do dia, quando Dalva voltava, para quem reparasse muito, dava para ver um olhar mais sereno nos olhos dela, mas ninguém nunca reparou, nem um pouco.” (página 27)
Mas, nem sempre Dalva fora assim;
na verdade, ela carregava um segredo só dela, algo que mudará o rumo de sua
história e da sua relação com o marido. Ela já fora uma jovem sonhadora,
alegre. A vida, entretanto, à maneira das tragédias gregas, não dá folga para qualquer
destes personagens.
Venâncio, que mais tarde se tornará
marido de Dalva, tem com ela uma infância em comum; não eram propriamente
amigos, mas brincavam na mesma rua. Como nos diz a autora, naquela fase em que
meninas e meninos mais se toleram do que se atraem:
“Dalva achava Venâncio bem esquisito, de uma família mais esquisita ainda. O pai dele sempre falava aos trancos, dava ordens demais. Queria achar briga em qualquer conversa. Venâncio ficava calado, rodeado por uma tensão invisível. Vigiava as esquinas. Se o pai aparecia lá longe, ele largava tudo e ia correndo, cercava o pai por lá mesmo, para não deixar ele chegar perto demais dos amigos. Tinha vergonha da brutalidade dele. Muitas vezes quis que o pai desaparecesse. Sofria a insuportável saudade de ter um pai que nunca teve. Com o tempo, a vida dos dois juntos foi ficando perigosa, um ódio lento endurecia tudo, tinha vontade de machucar o pai. Queria doer nele a dor que sentia.” (página 75)
Nenhum desses personagens mais importantes do livro
é plano, isto é, sem conflitos. Logicamente, daí só podem brotar relações
conflituosas, coisas a resolver. O jeito humano de sermos: com boas intenções,
alguns, mas cheios de contradições. Este é um dos trunfos de Tudo é Rio.
A complicação principal vai se dar
quando Venâncio começa a frequentar, desiludido e cheio de culpas, a Casa de
Manu, o prostíbulo onde trabalha Lucy:
“Quando Lucy se obcecou por Venâncio, não sabia nada dele. Nem quem era ele, de onde vinha, nem se tinha mulher ou família. Não se importava. Para ela a história de Venâncio começava ali, no dia em que ela botou o querer nele, ele nasceu. Em uma cidade pequena, é difícil acreditar que alguém não se dê conta de que um mundo ao redor caminha junto. O outro existe. Não para Lucy, que só sabia dela mesma. Sabia o que queria e querer bastava...” (página 31)
O outro trunfo do livro é sua universalidade.
Aliás, esta é uma das características de uma obra que perpassa o tempo: a
universalidade. Sem dar indicações precisas de onde se passa a história, Carla
Madeira localiza-a em qualquer lugar. Mas esta universalidade é também de tema
e subtemas, conforme ficou indicado no texto em itálico, acima.
O relacionamento de Venâncio e
Dalva, que de relacionamento mesmo só tem o viverem na mesma casa, se distancia
cada vez mais na obsessão de Lucy em ter Venâncio, que lhe foge entre os dedos,
literalmente.
Cada vez mais, Venâncio se faz
parecer com o pai, a mesma brutalidade condenada no pai. Isola-se em seu mundo
de dor e sofrimento, a relação com Dalva inteiramente contaminada pelo seu
ciúme doentio, de homem completamente inseguro. E – drama edipiano – aquele mesmo
pai, que ele, em criança, queria matar, queria que desaparecesse, acaba se
impondo a ele, e de maneira tão completa que se superpõe à personalidade do filho.
Carla domina perfeitamente a arte de
escrever romances, este gênero tão difícil de se obter, pela complexidade da
construção, interação entre personagens, estruturas que se entrecruzam para
produzir a verossimilhança narrativa. Ela deixa mais para o fim dois fatos
fundamentais, que não posso adiantar, sob pena de spoiler.
Duas descobertas, duas revelações
matreiramente guardadas que irão mudar o pulso da história; o perdão entrará, a partir
destas revelações, como elemento que quebrará o círculo vicioso dos
sofrimentos, das vontades não acessadas, algo que a beirar a epifania, não só de
Dalva, mas também de Venâncio.
Tudo
é Rio é um título apropriado para o romance. Nossos desenganos, ódios
sentidos a se arrefecerem e darem possibilidade à eclosão do amor, o sofrimento
que se depura, se ameniza e permite novo campo de experiências mais positivas
são como um rio, que segue seu curso dirigido por suas margens.
O vendedor que me atendeu, na
livraria, me dissera que o outro livro de Carla Madeira, A Natureza da Mordida, tem sido procurado em decorrência de as
pessoas terem gostado muito deste presente livro. Acredito. Tudo é Rio credita a autora.
Para encerrar e para a degustação
do leitor deste blogue, mais um trecho, referente à passagem quando Venâncio se
apaixona por Dalva:
“No dia em que viu a empada em sua mesa, Venâncio conheceu uma alegria nova, tão diferente da tristeza que vivia ao seu redor. Transbordou uma cara boa, uma animação saliente. Seu Amim, sempre discreto, não conseguiu segurar o comentário. Foi picado com força! Tô vendo que o veneno é poderoso. Venâncio acolheu a intimidade, deixou a alegria aumentar.” (página 84)
Nenhum comentário:
Postar um comentário