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quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Resenha Nº 210 - Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnár

 




Título original: A Pál utcai fiúk

Autor: Ferenc Molnár

Tradutor: Edith Elek

Editora: Nova Fronteira

Copyright: 2023

ISBN: 978-6556-40651-0

Gênero literário: romance de formação

Origem: literatura húngara

 

Ferenc Molnár é destes escritores dos quais pouco se sabe aqui no Brasil. Nasceu em Budapeste, capital da Hungria, em 12/01/1878 e faleceu em Nova Iorque, EUA, em 01/04/1952. Imigrou para os Estados Unidos fugindo da perseguição nazista aos judeus do seu país de origem.

Ele nasceu Ferenc Neumann, numa família judia de classe média; teve seu sobrenome traduzido para o idioma magiar (húngaro). Assim, foi rebatizado para Molnár, palavra que, em húngaro, significa “moleiro”. Esta exigência era regra geral na Hungria, pertencente, na época, ao Império Austro-Húngaro: todos os judeus eram obrigados a receberem nomes húngaros.

Entre suas obras – cujas referências são escassas nesta terra brasilis – constam a peça Lilion (1909), O Poste de Vapor, resenhado aqui neste blogue em 2016, sob o número 84, e o seu livro mais famoso, o clássico infanto-juvenil Os Meninos da Rua Paulo (1907).

Falar sobre este Os Meninos da Rua Paulo é voltar à minha formação como leitor. Uma viagem emocional. Lembro-me de ter compulsado um livro de bolso, com capa amarela e título com grandes letras vermelhas, editado pela Edições de Ouro. Os nomes de Boka, Nemescek e Geréb fazem parte da minha memória afetiva, constituindo-se eles poderosas chaves a abrirem referências à literatura húngara.

Pois bem. Desta caprichada edição da Nova Fronteira, que tenho em mãos, seleciono parte do parágrafo:

“Às quinze para uma, naquele exato momento, quando na sala de ciências naturais, sobre a mesa principal, após longas e inconclusivas experiências, finalmente, a muito custo, atingimos algum resultado, depois de uma longa e ansiosa espera, com a explosão de um lindo feixe verde-esmeralda na chama incolor do bico de Bunsen, demonstrando que com aquela mistura, com a qual o professor queria provar que pintaria a chama de verde, e ele de fato pintou a chama de verde, como eu disse: justo às quinze para uma, naquele triunfante momento, no quintal da casa vizinha, soou uma pianola e com isso toda a seriedade simplesmente se rompeu. As janelas estavam escancaradas naquele dia quente de março e, nas asas do ar fresco primaveril, a música voou para dentro da sala de aula. Eram algumas notas alegres de uma canção húngara, que lembravam uma abertura garbosa, ressoando como qualquer coisa vienense, e a classe toda desejou sorrir, aliás, teve quem de fato sorrisse.” (página13)

Interessante notar algumas coisas neste parágrafo introdutório. Primeiro, no tocante ao estilo do autor, a abundância de períodos subordinados, o que exige destreza na organização do que se quer dizer, sob risco de o pensamento se perder entre tantas vírgulas e encadeamentos de ideias. Segundo, a música que voou para dentro da sala de aula, portadora de uma abertura garbosa, com notas alegre de uma canção húngara ressoando como qualquer coisa vienense é uma referência ao Império Austro-Húngaro.

Este Império Austro-Húngaro tinha dois centros, como o nome deixa entrever: na Áustria e na Hungria. Mais especificamente, na Viena imperial e em Budapeste. A abertura garbosa, possivelmente ufanista, dizia respeito à bravura húngara. Mas as notas, soando como qualquer coisa vienense são referências à Viena – à Viena do importantíssimo legado musical das valsas ligeiras de Johann Strauss, por exemplo.

Os personagens desta história vão sendo apresentados, um a um: Geréb, Boka, Csónakos, Csele, Nemecsek e, ainda os adversários, os irmãos Pásztor. Formam dois grupos, portanto: os meninos da rua Paulo, capitaneados por Boka e outro grupo, liderado pelos irmãos Pásztor.

Os da rua Paulo utilizavam o grund – o território deles, localizado numa madeireira, e que deveria ser defendido com unhas e dentes. A outra turma montara sua base no Parque Municipal da cidade. Entretanto, logo o Parque se revela não apropriado para os meninos jogarem bola. Este conflito que se avizinha será o ponto crucial desta história. Uma guerra entre bandos de garotos por um território.

O azedume entre as duas “facções” é apontado desde cedo:

“— Ontem fizeram einstand no museu de novo!

— Quem?

— Os Pásztor. Os dois irmãos Pásztor.

Um grande silêncio se sucedeu.

Para isso, é preciso explicar o que é einstand, algo que toda criança de Budapeste do começo do século XX sabia. Quando um dos meninos mais fortes queria brincar com bolas de gude, por exemplo, ou outros jogos que exigiam equipamentos especiais que ele não tinha, mas via nas mãos de garotos mais fracos, decidia tomá-los, então dizia bem alto: einstand. Essa horrível palavra alemã significa que o mais fraco deve ceder o jogo ao mais forte, e quem ousar recusar será dominado pela força. É, portanto, um grito de guerra. Ao mesmo tempo, é o caminho mais curto para o estado de emergência do recurso da força, da lei do mais forte e de atos de pirataria, o próprio motivo da declaração.” (páginas 23/24)

Deste pequeno trecho podemos fazer algumas ilações. O Império Austro-Húngaro já vinha perdendo força, tendo sido o assassinato do imperador Francisco Fernando, na Sérvia, como o motivo da Primeira Guerra Mundial. Os austro-húngaros (ao qual se vincularam os Habsburgos) se esfacela ao fim da Segunda Guerra Mundial.

Por esta digressão, aproximamos Os Meninos da Rua Paulo das tensões presentes no ambiente de pré-primeira guerra – o livro é de 1907 – iniciada em 1914. Sopram ventos do conflito vindouro nas páginas deste excelente livro.

Boka e sua turma representam os pacifistas e os arruaceiros irmãos Pásztor são os mais fortes, os detentores do poder (dado pela força física). Boka e sua turma devem usar a sua imaginação para a defesa do que consideravam seu território:

“No grund, ninguém sabia que esse pedacinho de terra não seria mais deles. Esse pequeno pedaço de chão sem nenhum cultivo, acidentado, em Budapeste, essa várzea espremida entre duas casas que para suas almas de meninos representava o infinito, a liberdade, que, no período da manhã, era as planícies americanas e, de noite, a Transilvânia, quando chovia era o mar e, no inverno, o Polo Norte; era sempre a sua terra amiga, que se transformava no que eles queriam, só para a sua diversão.” (página 102)

Os Meninos da Rua Paulo continua um livro a ser lido. A história pode ser vista como uma singela narrativa sobre os valores da vida, a coragem de todo o grupo ao combater os mais fortes, na defesa de seus ideais; o respeito às regras criadas pelo próprio grupo, também. Sobretudo, a questão da dignidade e da dedicação a uma causa considerada válida, exemplificada pelo lourinho franzino Nemecsek.

“Sim, Boka se sentia agora como um grande comandante antes da batalha final. Pensou no grande Napoleão ... E se perdeu no futuro. Como seria? O que seria? O que resultaria disso tudo? Será que seu futuro seria o exército? De verdade, com uniforme oficial, comandando algum dia, em algum lugar distante, em campo de batalha real – não em um pequeno pedaço de terra, como esse grund, mas, sim, por aquele grande pedaço de terra amada, que chamamos de pátria? Ou seria médico, que esgrima com as doenças todos os dias, batalhas grandes, sérias e corajosas?” (página 133)

Aqui, Boka já não é mais um simples adolescente de quatorze anos. Aqui, ele é capaz de fazer projeções para um futuro – visto, é certo, como nebuloso em suas possibilidades – , sonha, pressente um conflito mais denso, mais real que aquele para o qual se prepara agora, na defesa do grund.  Sente o chamamento para a defesa de algo maior – a própria pátria. Aquela pitada de angústia diante do desafio visto como importante.

E, neste caso, a defesa do grund se transforma num rito de passagem, em que certas provas acontecem para provar o valor ou ascenção de determinado indivíduo a uma nova categoria validada pela sociedade.

E, ao acompanhar estes personagens – notadamente Boka e Nemecsek – na perda da inocência de um mundo infantil, Os Meninos da Rua Paulo se caracteriza no que se convencionou chamar romance de formação, cujo exemplar fundador é Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, do mestre alemão Goethe.

Nestes muitos anos que separam a minha primeira leitura deste clássico infanto-juvenil e esta, os olhos maduros perceberam muito mais coisas; fizeram muito mais contextualizações. Ser um clássico destinado à leitura de jovens não invalida o reencontro com o livro. Muito pelo contrário, o leitor maduro tem muito mais condições de ver no livro os valores que ele tem e no valor que tem um escritor como Ferenc Molnár.

Os Meninos da Rua Paulo continua um romance a mexer com as minhas emoções de leitor.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Resenha Nº 209 - A Outra Volta do Parafuso, de Henry James




Título original: The Turn Of The Screw

Autor: Henry James

Tradutor: Caetano Galindo

Editora: TAG Experiências Literárias

Copyright: 2023

ISBN: 978-88526-25-5

Gênero Literário: Novela

Origem: Estados Unidos

 

Henry James nasceu em Nova Iorque, EUA, em 15/04/1843 e veio a falecer em Londres, Inglaterra, em 28/02/1916. Escritor americano, cidadão inglês por nacionalização. Trata-se de um dos principais escritores da escola literária do realismo (séc. XIX). Escreveu romances, peças de teatro, contos e críticas literárias das mais conceituadas da literatura em língua inglesa.

O pai de nosso resenhado de hoje – William James – era um homem culto; filósofo, fez absoluta questão de propiciar boa educação ao filho. Viajou pela Europa em 1855 e por três anos andaram pela Inglaterra, Suíça e França. O turismo a estes países incluiu visitas a museus, bibliotecas e teatros.

Henry era apaixonado por literatura francesa, apesar de sua formação ser na área do direito (Harvard). Viveu em Paris por um tempo (ah, Paris, sempre Paris!) e teve contato com o círculo de Flaubert; conheceu Daudet, Maupassant e Zola. Em 1876, definiu-se por fixar residência em Londres – a maior parte de sua obra foi escrita na capital dos ingleses.

Escreveu os seguintes romances: Roderick Hudson (1876); Os Europeus (1878); Washington Square (1880); Retrato de Uma Senhora (1881); Os Bostonianos (1886); Pelos Olhos de Maisie (1897); A Outra Volta do Parafuso (1898); As Asas da Pomba (1902); Os Embaixadores (1903) e A Taça de Ouro (1904).

Seus contos: Uma Tragédia de Enganos (1864), The Story of A Year (1865); A Passionate Pilgrim (1871); Madame de Mauves (1874); Daisy Miller (1878); Os Manuscritos de Jeffrey Asper (1888); The Lesson of The Master (1888); O Desenho no Tapete (1896) e A Fera na Selva (1903).

Meu primeiro contato com o escritor foi por meio da novela A Fera na Selva. Uma excepcional novela, curta no tamanho, mas grande no que se propõe como obra literária. Tanto me foi importante a leitura, ela me ficou na memória após passados tantos anos.

A escrita de Henry James é impressionante. A Outra Volta do Parafuso é uma novela pequena, enxuta, vazada em um texto preciso e sem filigranas – aliás, como convém a um texto vinculado ao realismo. Não acho uma obra fácil de ler, apesar de não contar com palavras difíceis; a dificuldade está no enredo, que progride psicologicamente, tornando a narrativa lenta e cheia de análises.

É uma história de fantasma; entretanto, o autor subverte este subgênero (atenção, a referência a subgênero, aqui, é meramente classificatória – sou daqueles que acreditam que se podem produzir grandes obras em qualquer gênero) e não segue os clichês das histórias fantasmagóricas.

“A história nos mantivera, ao redor da lareira, aflitos o bastante, porém, com exceção do reparo óbvio de que era arrepiante, como um estranho conto em uma casa antiga na véspera de Natal deveria mesmo ser, não me lembro de nenhum comentário ter sido proferido até alguém notar que era o único caso com que havia deparado no qual tal provação recaísse sobre uma criança. O caso, posso mencionar, era o de uma aparição em uma casa tão antiga quanto aquela em que nos encontrávamos reunidos – uma manifestação de um tipo terrível, perante um menininho dormindo no quarto com a mãe, que a despertou, apavorado, não para que ela dissipasse seu medo e o tranquilizasse até que voltasse a dormir, mas para que ela mesma deparasse, antes de conseguir fazê-lo, com a visão que o havia chocado.” (página 17)

O parágrafo de abertura deste A Outra Volta do Parafuso – sem sombra de dúvida, um clássico – tem lugar na Mansão de Bly, em Essex, Inglaterra. É propriedade do Sr. Douglas, viúvo, com um casal de filhos: Miles e Flora. Naquela casa, existe ainda a figura da Sra. Grose, que toma conta das duas crianças. O Sr. Douglas não mora com elas, pois trabalha na cidade.

É a Sra. Grose que, até certo ponto, vai deixar a narradora em primeira pessoa, não nomeada, a par de fatos do passado. Digo até certo ponto porque Henry James capricha na ausência de informações que levem o leitor a transitar com segurança interpretativa e tirar conclusões indubitáveis sobre os fantasmas que habitam esta história.

As primeiras impressões da governanta começaram da entrevista de emprego, sobre o Sr. Douglas, seu patrão em potencial:

“Quando ela se apresentou para consideração em uma casa na Harley Street, que lhe pareceu enorme e imponente, tal pessoa, seu patrão em potencial, se revelou um cavalheiro, um homem solteiro no auge da vida, uma figura como nunca havia parecido fora de um sonho ou de um antigo romance a uma jovem alvoroçada e ansiosa, recém-saída de um presbitério em Hampshire. É fácil imaginar o tipo, que, por sorte, nunca míngua. Ele era bonito, ousado e agradável, espontâneo, alegre e gentil.” (página 22)

Henry James utiliza a técnica de liberar informações sobre esta governanta – que a esta altura da resenha já desconfiamos ser a figura central, a protagonista deste livro – aos poucos. É sempre ela que nos atualiza observações; é sempre ela que nos conta como se sente; é ela quem nos fala de suas impressões, como no trecho abaixo:

“Conforme me lembro, tal figura produziu em mim, na clareza do crepúsculo, dois suspiros de emoção distintos, nitidamente o choque de minha primeira e de minha segunda surpresa. A segunda foi a percepção violenta do erro que havia cometido: o homem que me olhava em meus olhos não era quem eu supusera a princípio. Veio-me então uma visão desnorteante da qual, tantos anos depois, não posso esperar fazer uma descrição vívida. Um desconhecido em um lugar solitário é algo que se permite que cause medo a uma jovem criada no âmbito privado; e a figura que me encarava era – como alguns segundos mais me asseguraram – tão pouco alguém que eu conhecia quanto a imagem que eu tinha na cabeça.” (página 40)

E, para lhes dar mais subsídios para a construção da imagem da governanta, mais uma pequena passagem:

“A fascinação dos meus pequenos pupilos era uma alegria constante, que me levava a refletir sobre a futilidade de meus medos originais e a aversão que eu entretivera em relação a um trabalho próximo da literatura burocrática. Não haveria nada de burocrático, aparentemente, e não seria uma labuta; como não poderia ser agradável um trabalho o que se apresentava como beleza diária? (página 44)

Há elementos góticos – ambientes pouco iluminados por uma lareira, sensações de que alguém observa a protagonista através de vidraças, estantes cobertas com livros antigos, coisas entrevistas numa paisagem cheia de neblina. Mas nunca será algo que resvale para o mórbido, como nos contos do americano Edgar Allan Poe. Aliás, a certa altura, o texto de James faz referência a uma outra obra, da escritora Ann Radcliff, Os Mistérios de Udolfo; este é um livro de literatura gótica inglesa, apontado, inclusive, como forte influência para Jane Austen escrever o seu A Abadia de Northanger.

Veja, você que me lê: temos uma narradora em primeira pessoa, protagonista da história; temos uma mansão em que vivem a Sra. Grose, a governanta, as duas crianças muito imaginativas, como se verá; temos um passado obscuro, envolvendo o valete Quint e a governanta Jessel, dois empregados já falecidos. A narradora substitui exatamente a Srta. Jessel.

Pelos trechos selecionados para esta resenha, podemos notar o caráter reflexivo, mas dado a expansões de sensações e sentimentos da mulher que nos conta a história. Reserve estes elementos. Já, já, voltaremos a eles.

Numa passagem crucial para a tentativa de entender este A Outra Volta do Parafuso, do capítulo XI, selecionamos outra passagem, bastante significativa. É o momento em que a governanta olha pela janela, à noite, e vê um vulto lá fora, no gramado. Este vulto não olha diretamente para ela; mira algo mais acima, mas lhe causa forte impressão. Ao fixar melhor, vê tratar-se de ninguém menos que o “pobre Miles”. Segue-se um estranho diálogo, pois ela o questiona por ter se exposto ao frio a à escuridão da noite:

“— Deve me dizer agora, assim como toda a verdade: para que saiu? O que estava fazendo lá fora?

Ainda posso ver seu sorriso maravilhoso, o branco de seus belos olhos, a revelação de seus dentes claros, brilhando para mim no crepúsculo.

— Se eu contar o motivo, você entenderá?

Isso fez meu coração saltar da boca. Ele pretendia me contar o motivo? Nenhum som saiu de meus lábios para o incentivar, e percebi que respondia apenas assentindo repetidamente, ainda que de maneira vaga. Ele foi a personificação da gentileza, e enquanto eu balançava a cabeça me pareceu mais do que nunca um pequeno príncipe de conto de fadas. Foi sua animação, de fato, que me ofereceu uma trégua. Seria mesmo bom se ele realmente me contasse?

— Bem – ele disse afinal –, exatamente para que isso acontecesse.

— Isso o quê?

— Para que pensasse em mim, para variar, como malvado!” (página 88)

Um pouco de contextualização sempre é bem-vinda, notadamente se o livro lido por nós possui referências de épocas já recuadas, como é o caso. A Outra Volta do Parafuso foi escrito sob a cultura da chamada Era Vitoriana inglesa. Costuma-se pensar nela como uma sociedade altamente repressora, cheia de regras do que seriam os bons costumes e isto é verdade. Mas, também é verdade, nesta época surgem valores como o naturalista Charles Darwin, autor da teoria da evolução das espécies; surge o gigante Sigmund Freud, pai da psicanálise.

É certo que Henry James tomou conhecimento das teorias freudianas. Suas histórias, de cunho marcadamente psicológico lhe custaram, inclusive, a crítica de seus personagens serem excessivamente mentais, não têm vida fora deste campo mental. Aqui vai outra informação: o irmão de Henry, William James, é um dos criadores da moderna psicologia e pensador influente.

Meu caro leitor, havia pedido a você para guardar algumas informações sobre a narradora e lhe prometi retornar a elas. Pois bem, vamos lá.

Ao criar uma narradora assim, afetada diretamente pelos fatos que narra, e sendo ela a única voz narrativa a nos chegar, temos a subjetividade da narração. Como é uma narradora reflexiva, mas muito impressionada (sensações, sentimentos), temos aí uma depoente não confiável. E o romance ainda faz mais: descobrimos que as crianças maravilhosas não são tão maravilhosas assim, Miles é capaz de montar uma armadilha para convencer a governanta de que ele é, para variar, um malvado!

Não há saída para a interpretação desta obra literalmente fantástica: ou o leitor pertence ao time dos “metafísicos” e crê que os fantasmas vistos pela protagonista são realmente fantasmas, ou o leitor se enquadra no time dos “psicólogos” e parte da ideia de os fantasmas não passarem de alucinações da governanta.

Se você, com seus botões, está aproximando, até certo ponto, Henry James de Machado de Assis, está certo. A Outra Volta do Parafuso e Dom Casmurro têm narradores não confiáveis, dando seus depoimentos. Por isso, tanta tinta se gastou na defesa de uma e de outra tese: os fantasmas são reais? Os fantasmas são alucinações? Afinal, Bentinho foi traído por Capitu? Ou ela é inocente, tudo não passando das projeções de um homem inseguro de si próprio?

Um outro ponto – este para o time dos “psicólogos”, se os fantasmas são alucinações da protagonista, de que natureza seriam tais mentalizações?

Uma corrente muito forte elabora a tese de serem tais alucinações de fundo sexual. Para isto, servem-se de Freud e das questões da libido – sobretudo da incompreendida libido feminina, dentro de uma sociedade vitoriana que negava a realização sexual às mulheres. O encantamento da narradora com o pequeno Miles, no trecho exposto acima, transcrito da página 88, é bastante sugestivo, não?

Creio ser uma bobagem o esforço de esclarecer estes dilemas, tendo em vista que tais autores geniais planejaram as obras assim, as narrativas desejam ficar no limbo, na fugacidade, propõem a dúvida.

Resta finalizar. As histórias de fantasmas de Henry James são deste jeito, “tortas quanto ao gênero”. As criações deste autor não são macabras; talvez a gente possa dizer que assustam os outros personagens mais pela sua inconsistência não humana... mas aí, possivelmente, quem está tendo alucinações é o autor desta resenha. 

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Resenha Nº 208 - Alguém Para Correr Comigo, de David Grossman



Título original: Mishehu larutz itô

Autor: David Grossman

Tradutor: George Schlesinger

Edição: TAG/Companhia das Letras

Edição: 1ª

Copyright: 2000

ISBN: 978-65-5921-368-9

Gênero literário: Romance

Origem: Israel (hebraico)

 

David  Grossman nasceu na cidade de Jerusalém, no ano de 1954. Formou-se em filosofia e teatro e é hoje um dos nomes de destaque em seu país, quando o assunto é literatura. Sua obra é mundialmente conhecida pelo tom pacifista; ele acredita que a literatura pode ser um poderoso recurso para resgatar o aspecto humano do conflito.

Seus trabalhos abrangem ficção e não ficção. Relaciono aqui apenas os livros de ficção: Duelo (1982), The Smile of The Lamb (1983), Amor (1986), O Livro da Gramática Interior (1991), O Garoo Zigue Zague (1994), Em Carne Viva (1998), Alguém para Correr Comigo (2000), Her Body Knows: Two Novellas (2003), Desvario, Até O Fim da Tarde A Mulher Foge (2008), Fora do Tempo (2012), Um Cavalo Entra num Bar (2017) e A Vida Brinca Comigo.

“Um cão galopa pelas ruas, e atrás dele corre um rapaz. Uma longa corda une os dois e se embaraça nas pernas das pessoas, que ficam passando de um lado a outro, e se irritam e xingam: o rapaz murmura sem parar: “Desculpe, desculpe” e, em meio às desculpas, grita para o cachorro: “Pare! Stop!”, e uma vez, cúmulo da vergonha, escapa-lhe também um “Porra!”. E o cachorro continua correndo.” (página 9)

Este parágrafo inicial abre o romance com a técnica que se convencionou nomear com a expressão latina in medio res, isto é, “a ação no meio”. Melhor explicado: não há uma progressiva introdução, como nos romances antigos, em que personagens primeiro eram apresentados e se procurava estabelecer a ligação entre eles. Depois, vinha a ação. Aqui, o cachorro e o menino, em desabalada carreira, são apresentados e não sabemos quem são, do que correm e nem por quê.

Este arco narrativo se alonga por boa parte do livro; entretanto, nas páginas 92 acontece a introdução de outro arco, que também se estenderá:

“Tamar levantou-se da floreira de pedra e ficou em silêncio refletindo. Por um instante teve a impressão de haver sido sequestrada para um lugar distante, e seus olhos se arregalaram ainda mais, fixos no espaço vazio. E só quem acredita em coisas sobrenaturais diria que, numa fração de segundo, um raio atingiu seu cérebro e, sem que ela entendesse, foi tomada por uma estranha e vaga profecia: que após um tempo não muito longo, a quatro semanas de hoje, ela perderia sua Dinka, e que um rapaz que ela não conhecia sairia à sua procura seguindo cada um de seus passos por toda Jerusalém.” (página 92)

Podemos agora preencher alguns porquês. O rapaz que corre atrás do cão chama-se Assaf e trabalha na prefeitura local. O animal foi encontrado perambulando pelas ruas da cidade e foi capturado. Como ele portava identificação na coleira, Assaf foi incumbido de uma missão: encontrar o dono do cachorro, fazê-lo preencher um questionário e cobrar dele uma espécie de multa.

O cão, de início, parece facilitar o trabalho de Assaf; leva-o a vários pontos conhecidos, na procura aflita de sua dona. E se aproxima, pouco a pouco, de um endereço importante – uma propriedade antiga, onde há uma torre em que reside uma freira de nome Teodora. A esta altura, já descobrimos que o cão não é um cão, é uma cadela. E a placa de identificação da coleira diz o nome: Dinka. E mais, a cachorra enlouquece de alegria ao receber as carícias de Teodora.

O parágrafo que abre o segundo arco narrativo adianta algumas coisas. Dinka pertence a Tamar. É ela que Assaf terá de encontrar, para lhe devolver o animal, ao qual já se afeiçoa, fazê-la preencher o tal questionário guardado em seu bolso e cobrar-lhe a tal multa.

Entretanto, se o parágrafo junta partes, estabelece outras questões cruciais para o prosseguimento do romance. Por que Tamar está ali, parada, tão reflexiva? Por que ela tem a impressão de ter sido sequestrada? Por que ela perdeu Dinka? O que, exatamente, ela está fazendo?

Tamar é uma cantora e se apresenta nas ruas de Jerusalém:

“Mesmo sem abrir os olhos, ela consegue sentir como a rua se parte ao meio, não no comprimento nem na largura, e sim entre a rua que existia antes de ela cantar e a rua que existe depois. É uma sensação clara e precisa, e ela se sente segura. Não precisa olhar. A pele está sentindo: as pessoas aos poucos vão parando, outros dão a volta e retornam hesitantes ao lugar de onde vem o som. Parados. Atentos. Esquecem-se de si próprios ao ouvir sua voz.” (página 93)

Voltemos ao arco anterior, o de Assaf e Dinka. Eis que Assaf é preso por dois policiais – um homem e uma mulher. Levam-no à delegacia para colher depoimento, levam também Dinka, sem que o rapaz entenda o que está acontecendo.

“Uma chave girou na fechadura, e Assaf pulou do chão para o banco. O investigador entrou e chegou a ver o pulo assustado, e Assaf imediatamente sentiu-se culpado. Junto com o investigador entrou uma mulher jovem e simpática. Disse seu nome a Assaf, Sigal ou Sigalit, ele não entendeu bem, acrescentando que era encarregada da investigação, especializada em delinquência juvenil, e que iria conversar come junto com o investigador. Perguntou se ele queria que algum parente fosse chamado para estar presenta ao interrogatório, e Assaf, apavorado, quase gritou que não.” (página 110/111)

Assaf não entende nada, a princípio. O que fizera ele? Por que está detido? As perguntas não demoram a ser respondidas:

“Ouça bem”, disse [o investigador] após um segundo, “já estou há sete anos nesse sérvio, e, todo mundo sabe, tenho memória fotográfica. O seu cachorro fedorento, eu já vi, não faz um ano, nem dois, faz menos de um mês. E ele estava junto com uma garota, de quinze anos, mais ou menos, talvez dezesseis. Cabelo cacheado, preto, comprido, mais ou menos um metro e sessenta, rosto bonito.” O investigador falava nesse momento voltado para a mulher, e sem dúvida tentava impressioná-la com sua memória: “E ela já estava nas minhas mãos, no meio de uma transação com o anão da praça Zion, e se não fosse esse cachorro filho da p...” (página 111)

Assaf fora preso por causa de Dinka. Fica claro que Tamar estava envolvida em algo errado e, ao ser abordada, a cadela reagira, mordendo a pena do investigador. Entretanto, Assaf consegue se safar desta, ao ser identificado como funcionário da prefeitura em missão de devolução do bicho a alguém de direito e, portanto, inocente do que o acusavam.

Mas ficamos com a pulga atrás da orelha. Então Tamar estava envolvida em alguma coisa suspeita? O problema é o que acontece durante os shows dos agenciados, como fica explícito nesta passagem:

“Minha carteira, com todo o dinheiro e os documentos.” Ela tinha um rosto gordo e vermelho, veias saltando em torno do nariz enorme e na cabeça uma torre de cabelos loiros cintilantes. “Hoje o patrão me deu trezentos shekels para o casamento da minha filha. Trezentos shekels! Ele nunca dá tanto dinheiro! E no caminho eu escuto você cantar, paro só um momento, oy!, sou uma idiota! Agora... nada, não tem mais nada!” Sua voz foi morrendo de pesar e incompreensão.

Sem hesitar, Tamar lhe estendeu todo o dinheiro que havia no chapéu. “Pegue.” (página 168-169)

Cortemos de novo. Tamar tem um contato com dois agenciadores de talentos. Mantém um local, onde dão abrigo e comida, em troca de os agenciados exporem suas artes ao público. As pessoas deixam dinheiro aos artistas de rua; estes têm de cumprir uma agenda, com shows em lugares públicos.

“O que você precisa conhecer? Eu sou a vovó, e ele, o vovô. Velhos! E há um rapaz lá. Pessach, que é o gerente, e ele é gente boa, pode acreditar, queridinha, é um garoto de ouro!” Tamar olho para os dois desesperada. Era isso mesmo. Esser era o nome que Shai mencionara quando lhe telefonou de lá. Pessach. O homem que lhe dera uma surra, que quase o matara de tanto bater. A velha prosseguiu: “E ele tem esse local exatamente para jovens como você”.

O grande problema aqui é o acontecimento enquanto Tamar  canta. Batedores de carteira roubam as pessoas.

Shai é o irmão desaparecido de Tamar. A nossa experiência com a estrutura do romance nos diz que, claro, os dois arcos narrativos vão se aproximar e, em dado momento, vão se misturar. É próprio de uma boa obra não deixar pontas desamarradas. Aqui deixo o leitor com o gostinho do quero-mais. Não sou um estraga-leitura...

Você, leitor que me lê, já sacou, este Alguém para correr comigo tem uma condução em zigue-zague. E Grossman faz este trabalho de maneira muito competente. Os deslocamentos temporais são precisos e com bons indicadores, que levam o leitor e entender os fatos anteriores e posteriores dos dois arcos.

Durante a leitura, me lembrei muito de Oliver Twist, de Charles Dickens – lido há muito tempo – e o ponto de contato entre as duas obras é a ambiência dos jovens num submundo que perverte a inocência e joga-os num mundo adulto do pior jeito possível. A revista da TAG, que acompanha este livro, confirma a aproximação.

A narrativa tem um tom delicado, as frases têm uma respiração tranquila, apesar da realidade crua do que narram, no mais baixo substrato social de uma cidade grande. Exploração de mão-de-obra juvenil, drogadição:

“Porque, ela pensou, o que eu sou em comparação a eles? Uma menina boazinha, caseira, um passo ou outro fora da linha. E eles, com que coragem se recusavam a ser parte do jogo cínico e hipócrita do mundo, do jogo de força e ambição... Naquele momento realmente teve inveja deles – da liberdade, da coragem de quebrar as regras, de se revoltar assim, até o fim de renunciar à segurança da casa, dos pais, da família, que, de toda forma não passavam de uma grande ilusão, um tipo diferente de droga tranquilizante, capaz de eliminar os medos...” (página 278)

Alguém para correr comigo é uma leitura marcante. Sem termos difíceis, é um projeto em que o autor deseja encontrar o seu leitor sensível ao tema. Olha o mundo com tristeza, olha a natureza humana com os olhos marejados.

Afinal, concluo eu, se condeno a humanidade, condeno-me como parte incontornável dessa mesma humanidade. E há dois caminhos: ter esperança e batalhar para que ela, a esperança, não morra ou entregar os pontos de vez.

Tamar manteve a esperança. Assaf manteve a esperança. Ou Tamar não procuraria resgatar o irmão. Ou Assaf teria desistido de cumprir a missão que tomara nos braços. 

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Resenha nº 207 - O Senhor das Horas, de Autran Dourado







Título: O Senho das Horas

Autor: Autran Dourado

Editora: Rocco

Copyright: 2006

ISBN: 85-325-2124-8

Gênero literário: conto

Origem: literatura brasileira

 

Waldomiro Freitas Autran Dourado é natural de Patos de Minas, MG. Passou sua infância nas cidades mineiras de Monte Santo de Minas e São Sebastião do Paraíso. Aos 17 anos, mudou-se com a família para Belo Horizonte, onde estudou Direito – ao mesmo tempo em que trabalhava como taquígrafo e jornalista. Posteriormente, mudou-se para o Rio de Janeiro.

Autran Dourado – como ficou conhecido do seu público – foi secretário de imprensa do governo Juscelino Kubitschek. Em 1961, o autor se destaca com sua obra A Barca dos Homens, levando o prêmio de melhor romance, outorgado pela União Brasileira de Escritores.

Prolífico, escreveu os romances: Teia (1947), Sombra e Exílio (1950), Tempo de Amar (1952), A Barca dos Homens (1961), Uma Vida em Segredo (1964), Ópera dos Mortos (1967), O Risco do Bordado (1970), Os Sinos da Agonia (1974), Novelário de Donga Novais (1976), Novelas de Aprendizado (1980), A Serviço de Del-Rei (1984), Lucas Procópio (1985), Um Artista Aprendiz (1989), Monte da Alegria (1990), Um Cavalheiro de Antigamente (1992), Ópera dos Fantoches (1994) e Confissões de Narciso (1997).

Seus contos foram: Três Histórias na Praia (1955), Nove Histórias em Grupos de Três (1957), Solidão Solitude (1972), Violetas e Caracóis (1987), Melhores Contos (2001), O Senhor das Horas (2006), Armas & Corações (1978), as Imaginações Pecaminosas (1981).

Além de sua obra ficcional, Dourado produziu ensaios: A glória do Ofício. Nove histórias em Grupos de Três (1957), Uma Poética de Romance (1973), Uma Poética de Romance: Matéria de Carpintaria (1976), O Meu Mestre Imaginário (1982), Breve Manual de Estilo e Romance (2003).

Prêmios recebidos por ele: prêmio Goethe, Jabuti (1982), Camões (2000), Machado de Assis (2008).

Autran Dourado nasceu em 18/01/1926 e faleceu 30/09/2012.

Descobri o nosso escritor quando li Os Sinos da Agonia, obra indicada para o vestibular da UFMG (eu já cursava a faculdade, mas fui atraído pelo título e não me arrependi); ali começava uma “fãzice” que perdura até os dias de hoje.

Este O Senhor das Horas, em edição da Rocco, é um dos volumes que ainda não tinha lido. Trata-se de um livro de seis contos, ambientados na cidade fictícia de Duas Pontes. Duas Pontes é a ambientação, aliás, de várias obras deste escritor mineiro, já comparado a William Faulkner, tanto pela constância na ambientação imaginária, quanto pelo estilo trabalhado.

Autran acredita que cada história criada deve ter seu meu melhor estilo de expressão. Não é diferente com os seis trabalhos que compõem este livro. Os títulos são O senhor das horas, Memórias de um Chevrolet, Morte Gloriosa, José Balsemão, Uma anedota de velório e O herói de Duas Pontes.

O senhor das horas fala a respeito do coronel Domingos Monteiro, um dos importantes da localidade de Duas Pontes:

“Ele não era como um daqueles coronéis do interior, grossos, incultos e mandões. Um homem fino, de boa leitura, fez seus versos, estudou em São Paulo, não chegando a concluir o curso de direito, ficou no terceiro ano porque, filho único, com a morte do pai, foi chamado pela mãe para tomar conta da fazenda e do armazém de beneficiar café. Frequentava as rodas literárias, chegou mesmo a publicar uns poucos versos dos muitos que tinha escrito. A ideia de voltar para Duas Pontes era só para as férias, quando frequentava os poucos letrados da cidade.” (página 12)

Memórias de um Chevrolet nos conta a história de Júlio Macedônio, alto figurão local, que adquire um automóvel Chevrolet novinho em folha para o filho, Vitor Macedônio. Acontece que o filho não tem vocação para dirigir e o leitor pode imaginar os desdobramentos narrados sempre de um ponto de vista irônico:

“Agora o carro corria pela estrada, eu no banco traseiro, vovô e Zico no bando da frente. De vez em quando, já iniciando o seu aprendizado, vovô perguntava a serventia desse e daquele botão, desse ou daquele pedal ou alavanca. O carro ia pra nós hoje devagar, mas naquele tempo era veloz, e vovô disse não tem nada como a velocidade e o progresso. O gênio americano ainda assombrará o mundo.

Eu que já tinha lido o meu Júlio Verne, solenemente disse com toda certeza.” (página 47)

Morte gloriosa aborda o personagem Bê P. Lima, outra figura interessantíssima de Duas Pontes. Pois Bê era mulherengo que só, foi viver um tempo em Paris. Ele seria hoje o que a gente moderna chamaria de um mauricinho, nunca soube o que seria fazer força, um folgado.

Pois bem, de lá da cidade luz Bê trouxe uns ensinamentos sobre a arte de fazer amor que caíram bem no prostíbulo da cidade, a Casa da Ponte:

“Na sala da Casa da Ponte, ele pontificava as lições que recebera das insignes mestras francesas. Não só as posturas sofisticadas, mas noções de higiene que aprendera na França eram matéria do seu ensinamento. E era de se ver com que avidez e desajeitamento se entregavam ao aprendizado as alunas de Duas Pontes. Os homens o consultavam sobre detalhes e lhe confidenciavam insucessos que os cobriam de vergonha. Meu caro, você é um homem e não um potro, dizia ele, paciente educador de homens rudes. Você foi com muita sede ao pote, daí o fracas. O quê, a gente perguntava. O natural e inevitável fracasso, dizia ele paciente. Como os homens eram broncos demais, ele viu que a maneira mais eficaz, e que lhe dava mais prazer, era transmitir às mulheres, em geral mais sensíveis e habilidosas do que os homens, os ensinamentos da matriz da cultura europeia que era Paris. Foi ele o introdutor do bidê em Duas Pontes.” (página 61)

José Balsemão nos traz a história deste personagem, que dá nome ao conto, mais conhecido pelo seu apelido de Zé Cabrito. Acontece que uma crise de morfeia se alastra por Duas Pontes. Esta doença é um tipo de esclerodermia, isto é, uma esclerose de pele, que abre feridas. Estas feridas podem se aprofundar e atingir os ossos.

“Foi assim que um dia sá Milurde apareceu com a maior novidade. O velho Zé Cabrito, um tipo amulatado que tinha barbicha pontuda, um tanto amarelecida na ponta (daí o apelido, pela parecença com o bode), cujo vero nome era José Balsemão, muito doente, vivia trancado noite e dia num quarto escuro, só de noite, não se sabia por quê, acendiam uma lamparina, é capaz de que para a sua cara não ser vista pelos visitantes, dera para fazer cura de inumeráveis doenças com a sua simples bênção.

Sem ouvir ninguém, sem nem mesmo pedir permissão a vovó Naninha (com certeza por temer a negativa da velha), decidiu por conta própria levar João para receber a bênção de Zé Cabrito. Ela prometeu a João, a princípio atemorizado, que ele ficaria livre de suas dores terríveis, noites maldormidas e outras mazelas. Tinha a certeza antecipada da cura: basta muita unção, não ser São Tomé duvidoso, disse ela.” (página 74)

Uma anedota de velório narra os rituais – digamos assim – dos velórios numa cidade de interior:

“Quando soava a última pancada do relógio anunciando a meia-noite, começavam a servir o vinho, café ou a boa e gostosa cachaça, forte e seca, tirada do alto do alambique. Como cachaça de barriga vazia não faz bem ao estômago e leva ligeiro à embriaguez, se servia o competente tira-gosto, o forra-bucho de muita proteína, como torresmo, pele de porco bem sequinha, crocante, pedaços de linguiça e mesmo costeletas de porco.” (página 78)

 O herói de Duas Pontes tem como personagem central Oriosvaldino Cunegundes Marques de Sousa Veras. É o último e o maior conto do livro.

Em 1930, estoura uma revolução sangrenta entre, de um lado, Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul que depôs o governo de Washington Luiz, impediu a posse do eleito Júlio Prestes, defendido por São Paulo. O Golpe de 30 – como ficou conhecido – encerrou, então, a república velha. A título de informação, deste impasse surge a propositura de Getúlio Vargas, então governador do Rio Grande do Sul, como governo provisório. Getúlio não convoca eleições e impõe a ditadura.

 Muitos mortos, de parte a parte, e o tal Oriosvaldino Cunegundes se alista para lutar do lado mineiro.

“No alinhavar de nossa história não há muito o que contar, só inventando. Aventura mesmo, aventura de verdade, ele só teve ma. Só praticou na vida um ato de bravura que o elevou acima do comum dos mortais. Mas não convém adiantar: uma história não deve ser apressada, tem-se de compor devagarinho, é que nem bordado, deve obedecer a um risco, é o que se diz. Quem tem pressa tropeça, devagar com o andor que o santo é de barro, nos aconselha o adágio popular.” (página 88)

Como vimos, ironia e sarcasmo não faltam neste O Senhor das Horas. Autran Dourado valoriza a cultura mineira, incluindo expressões, adágios populares, jeito de ser do mineiro, sobretudo o interiorano.

Nosso autor costuma incluir em seus textos, reflexões sobre o fazer literário, que se convencionou chamar de metaliteratura, como no último conto, em que ele considera que escrever uma história deve ser como um bordado, tem de seguir um risco, um planejamento.

Falar das influências presentes no estilo de um autor é algo complicado, mas a crítica aponta doses de Goethe, James Joyce e Stendhal; do ponto de vista filosófico, fazem presença Platão, Aristóteles, Nietzsche e Schopenhauer.

 Autran Dourado é, não só pela minha assumida “fãzice”, um escritor de primeiro time. Vou, com certeza, revisitá-lo em outros momentos, ainda mais que a editora Harper Collins Brasil está reeditando as obras deste incontornável, mas esquecido escritor.

Para a minha alegria. 

domingo, 21 de maio de 2023

Resenha nº 206 - O Homem Que Sabia Javanês, de Lima Barreto

 



Título: O homem que sabia javanês

Autor: Lima Barreto

Ilustrações: Odilon Moraes

Editora: Cosac & Naify

Copyright: 2003

ISBN: 85-7503-199-6

Gênero literário: Conto

Origem: literatura brasileira

 

Afonso Henrique de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro, em 13/5/1881, quando a cidade carioca era então capital do império. Ele morreu no mesmo local, em 01/11/1922, mas já sob o regime da primeira república brasileira. Lima Barreto publicou vasta obra, principalmente em periódicos populares, ilustrados; alguns deles, de cunho anarquista. Visitou gêneros literários variados, como romance, conto, crônica.

A maior parte de sua obra foi redescoberta e ganhou o formato livro a partir do trabalho de Francisco de Assis Barbosa e de outros pesquisadores, levando o nosso resenhado a ser reconhecido como um dos maiores escritores brasileiros.

Dele, disse Monteiro Lobato, em carta ao escritor Godofredo Rangel (carta de 01/10/1916):

“Conheces Lima Barreto? Li dele, na Águia, dois contos, e pelos jornais soube do triunfo do Policarpo Quaresma, cuja segunda edição já lá se foi. A ajuizar pelo que li, este sujeito me é romancista de deitar sombras em todos os seus colegas coevos e coelhos, inclusive o Neto. Facílimo na língua, engenhoso, fino, dá impressão de escrever sem torturamento – ao modo das torneiras que fluem uniformemente a sua corda-d’água."

Autor de obra hoje reconhecida, é de sua autoria Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), Numa e Ninfa (1915), Clara dos Anjos (1922/1948) – este último romance, póstumo.

Entre as novelas, escreveu O Subterrâneo do Morro do Castelo (1905/1997 – póstumo), Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919). Contos, Histórias e Sonhos (1920) e este O Homem Que Sabia Javanês (1997, póstumo).

Considero uma falha na minha formação de leitor atento o ter lido tão pouca coisa deste autor, o que trato de começar a remediar na presente resenha. Sua literatura recobre-se com o tema das desigualdades sociais (é bom lembrar, Lima Barreto era mulato), hipocrisia dos homens e mulheres em suas relações sociais.

Antônio Cândido, famoso crítico literário brasileiro, diz que a concepção literária de Lima Barreto “de um lado favoreceu nele a expressão escrita da personalidade”, enquanto de outro “pode ter contribuído para atrapalhar a realização plena do ficcionista”. Estamos falando do panfletarismo, da preocupação documental, da “literatura militante” que compõe o projeto ficcional deste escritor.

Inimigo ferrenho do beletrismo, Lima Barreto mirava suas baterias contra nomes importantes de sua época, como Coelho Neto. Inevitável, Barreto sofreu de um apagamento proposital por muito tempo.

Lima tem um estilo direto, coloquial – o que é um dos contributos para a eclosão do modernismo no Brasil. Não poupa ninguém, em suas denúncias. Recentemente, a partir de 2016, as pesquisas mostraram em torno de 164 textos inéditos, sob pseudônimos. Sua obra hoje, apesar dos defeitos apontados por críticos, de alguma forma são um bloco coerente de um grande escritor.

Não é demais lembrar, por exemplo, que o aclamado romance Os Demônios, de Dostoiévski, também foi concebido como romance panfletário.

Desculpe-me, leitor, pelo alongamento da exposição de dados e críticas sobre Lima Barreto, mas este procedimento julgo necessário para um escritor tanto tempo no limbo.

O homem que sabia javanês é um conto. A crítica acerba, sarcástica, é sobre o bacharelismo vazio, ou seja, a valorização dos títulos acadêmicos apenas por serem títulos acadêmicos, mais ainda, o enaltecimento da pretensa sabedoria que a nada serve.

“Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às responsabilidades, para poder viver.

Houve mesmo, uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho”. (página 3)

É neste ambiente que Castelo – narrador-personagem – se declara professor de javanês. Ora, tal informação é de causar espanto, pois ninguém ali havia ouvido falar do tal idioma, quanto mais dar de cara com um professor de javanês! E o amigo Castro ainda escuta de Castelo que ele havia sido nomeado cônsul por tal saber.

O conto se desenvolve, então, numa conversa de bar, regada a cerveja, enquanto as peripécias castelinas vão sendo narradas.

“Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes: se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os “cadáveres”. Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas, entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e à língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo malaio-polinésio, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.” (página 5)

Stop necessário. Já foi dito que uma das vertentes da literatura de Lima Barreto é a sátira menipéia. Por este termo, tão importante para teóricos como Bakhtin, entende-se a sátira dirigida às ideias e não a indivíduos. Tendo origem nos escritos de Menipo, escritor da Grécia antiga, influenciou nomes como Dostoiévski, Machado de Assis, Voltaire, etc.

Em O homem que sabia javanês a sátira menipeia já começa no título. Não se trata da crítica a um indivíduo, não; ataca a cultura brasileira, o vira-latismo brasileiro – como diria o saudoso Odorico Paraguaçu, personagem de Dias Gomes – privilegiadora de falsos sábios, títulos vazios e discursos empolados.

Castelo torna-se professor de javanês. E logo arruma um emprego, o de lecionar esta língua ao doutor Manoel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga. Tudo ia bem, até o Barão lhe perguntar como havia aprendido o idioma javanês:

“Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javanês. Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi javanês.” (página 13)

Mais não é possível dizer, sem aprofundar em spoilers. O conto é divertidíssimo mesmo hoje em dia, pois que, no fundo, no fundo, pouca coisa mudou...

Disse que li pouca coisa do Barreto. Não me sinto muito à vontade ao dizer ter lido apenas O triste fim de Policarpo Quaresma (outra crítica social devastadora). E tanta é a atualidade deste romance que poderia ensinar a muitos praticantes de desvarios militantes atuais um pouco de comedimento.

O homem que sabia javanês. Uma das mais saborosas leituras que já fiz. E – digna de nota – a edição da Cosac & Naify é ótima. Os desenhos de Odilon Moraes quase contam o conto de Lima Barreto por imagens. Em formato grande, das Graphic novels, o volume faz parte da série dedinhos de prosa, uma coleção de textos leves, destinadas principalmente a despertar o gosto pela leitura em jovens-adultos (Young-Adults).

Adorei. 

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Resenha nº 205 - Linha de Sombra, de Joseph Conrad




Título original: The Shadow-Line

Autor: Joseph Conrad

Tradutora: Maria Antônia Van Acker

Editora: Globo

Copyright: 2003

ISBN: 85-8966-514-3

Gênero Literário: romance

Origem: Literatura inglesa

 

Joseph Conrad (Józef Teodor Konrad Korzeniowski) nasceu na Polônia, em 03/12/1857. Nesta época, a Polônia havia sido ocupada pela Rússia. Seu pai foi preso por atividades contra os ocupantes russos e condenado a quatro anos de trabalhos forçados na famigerada Sibéria. Sua mãe morreu no exílio e, quatro anos depois, perdeu também o pai. Estes dados vão nos dar alguma luz sobre o porquê do sentimento anticolonialista do nosso escritor.

Sob os cuidados do tio, Conrad viajou para Marselha, França, onde iniciou sua carreira como marinheiro. Tentou um suicídio fracassado em 1878. Passou a servir num barco britânico, visando evitar o serviço militar obrigatório russo. Aos 21 anos, aprende inglês – língua que mais tarde dominará com excelência.

A primeira vez que pisou solo inglês foi em Lowestoft, Suffollk. Viveu em Londres e, posteriormente, perto da Cantuária, na cidade de Kent. A esta altura, já tinha obtido a cidadania inglesa.

É impressionante a qualidade desta obra. Entre tantas coisas boas que deixou, temos, em língua portuguesa, Nostromo (1904), Coração das Trevas (1899), Lord Jim (1900), Vitória (1915), O Agente Secreto (1907). Este Linha de Sombra é de 1917.

É indissociável a experiência marítima de Joseph Conrad e sua literatura. Grande parte de sua ficção é ambientada no mar. Este é o primeiro livro de Conrad que leio, embora tenha outros na minha estante. Estou impressionado por este livro.

Linha de Sombra é um romance de tiro curto (na edição que tenho, 159 páginas), e conta com uma densidade poucas vezes vistas no gênero. Aqui tudo funciona de modo muito bem concatenado. Há – como na maioria de suas obras – o mar, mas aqui não é só ambiência. É metáfora. Isto pode começar a ser entendido a partir do título, Linha de Sombra. Algo que divide, que separa; uma transposição. A linha é de sombra, é incerta. O que haverá do outro lado? Concordo, é ainda fluido este adequado título. Deixemos falar nosso autor, no parágrafo de abertura do romance:

“Apenas os jovens têm tais momentos. Não me refiro aos muitos jovens. Não. Os muito jovens não têm, a bem dizer, momento algum. É um privilégio do começo da juventude viver adiante de seus dias, em toda a bela continuidade de esperança que não conhece pausas ou interrupções.

Fecha-se atrás de si o pequeno portão da mera meninice – e adentra-se um jardim encantado. Até as sombras aqui resplandecem cheias de promessas. Cada curva da vereda tem suas seduções. E não porque se trate de um país desconhecido. Sabe-se muito bem que a humanidade toda já trilhou aquela senda. É o encanto da experiência universal, da qual se espera extrair uma sensação incomum ou pessoal – um algo que seja só nosso.” (página 15)

Considero este um dos melhores parágrafos de abertura de tudo o que já li. Aqui está a linha-mestra desta obra. A vida de toda a gente, se vista em plano maior, é muito parecida, mesmo quando oscila deste ou daquele jeito. O que nos enriquece é extrair uma sensação incomum ou pessoal – um algo que seja só nosso”. E o que separa homens de meninos? A experiência. A capacidade de reconhecer, se há leis sociais e leis da natureza, que deveremos considerar enquanto vivermos em sociedade, enquanto formos vivos. E o que sinaliza, tanto para o próprio indivíduo, quanto para a sociedade em que vive, que o homem está pronto para as responsabilidades a serem assumidas?

Os ritos de passagem. Os estágios da nossa evolução, do momento do nascimento até o momento da nossa morte, são evidenciados pelos ritos de passagem. O adolescente se transforma em adulto e sinaliza tal fato. Tenho de convencer os meus congêneres da minha aptidão para tomar atitudes mais consequente sobre meus ombros.

Linha de Sombra, então, vai abordar um rito de passagem. Mas, no caso específico deste romance, qual o significado desta linha?

“Éramos apenas quatro homens brancos a bordo, com uma tripulação de grande marinheiros malaios, e dois contramestres malaios. O Capitão encarou-me como se tentasse adivinhar o que me afligia. Mas ele também era marinheiro, e ele também fora jovem certa época. Logo um sorriso insinuou-se por baixo de seu bigode farto, cinza-aço, e ele observou que, é claro, se eu achava que tinha de ir, ele não iria reter-me pela força. E ficou arranjado que receberia baixa na manhã seguinte. Enquanto eu saía do camarim de navegação ele acrescentou subitamente num tom peculiar, ansioso, que esperava que eu encontrasse aquilo por que estava tão ansioso para sair e procurar.

Uma frase suave, enigmática, que pareceu alcançar mais fundo do que qualquer ferramenta com ponta de diamante podia chegar. Eu, sinceramente creio que ele entendeu o meu caso.” (páginas 17/18)

O velho Capitão representa a experiência universal, enquanto o protagonista, jovem ainda, busca a sua sensação própria, a interpretação própria do que seja viver. Ele ainda não sabe, ao certo; mas já se anuncia o incômodo, a insatisfação com o que vinha fazendo:

“Na zona de penumbra entre a juventude e a maturidade, na qual eu me encontrava então, somos particularmente sensíveis àquele tipo de insulto. Temo que o meu comportamento para com o comissário tenha se tornado bastante grosseiro. Mas não estava nele enfrentar qualquer coisa ou pessoa. O hábito das drogas ou da embriaguez solitária, talvez.  E quando perdi a cabeça a ponto de xingá-lo, ele sucumbia e começava a guinchar.” (página 40)

O seu rito de passagem, então, se delineia. Ele será chamado a exercer o cargo de capitão num navio “só seu”, embora se desentenda com o comissário frequentes vezes. Terá de levar a embarcação ao seu destino. É impossível para o protagonista resistir à possibilidade de comandar o navio: a embarcação exerce nele imediato encantamento:

“Um navio! Meu navio! Ele era meu, mais completamente meu para possuir e cuidar do que qualquer outra coisa no mundo: um objeto de responsabilidade e devoção. Ele estava lá à minha espera, enfeitiçado, impossibilitado de sair do lugar, de viver, de sair pelo mundo (até a minha chegada), como uma princesa encantada. Seu chamado me chegara como que vindo das nuvens.” (página 54)

Já em contato com a tripulação, dentro do navio, a consciência de suas decisões começa a se fazer sentir:

“A juventude é uma coisa maravilhosa, um poder incrível – enquanto não se começa a pensar a respeito. Eu senti que estava começando a ficar consciente de si mesmo. Quase contra a minha vontade assumi uma melancólica seriedade. Eu disse: — vejo que o senhor o manteve em muito boa ordem, Sr. Burus.” (página 70)

Não será uma prova fácil para o jovem capitão levar o barco ao seu destino. Há correntes marítimas traiçoeiras, há riscos sem conta no mar. O protagonista, na opinião de seus pares, preparado para capitanear o barco terá de provar, para si, para seus tripulantes, para quem o contratou, que a prática confirma a teoria.

E, uma curiosidade – justificada pela época – não há figuras femininas neste romance. Toda a sua ambiência, como já disse, é o mar e sua zona de influência, os portos, as docas. Em plena época vitoriana, um mundo estritamente masculino.

Joseph Conrad é apontado como um escritor de transição entre a literatura vitoriana de, por exemplo, Charles Dickens (de Oliver Twist) ou Thomas Hardy (de Jude, O Obscuro) e a modernidade de Lawrence ou Joyce.

Consta que o filósofo Bertrand Russel era fascinado pelas obras de Joseph, a ponto de batizar seu filho com o nome do amigo, Conrad. O escritor e o filósofo foram grandes amigos.

A literatura não para de nos trazer referências consistentes, para leitura. Nostromo é apontado, por muitos críticos, como a opus magna deste polonês/inglês. Gostaria mesmo muito de lê-lo; se é considerado a obra-prima, e tendo este Linha de Sombra tão bem arquitetado, Nostromo será mesmo excepcional.

Para quem goste de leituras mais densas, recomendo este incrível romance.