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quarta-feira, 3 de maio de 2023

Resenha nº 205 - Linha de Sombra, de Joseph Conrad




Título original: The Shadow-Line

Autor: Joseph Conrad

Tradutora: Maria Antônia Van Acker

Editora: Globo

Copyright: 2003

ISBN: 85-8966-514-3

Gênero Literário: romance

Origem: Literatura inglesa

 

Joseph Conrad (Józef Teodor Konrad Korzeniowski) nasceu na Polônia, em 03/12/1857. Nesta época, a Polônia havia sido ocupada pela Rússia. Seu pai foi preso por atividades contra os ocupantes russos e condenado a quatro anos de trabalhos forçados na famigerada Sibéria. Sua mãe morreu no exílio e, quatro anos depois, perdeu também o pai. Estes dados vão nos dar alguma luz sobre o porquê do sentimento anticolonialista do nosso escritor.

Sob os cuidados do tio, Conrad viajou para Marselha, França, onde iniciou sua carreira como marinheiro. Tentou um suicídio fracassado em 1878. Passou a servir num barco britânico, visando evitar o serviço militar obrigatório russo. Aos 21 anos, aprende inglês – língua que mais tarde dominará com excelência.

A primeira vez que pisou solo inglês foi em Lowestoft, Suffollk. Viveu em Londres e, posteriormente, perto da Cantuária, na cidade de Kent. A esta altura, já tinha obtido a cidadania inglesa.

É impressionante a qualidade desta obra. Entre tantas coisas boas que deixou, temos, em língua portuguesa, Nostromo (1904), Coração das Trevas (1899), Lord Jim (1900), Vitória (1915), O Agente Secreto (1907). Este Linha de Sombra é de 1917.

É indissociável a experiência marítima de Joseph Conrad e sua literatura. Grande parte de sua ficção é ambientada no mar. Este é o primeiro livro de Conrad que leio, embora tenha outros na minha estante. Estou impressionado por este livro.

Linha de Sombra é um romance de tiro curto (na edição que tenho, 159 páginas), e conta com uma densidade poucas vezes vistas no gênero. Aqui tudo funciona de modo muito bem concatenado. Há – como na maioria de suas obras – o mar, mas aqui não é só ambiência. É metáfora. Isto pode começar a ser entendido a partir do título, Linha de Sombra. Algo que divide, que separa; uma transposição. A linha é de sombra, é incerta. O que haverá do outro lado? Concordo, é ainda fluido este adequado título. Deixemos falar nosso autor, no parágrafo de abertura do romance:

“Apenas os jovens têm tais momentos. Não me refiro aos muitos jovens. Não. Os muito jovens não têm, a bem dizer, momento algum. É um privilégio do começo da juventude viver adiante de seus dias, em toda a bela continuidade de esperança que não conhece pausas ou interrupções.

Fecha-se atrás de si o pequeno portão da mera meninice – e adentra-se um jardim encantado. Até as sombras aqui resplandecem cheias de promessas. Cada curva da vereda tem suas seduções. E não porque se trate de um país desconhecido. Sabe-se muito bem que a humanidade toda já trilhou aquela senda. É o encanto da experiência universal, da qual se espera extrair uma sensação incomum ou pessoal – um algo que seja só nosso.” (página 15)

Considero este um dos melhores parágrafos de abertura de tudo o que já li. Aqui está a linha-mestra desta obra. A vida de toda a gente, se vista em plano maior, é muito parecida, mesmo quando oscila deste ou daquele jeito. O que nos enriquece é extrair uma sensação incomum ou pessoal – um algo que seja só nosso”. E o que separa homens de meninos? A experiência. A capacidade de reconhecer, se há leis sociais e leis da natureza, que deveremos considerar enquanto vivermos em sociedade, enquanto formos vivos. E o que sinaliza, tanto para o próprio indivíduo, quanto para a sociedade em que vive, que o homem está pronto para as responsabilidades a serem assumidas?

Os ritos de passagem. Os estágios da nossa evolução, do momento do nascimento até o momento da nossa morte, são evidenciados pelos ritos de passagem. O adolescente se transforma em adulto e sinaliza tal fato. Tenho de convencer os meus congêneres da minha aptidão para tomar atitudes mais consequente sobre meus ombros.

Linha de Sombra, então, vai abordar um rito de passagem. Mas, no caso específico deste romance, qual o significado desta linha?

“Éramos apenas quatro homens brancos a bordo, com uma tripulação de grande marinheiros malaios, e dois contramestres malaios. O Capitão encarou-me como se tentasse adivinhar o que me afligia. Mas ele também era marinheiro, e ele também fora jovem certa época. Logo um sorriso insinuou-se por baixo de seu bigode farto, cinza-aço, e ele observou que, é claro, se eu achava que tinha de ir, ele não iria reter-me pela força. E ficou arranjado que receberia baixa na manhã seguinte. Enquanto eu saía do camarim de navegação ele acrescentou subitamente num tom peculiar, ansioso, que esperava que eu encontrasse aquilo por que estava tão ansioso para sair e procurar.

Uma frase suave, enigmática, que pareceu alcançar mais fundo do que qualquer ferramenta com ponta de diamante podia chegar. Eu, sinceramente creio que ele entendeu o meu caso.” (páginas 17/18)

O velho Capitão representa a experiência universal, enquanto o protagonista, jovem ainda, busca a sua sensação própria, a interpretação própria do que seja viver. Ele ainda não sabe, ao certo; mas já se anuncia o incômodo, a insatisfação com o que vinha fazendo:

“Na zona de penumbra entre a juventude e a maturidade, na qual eu me encontrava então, somos particularmente sensíveis àquele tipo de insulto. Temo que o meu comportamento para com o comissário tenha se tornado bastante grosseiro. Mas não estava nele enfrentar qualquer coisa ou pessoa. O hábito das drogas ou da embriaguez solitária, talvez.  E quando perdi a cabeça a ponto de xingá-lo, ele sucumbia e começava a guinchar.” (página 40)

O seu rito de passagem, então, se delineia. Ele será chamado a exercer o cargo de capitão num navio “só seu”, embora se desentenda com o comissário frequentes vezes. Terá de levar a embarcação ao seu destino. É impossível para o protagonista resistir à possibilidade de comandar o navio: a embarcação exerce nele imediato encantamento:

“Um navio! Meu navio! Ele era meu, mais completamente meu para possuir e cuidar do que qualquer outra coisa no mundo: um objeto de responsabilidade e devoção. Ele estava lá à minha espera, enfeitiçado, impossibilitado de sair do lugar, de viver, de sair pelo mundo (até a minha chegada), como uma princesa encantada. Seu chamado me chegara como que vindo das nuvens.” (página 54)

Já em contato com a tripulação, dentro do navio, a consciência de suas decisões começa a se fazer sentir:

“A juventude é uma coisa maravilhosa, um poder incrível – enquanto não se começa a pensar a respeito. Eu senti que estava começando a ficar consciente de si mesmo. Quase contra a minha vontade assumi uma melancólica seriedade. Eu disse: — vejo que o senhor o manteve em muito boa ordem, Sr. Burus.” (página 70)

Não será uma prova fácil para o jovem capitão levar o barco ao seu destino. Há correntes marítimas traiçoeiras, há riscos sem conta no mar. O protagonista, na opinião de seus pares, preparado para capitanear o barco terá de provar, para si, para seus tripulantes, para quem o contratou, que a prática confirma a teoria.

E, uma curiosidade – justificada pela época – não há figuras femininas neste romance. Toda a sua ambiência, como já disse, é o mar e sua zona de influência, os portos, as docas. Em plena época vitoriana, um mundo estritamente masculino.

Joseph Conrad é apontado como um escritor de transição entre a literatura vitoriana de, por exemplo, Charles Dickens (de Oliver Twist) ou Thomas Hardy (de Jude, O Obscuro) e a modernidade de Lawrence ou Joyce.

Consta que o filósofo Bertrand Russel era fascinado pelas obras de Joseph, a ponto de batizar seu filho com o nome do amigo, Conrad. O escritor e o filósofo foram grandes amigos.

A literatura não para de nos trazer referências consistentes, para leitura. Nostromo é apontado, por muitos críticos, como a opus magna deste polonês/inglês. Gostaria mesmo muito de lê-lo; se é considerado a obra-prima, e tendo este Linha de Sombra tão bem arquitetado, Nostromo será mesmo excepcional.

Para quem goste de leituras mais densas, recomendo este incrível romance. 

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