Título em português: A Praça do
Diamante
Autora: Mercè Rodoreda
Tradutor: Luis Reyes Gil (direto do
catalão)
Edição especial TAG Livros/Planeta
Copyright: 2017
ISBN: 978-85-422-1187-0
Literatura espanhola em catalão
Bibliografia: Sóc una dona honrada,
1932; Del que hom no pot fugir, 1934; Un día de la vida d’un home, 1934; Crim,
1936; Aloma, 1938; Vint-i-dos contes, 1958; La Plaça del Diamant, 1962; El
carrer de las camèlies, 1966; Jardí vora el mar, 1967; La meva Cristina i
altres contes, 1967; Mirall Trencat, 1974; Semblava de Seda e altres contes,
1978; Tots els contes, 1979; Viatges i flors, 1980; Quanta, quanta guerra...,
1980; La mort i la primavera, 1986 (obra póstuma); Isabel i Maria, 1991 (obra póstuma).
Mercè Rodoreda i Gurguí, nasceu
em Barcelona, Espanha, em 10/10/1908 e faleceu em Girona, Espanha, em
13/04/1983, aos 74 anos de vida. Escritora catalã, seu trabalho abarca poesia,
teatro, conto e – principalmente – romance. Após sua morte, descobriu-se outro
talento de Rodoreda: a pintura.
Os pais, Andreu Rodoreda Sallent
e Montserrat Gurguí Guàrdia, eram amantes de literatura e teatro e chegaram a
frequentar aulas de declamação na Escola d’Art Dràmatic, mais tarde convertida
no Institut del Teatre.
O avô materno de Mercè era
considerado por ela mesma como seu mestre. Este homem, Pere Gurguí, era
admirador de Jacint Verdaguer i Santaló, um dos poetas mais influentes da
Catalunha, tendo mesmo mandado erigir, em seu jardim, uma estátua ao poeta. O avô
foi também redator nas revistas La
Renaixensa e L’Arc de Sant Martí.
Ele insuflou em Mercè o sentimento catalanista e de amor à língua catalã e às
flores.
Desconcertante. Esta é bem a sensação
que me fica, ainda agora, após ter lido A
Praça do Diamante. E esta sensação não é pela história em si, pelos fatos
narrados na obra de Rodoreda, mas pelo modo como ela o faz. Vou tentar me explicar nas
próximas linhas.
A Praça do Diamante é uma obra complexa, apesar do efeito de simplicidade obtido a partir de como se expressa a narradora. A
história, contada pela narradora-personagem Natàlia, apelidada Colombeta, é
vazada numa linguagem que beira a ingenuidade. Há presença de repetições, reiterações,
algo do “pensamento caótico”, tudo tão característico da oralidade:
“A Julieta veio até a confeitaria expressamente para me dizer que, antes do sorteio da prenda, iam sortear cafeteiras, que ela já as tinha visto: lindas, brancas, com uma laranja pintada, partida ao meio, os caroços à amostra. Eu não tinha vontade de ir dançar nem sair, porque passara o dia empacotando doces e as pontas dos meus dedos doíam de tanto apertar barbantes dourados e de tanto dar nós e fazer alças. E porque eu conhecia a Julieta, que de noite não precisava de mais do que três horas de sono, a para ela dormir ou ficar acordada era indiferente. Mas ela me fez acompanhá-la querendo ou não, porque eu era assim, sofria se alguém me pedia alguma coisa e eu tinha de dizer não. Estava eu toda de branco, de cima a baixo: o vestido e a anágua engomada, os sapatos brancos que nem leite, os brincos de massa branca, três pulseiras de aro combinando com os brincos e uma bolsinha branca, que a Julieta disse que era de plástico, com um fecho de conchinha dourado.” (página 13)
Natàlia é noiva do ciumento Pere.
Brigam, ela rompe o compromisso com ele. Naquele dia em que Julieta consegue
arrastá-la ao baile da Praça do Diamante, ela conhece Quimet (forma diminutiva
catalã para Joaquim); ele lhe diz que ela seria sua rainha dentro de um ano. E esta
“profecia” se cumpre: Quimet e Natàlia, a quem ele chama de Colombeta
(pombinha, em catalão) se casam.
A vida dos dois não será tranquila.
Quimet trabalha como marceneiro e Colombeta trabalha numa confeitaria. Alugam um
pequeno apartamento, onde pombos costumam aterrissar na sacada. E Quimet começa
a criá-los, com o ideal de ficarem ricos em pouco tempo. Tais aves tornam,
gradativamente, a vida da personagem um verdadeiro inferno.
Os filhos do casal vão chegando:
Antoni e Rita. Novas responsabilidades acometem Colombeta: cuidar dos muitos e
variados pombos e dos filhos pequenos, além de trabalhar fora. E, para completar, estoura a Guerra
Civil Espanhola.
Este conflito armado deflagrou-se
após uma tentativa de golpe de estado contra a Segunda República Espanhola;
terminou com a vitória dos militares, em 1939, com a instauração de um regime
fascista, comandado pelo general Francisco Franco.
A Guerra Civil Espanhola não é
tratada diretamente no romance, mas seus efeitos sobre os cidadãos catalães,
sim. Tudo se torna muito difícil para os moradores: faltam alimentos, falta
água potável, ir e vir torna-se complicado. Muita gente morre, e dentre estas,
pessoas das relações de Colombeta.
As referências a Barcelona, capital
da república autônoma da Catalunha, aparecem no livro:
“E foi olhando ainda para o melro que o Quimet começou a falar do senhor Gaudí, que o pai dele o conhecera no dia em que o senhor Gaudí fora atropelado pelo bonde, que o pai foi um dos que o levaram para o hospital, pobre senhor Gaudí, tão boa pessoa, olha só que morte mais miserável... E que no mundo não havia nada como o parque Güell nem como a Sagrada Família e a Pedreira. Eu disse a ele que, em resumo, achava que tudo aquilo eram ondas demais e pontas demais.” (página 20)
Tanto o Parc Güell quanto o Templo
Expiatório da Sagrada Família ou o prédio conhecido como La Pedrera são concepções arquitetônicas
de Antoni Gaudí, máximo expoente do Modernismo catalão.
Recordações da infância também são
parte integrante da história contada por Natàlia-Colombeta:
“A mãe do Quimet me fez o sinal da cruz na testa e não quis que enxugasse a louça para ela. Eu estava grávida. Depois de lavar a louça, trancou a cozinha e sentamos na sacada coberta de parreira de um lado e de chocalheiras do outro, e o Quimet me disse que estava com sono e nos deixou sozinhas; foi quando a mãe do Quimet me contou o que tinham aprontado com ela, o Quimet e o Cintet, quando eram pequenos, uma quinta-feira à tarde, que o Cintet sempre passava na casa deles. Contou que havia plantado jacintos, três dúzias de jacintos, e que toda manhã assim que levantava ia ver como estavam crescendo. Disse que os bulbos de jacintos crescem muito devagar para se fazer de difícil e que por último o caule estava coberto de brotinhos enfileirados. Que pelos brotinhos já dava para adivinhar de que cor seriam as flores. Mais que qualquer outra cor, havia cor-de-rosa.” (página 68)
Parte da sensação incômoda que me
ficou, mesmo após a leitura do livro, é originada por este tom de melancolia difusa de
Colombeta, algo como uma dor existencial generalizada, e por isso mesmo de
difícil diagnóstico, como ressalta o trecho abaixo:
“Continuei em frente e no bazar parei para olhar as bonecas e um ursinho branco de pelúcia, com a parte de dentro das orelhas de veludo de risquinha, preto, e jardineira também de veludo preto. Fitinha azul no pescoço. A ponta do nariz de veludo preto. Me olhava. Estava sentado aos pés de uma boneca muito bonita. Tinha os olhinhos cor de laranja e a pupila brilhante e escura como um poço; e com os braços abertos e as plantas dos pés brancas, parecia um bobalhão. Fiquei tão encantada que nem me lembro quanto tempo fiquei olhando, até que me senti muito cansada, e na hora em que ia atravessar o Carrer Gran, quando já tinha colocado um pé na rua e o outro ainda estava em cima da calçada, em pleno dia e quando já não havia mais luzes azuis, eu as vi. E caí no chão deitada como um saco. E quando subia a escada de casa e parava para espirar junto da balança, não me lembrava do que tinha acontecido, como se o tempo entre colocar um pé na rua e o tempo de chegar à balança fosse um tempo que eu não tivesse vivido.” (página170)
Sinta, caro leitor, como essa
fieira de detalhes “atrasa” a narrativa, tornando o ritmo do texto lento. Observe
que não há qualquer palavra denotativa de tristeza, melancolia, infelicidade,
insatisfação, ou sinônimos. Mas, talvez pela insistência na descrição pormenorizada do
ursinho na vitrina, talvez por – vestindo a pele da personagem – nos deixarmos,
como Colombeta, distrair pela figura do brinquedo de pelúcia, que remete
inelutavelmente à infância, sintamos igualmente a nostalgia da personagem.
Colombeta tem uma maneira muito
peculiar de observar as coisas. Veja o ângulo completamente invertido pelo qual
ela enxerga uma simples árvore:
“E me livrava delas assim e me entretinha olhando as árvores, que vivam de pernas para o ar, com todas as folhas que eram os pés. As árvores que vivam com a cabeça dentro da terra comendo terra com a boca e com os dentes que eram as raízes. E o sangue corria por elas diferente de como corre por dentro das pessoas: direto da cabeça até os pés, tronco acima. E o vento e a chuva e os passarinhos faziam cócegas nos pés das árvores, tão verdes quando nasciam. Tão amarelas na hora de morrer.” (página 225)
A personagem-narradora não tem
vida própria. Não decide sobre o que deve ser feito. Uma das passagens em que
isto é contundente é a seguinte:
“Estava cansada; eu me matava trabalhando e tudo andava para trás. O Quimet não via que o que eu precisava era de um pouco de ajuda em vez de passar minha vida só ajudando, e ninguém reparava em mim, e todo mundo me pedia mais, como se eu não fosse uma pessoa. E o Quimet não parava de arrumar pombos e dá-los de presente! E aos domingos saía com o Cintet. Mesmo tendo dito que ia colocar um carrinho na moto para que todos pudessem sair.” (página 124)
A sensação crescente de
desconcerto, de incômodo que eu senti atinge altos níveis porque a tão esperada
epifania de Colombeta se entremostra, mas não vem. Não posso dizer a você,
leitor, do que se trata, pois inevitavelmente cometeria um spoiler.
Não é por incompetência da autora
que a parte inicial do livro é arrastada, dificultando sobremaneira a leitura. É
intencional e para ter certeza disto, basta ler o posfácio de Mercè: é
esclarecedor.
Podemos rastrear vários símbolos
pelo livro. Um deles, os próprios pombos. Quimet dá o apelido de Colombeta à
Natàlia, logo na primeira vez em que a vê. Pombinha. Tantos pombos vão e vêm,
sem marcar sua individualidade, vão enchendo o apartamento do casal, tornando a
vida da dona um verdadeiro inferno. A cena em que eles aparecem, aos
bandos, me lembrou muito o filme de Alfred Hitchcock, “Os Pássaros”. Entretanto,
se lá as aves representavam a ameaça difusa, o medo que nós todos temos de
alguma coisa ampla e indefinida (como, por exemplo, a notícia de que o mundo vai acabar), aqui eles vão representar uma vida chã, plana, sem
acontecimentos dignos de nota.
Como última transcrição do livro,
talvez fosse útil reproduzir o que a própria Mercè Rodoreda escreveu em seu
posfácio:
“Em A Praça do Diamante há muitas coisas: o funil, o caracol marinho, as bonecas do bazar... há todos os detalhes dos móveis, das campainhas elétricas e das portas da casa onde a Colometa vai trabalhar. Há as moedas de ouro de monsenhor Joan, que este dá a Quimet para o caso de necessidade. Há a balança desenhada na parede da escada. E a faca, símbolo sexual, com a qual no fim do livro a Colometa escreve seu nome na porta da casa em que havia morado.” (página 244/245)
É um grandíssimo livro, mas não o
leia se estiver depressivo, ou mesmo triste. Não é um livro gostoso de ler. A melancolia
difusa, a epifania da personagem, que afinal não vem, a aceitação das
limitações do homem com quem Colometa vai viver são coisas difíceis de digerir.
Entretanto, se como querem alguns
escritores, a verdadeira arte (literatura incluída) existe para incomodar e não
para entreter, então Mercè Rodoreda atingiu o ápice de sua arte. A Praça do Diamante, sem favor nenhum, é
um grande livro.
Nota atribuída: 9,5