Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

domingo, 21 de maio de 2023

Resenha nº 206 - O Homem Que Sabia Javanês, de Lima Barreto

 



Título: O homem que sabia javanês

Autor: Lima Barreto

Ilustrações: Odilon Moraes

Editora: Cosac & Naify

Copyright: 2003

ISBN: 85-7503-199-6

Gênero literário: Conto

Origem: literatura brasileira

 

Afonso Henrique de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro, em 13/5/1881, quando a cidade carioca era então capital do império. Ele morreu no mesmo local, em 01/11/1922, mas já sob o regime da primeira república brasileira. Lima Barreto publicou vasta obra, principalmente em periódicos populares, ilustrados; alguns deles, de cunho anarquista. Visitou gêneros literários variados, como romance, conto, crônica.

A maior parte de sua obra foi redescoberta e ganhou o formato livro a partir do trabalho de Francisco de Assis Barbosa e de outros pesquisadores, levando o nosso resenhado a ser reconhecido como um dos maiores escritores brasileiros.

Dele, disse Monteiro Lobato, em carta ao escritor Godofredo Rangel (carta de 01/10/1916):

“Conheces Lima Barreto? Li dele, na Águia, dois contos, e pelos jornais soube do triunfo do Policarpo Quaresma, cuja segunda edição já lá se foi. A ajuizar pelo que li, este sujeito me é romancista de deitar sombras em todos os seus colegas coevos e coelhos, inclusive o Neto. Facílimo na língua, engenhoso, fino, dá impressão de escrever sem torturamento – ao modo das torneiras que fluem uniformemente a sua corda-d’água."

Autor de obra hoje reconhecida, é de sua autoria Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), Numa e Ninfa (1915), Clara dos Anjos (1922/1948) – este último romance, póstumo.

Entre as novelas, escreveu O Subterrâneo do Morro do Castelo (1905/1997 – póstumo), Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919). Contos, Histórias e Sonhos (1920) e este O Homem Que Sabia Javanês (1997, póstumo).

Considero uma falha na minha formação de leitor atento o ter lido tão pouca coisa deste autor, o que trato de começar a remediar na presente resenha. Sua literatura recobre-se com o tema das desigualdades sociais (é bom lembrar, Lima Barreto era mulato), hipocrisia dos homens e mulheres em suas relações sociais.

Antônio Cândido, famoso crítico literário brasileiro, diz que a concepção literária de Lima Barreto “de um lado favoreceu nele a expressão escrita da personalidade”, enquanto de outro “pode ter contribuído para atrapalhar a realização plena do ficcionista”. Estamos falando do panfletarismo, da preocupação documental, da “literatura militante” que compõe o projeto ficcional deste escritor.

Inimigo ferrenho do beletrismo, Lima Barreto mirava suas baterias contra nomes importantes de sua época, como Coelho Neto. Inevitável, Barreto sofreu de um apagamento proposital por muito tempo.

Lima tem um estilo direto, coloquial – o que é um dos contributos para a eclosão do modernismo no Brasil. Não poupa ninguém, em suas denúncias. Recentemente, a partir de 2016, as pesquisas mostraram em torno de 164 textos inéditos, sob pseudônimos. Sua obra hoje, apesar dos defeitos apontados por críticos, de alguma forma são um bloco coerente de um grande escritor.

Não é demais lembrar, por exemplo, que o aclamado romance Os Demônios, de Dostoiévski, também foi concebido como romance panfletário.

Desculpe-me, leitor, pelo alongamento da exposição de dados e críticas sobre Lima Barreto, mas este procedimento julgo necessário para um escritor tanto tempo no limbo.

O homem que sabia javanês é um conto. A crítica acerba, sarcástica, é sobre o bacharelismo vazio, ou seja, a valorização dos títulos acadêmicos apenas por serem títulos acadêmicos, mais ainda, o enaltecimento da pretensa sabedoria que a nada serve.

“Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às responsabilidades, para poder viver.

Houve mesmo, uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho”. (página 3)

É neste ambiente que Castelo – narrador-personagem – se declara professor de javanês. Ora, tal informação é de causar espanto, pois ninguém ali havia ouvido falar do tal idioma, quanto mais dar de cara com um professor de javanês! E o amigo Castro ainda escuta de Castelo que ele havia sido nomeado cônsul por tal saber.

O conto se desenvolve, então, numa conversa de bar, regada a cerveja, enquanto as peripécias castelinas vão sendo narradas.

“Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes: se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os “cadáveres”. Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas, entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e à língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo malaio-polinésio, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.” (página 5)

Stop necessário. Já foi dito que uma das vertentes da literatura de Lima Barreto é a sátira menipéia. Por este termo, tão importante para teóricos como Bakhtin, entende-se a sátira dirigida às ideias e não a indivíduos. Tendo origem nos escritos de Menipo, escritor da Grécia antiga, influenciou nomes como Dostoiévski, Machado de Assis, Voltaire, etc.

Em O homem que sabia javanês a sátira menipeia já começa no título. Não se trata da crítica a um indivíduo, não; ataca a cultura brasileira, o vira-latismo brasileiro – como diria o saudoso Odorico Paraguaçu, personagem de Dias Gomes – privilegiadora de falsos sábios, títulos vazios e discursos empolados.

Castelo torna-se professor de javanês. E logo arruma um emprego, o de lecionar esta língua ao doutor Manoel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga. Tudo ia bem, até o Barão lhe perguntar como havia aprendido o idioma javanês:

“Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javanês. Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi javanês.” (página 13)

Mais não é possível dizer, sem aprofundar em spoilers. O conto é divertidíssimo mesmo hoje em dia, pois que, no fundo, no fundo, pouca coisa mudou...

Disse que li pouca coisa do Barreto. Não me sinto muito à vontade ao dizer ter lido apenas O triste fim de Policarpo Quaresma (outra crítica social devastadora). E tanta é a atualidade deste romance que poderia ensinar a muitos praticantes de desvarios militantes atuais um pouco de comedimento.

O homem que sabia javanês. Uma das mais saborosas leituras que já fiz. E – digna de nota – a edição da Cosac & Naify é ótima. Os desenhos de Odilon Moraes quase contam o conto de Lima Barreto por imagens. Em formato grande, das Graphic novels, o volume faz parte da série dedinhos de prosa, uma coleção de textos leves, destinadas principalmente a despertar o gosto pela leitura em jovens-adultos (Young-Adults).

Adorei. 

Nenhum comentário: