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domingo, 19 de fevereiro de 2012

Comemorações de 200 anos bem merecidas

Caro leitor, responda rápido: o que têm em comum Dostoiévski, Kafka e Karl Marx, além de terem escrito livros? Nada, não é mesmo? Bem, na verdade, algo une essa seleção de nomes um tanto ímpar. Todos eles foram fortemente influenciados por ninguém menos que Charles Dickens. Marx disse, certa feita, que Dickens “havia proclamado mais verdades de fundo social e político que todos os discursos de profissionais da política, agitadores e moralistas juntos”.

O escritor inglês criou em torno de dois mil personagens em seus 14 romances publicados, entre eles Oliver Twist, E­be­nezer Scrooge, David Copperfield e o Sr. Pickwick. Mas a grande presença em seus escritos foi a Londres vitoriana. Ele usava a imaginação poderosa para ampliar os problemas humanos, embora tivesse também o idealismo de melhorar a sociedade.

A Inglaterra vitoriana do século XIX inaugurou os serviços de metrô, criou ferrovias e fez a revolução industrial. O número de habitantes da capital do Império Britânico triplicou. Nesta paisagem urbana tão dinâmica, mas cheias de diferenças sociais e problemas não resolvidos, Dickens exerceu sua capacidade de criar personagens críveis, focando suas histórias nos desvalidos habitantes dos porões e subúrbios da cidade.

Seus livros não são meros divertimentos, são verdadeiras críticas sociais às injustiças londrinas. Londres já não é a mesma, a era vitoriana teve seu fim, mas as análises dickenianas são válidas até hoje, para muitos outros contextos urbanos.

Portanto, nada mais acertado que as comemorações ao redor do mundo, relativas aos duzentos anos de nascimento de Charles Dickens, completados em 07/02/2012. Autor de poderosas e referenciais obras como Oliver Twist, David Copperfield, As Aventuras do Sr. Pickwick, Um Conto de Natal, Grandes Esperanças.

O famoso crítico literário Harold Bloom, no livro “Gênio — Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura”, nos diz que “Na Era da Informação, Dickens perde apenas para Shakespeare e Jane Austen, na condição de únicos escritores patentemente capazes de sobreviver ao domínio dos novos meios de comunicação. Em todo o mundo, Dickens perde apenas para Shakespeare, na qualidade de autor universal”.

Dickens criou enredos em que a intervenção do sobrenatural acontecia, como por exemplo, no Um Conto de Natal. Nele, Ebenezer Scrooge, um avarento, é atormentado por um fantasma. Há também, na trajetória do nosso inglês, um fato intrigante a acrescentar uma dose de insólita pimenta após sua morte, aos 58 anos, em 09/06/1970. Ele havia iniciado o projeto de um livro novo, a que batizou de O Mistério de Edwin Drood em 12 fascículos, dos quais se publicaram apenas seis. A morte interrompeu, caprichosamente, o planejamento.

Dois anos depois do passamento de Charles, um jovem mecânico americano, chamado Thomas R. James, declarou ter mantido contato com o espírito de Charles Dickens e fora designado para terminar o que o autor inglês tinha começado. Dessa forma, sem ser escritor e de cultura quase nula, o mecânico trancava-se em seu quarto, caía em transe e escrevia.

100.000 palavras depois, o romance estava completo. Não é nem preciso dizer, foi um sucesso estrondoso. Os críticos literários mais eminentes afirmam que não há como identificar o estilo dos dois — Dickens vivo e Dickens “morto” — pois, na verdade, não há dois estilos, apenas um: o do Dickens de sempre. Sir Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, manifestou-se quanto ao assunto. James não tinha talento literário, sua educação terminara aos 13 anos de idade e concluiu que, de qualquer maneira, o inculto Thomas havia adquirido a peculiaríssima maneira de pensar de Dickens e conseguido o domínio do inglês em pouquíssimo tempo.

O Mistério de Edwin Drood ganhou uma versão completa em língua portuguesa, pela primeira vez, em janeiro de 2011, traduzido pelo escritor espírita Herminio C. Miranda, editora Lachâtre, 538 páginas, gerando muita polêmica pela inclusão da sequência psicografada.

Mistérios de lado, de acordo com o crítico Peter Akroyd, Charles Dickens perde, no quesito universalidade, para William Shakespeare e Jane Austen. Mas, contrariamente aos dois outros ingleses, foi o autor de Oliver Twist o primeiro escritor a ganhar foros de universalidade. Convenhamos, é uma façanha e tanto!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Resenha nº 4 - A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón

Carlos Ruiz Zafón nasceu em Barcelona, em 1964, e tornou-se uma das maiores revelações literárias dos últimos tempos com A Sombra do Vento, finalista dos prêmios literários Fernando Lara 2001 e Llibreter 2002. Suas obras foram traduzidas para onze idiomas. O autor mora em Los Angeles e colabora nos jornais La Vanguardia e El País.

Barcelona, 1945. Estamos na Espanha franquista da primeira metade do século XX, no período que medeia os últimos raios de luz do modernismo e as trevas do pós-guerra. Daniel Sempere tem onze anos e é levado por seu pai, um livreiro, ao Cemitério dos Livros Esquecidos. Daniel deve escolher um livro e encontra o A Sombra do Vento, de um tal Julián Carax. Ao lê-lo, apaixona-se pelo livro e deseja saber mais sobre o autor. Julián Carax, aliás, Julián Fortuny, no entanto, está envolto em mistério. Alguém vem destruindo sistematicamente todos os volumes existentes, uma espécie de serial killer de livros. Daniel não tem percepção disto, mas se mete numa investigação por conta própria, arriscada e sem volta, às vezes ajudado pelo amigo Fermín Romero de Torres. Logo, o que seria apenas um levantamento da biografia de Julián se transforma numa busca por desvendar mistérios cada vez mais complicados. Por que Fermín entra em pânico à simples menção do inspetor Fomero? O que esconde Nuria Montfort, ex-secretária da editora Cabestany (a editora de Julián)? Que ligação com os mistérios sobre Carax pairam sobre a velha mansão dos Aldaya?

Ótimos personagens  fazem parte de uma galeria cuidadosamente constituída: Daniel Sempere, um menino de onze anos, personagem principal, filho de um livreiro; Fermín Romero de Torres, um adorável canastrão e ex-mendigo; o inspetor Fomero, sombra que atormenta toda a narrativa; Clara Barceló, o primeiro amor de Daniel; Nuria Montfort Masdedeu, de ações enigmáticas e segredos não revelados. Julián Carax, o autor do livro intitulado A Sombra do Vento, tido como morto em Paris. Fermín Romero, como ele mesmo diz, tomou o nome emprestado de um toureiro, pois precisa se esconder sob um pseudônimo. A descrição de sua figura me lembra algo de outro personagem-referência da literatura espanhola: Dom Quixote de La Mancha. O insistente inspetor Fomero, de certa forma nos resgata aquele outro inspetor irritantemente aplicado, o inspertor Javert de Os Miseráveis, de Victor Hugo. Aliás, no decorrer da história há uma referência-homenagem a Hugo. Bea, irmã de Tomás, amigo de Daniel, cresce na narrativa, a partir de um ponto, junto com o protagonista da história. Miquel Moliner é um dedicado amigo de Julián Carax e se tornará peça importante na pesquisa de Daniel. A dedicação dele ao escritor nos comove.

O ambiente gótico à Edgar Allan Poe aparece na ambientação das aventuras numa Barcelona soturna e miserável. Há lugares secretos, como o Cemitério dos Livros Esquecidos, guardado por Isaac, uma figura arrepiante, à Bóris Karloff.

O aspecto de folhetim amoroso acontece nas relações de Daniel Sempere com as várias mulheres da história: primeiro, Clara Barceló; depois, Nuria Montfort; finalmente, uma relação com Bea, que tem tudo para dar errado. A sequência rápida das ações nos remete aos romances de aventuras de outro escritor francês, Alexandre Dumas.

Nessa trama cheia de idas e vindas, em que mistérios conduzem a outros mistérios, acompanhamos a maturação de Daniel Sempere, de um menino de onze anos à idade adulta, suas experiências amorosas e sexuais, suas descobertas de mundo.

A Sombra do Vento. Editora SUMA de letras, 399 páginas.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Resenha nº 3 - A menina que roubava livros, de Marcus Zusak

“A menina que roubava livros” é um ótimo romance. O enredo não é cronológico, isto é, os fatos são narrados, às vezes, fora de sua sequência temporal, em regime de memória. É um livro sobre a importância das palavras. A personagem central, a pequena Liesel Meminger,  rouba livros porque, por meio dos vocábulos, precisa encontrar um sentido para sua vida e ela não tem dinheiro para comprar os livros. Realmente, a importância da palavra é tanta que não é demais anotar: Hitler levou a Alemanha à guerra e ao nazismo por causa de seus discursos inflamados.

O narrador-observador é a Morte, a “ceifadora de vidas”. Mas ela não é sinistra ou macabra; tem até, para com a raça humana, uma relação de admiração. Ela se apresenta:

“Sou só garganta... Não sou violenta. Não sou maldosa. Sou um resultado” (pág. 13).

A admiração está expressa às páginas 478:

“uma última nota de sua narradora: os seres humanos me assombram.”

Markus Zusak é dono de um estilo inventivo, que introduz notas curtas e pequenas antecipações no corpo da narrativa. É um Best-seller com milhares de livros vendidos. A narradora instaurada por ele, a Morte, chega a ser poética em muitas passagens. Ela assiste ao drama dos personagens com misto de respeito, consternação e responsabilidade para com seus deveres de carregar as almas. Ao todo, são três vezes que ela encontra Liesel Meminger, e o motivo pelo qual a narradora seleciona a história de Liesel é que

“há uma multidão de histórias (um mero punhado, como sugeri antes) que permito que me distraiam enquanto trabalho, assim como as cores. Eu as apanho nos lugares mais azarados, mais improváveis, e me certifico de recordá-los enquanto executo meu trabalho. A Menina que Roubava Livros é uma dessas histórias” (pág. 477).

O pano de fundo dessa narrativa é a Segunda Guerra Mundial. Alemanha, a pequena localidade de Molching, perto de Munique. A menina Liesel Meminger, logo após presenciar a morte do irmãozinho no colo da mãe, é abandonada por ela. Seus pais adotivos são Rosa Hubermann, uma dona de casa rabugenta e Hans Hubermann, pintor de paredes e acordeonista nas horas vagas.

Liesel tem uma estranha compulsão: ela rouba livros. E logo de início, vai para a casa dos pais adotivos, levando um livro roubado: “O Manual do Coveiro”, subtraído enquanto um coveiro, em um momento de distração, deixa-o cair na neve.

Residente à Rua Himmel, 33 (localizada na parte pobre da cidade), Liesel recebe o carinho e atenção de Hans, com quem se afiniza. Ele lê “O Manual do Coveiro” para ela, um pouco a cada noite.

Outros livros vão se seguindo; o próprio Hans lhe traz, certa feita, dois livros que foram trocados por cigarros. Ele toca acordeão para ela. A menina que roubava livros faz amizade com Rudy Steiner; tornam-se companheiros inseparáveis. Ele é uma espécie de namorado que a menina nunca teve.

Os Hubermann dão abrigo a Max Vanderburg, um judeu que é escondido no porão da casa. Logo, Max e Liesel tornam-se amigos. Max escreve para a pequena amiga uma história intitulada: “A Sacudidora de Palavras”, com os relatos frequentes que ela faz para ele.

Este livro é outra prova feliz de que best sellers podem ser ótimas obras de literatura. Não se pode lê-lo um pouquinho a cada dia; minha leitura avançou, em vários dias, pela madrugada. Eu tinha de saber se em algum ponto da narrativa, haveria o enfrentamento, cara a cara, entre a Morte-narradora e a pequena Liesel.