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quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Resenha nº 127 - Uma Ilha Chamada Livro, de Heloisa Seixas


Resultado de imagem para livro uma ilha chamada livroTítulo original: Uma Ilha Chamada Livro – Contos Mínimos Sobre Ler, Escrever, Contar
Autora: Heloisa Seixas
Editora: Galera/Record
S/Ed.
Copyright: 2009
ISBN: 978-85-01-08123-0
112 páginas
Gênero: Contos (Minicontos)
Bibliografia da autora (incompleta): Pente de Vênus: histórias do amor assombrado (contos) – 1995; A porta (romance) – 1996; Diário de Perséfone (romance) – 1998; Através do vidro (novela) – 2001; Contos mínimos (contos) – 2001; Pérolas absolutas (romance) – 2003; Sete vidas: sete contos mínimos de gatos (contos) – 2003; Histórias de Bicho Feio (infantil) – 2006; Frenesi: história de duplo terror (contos) – 2006; O lugar escuro (romance) – 2007; O prazer de Ler (contos) – 2011; Pena e Pincel (crônicas, com Leonel Brayner e Ruy Castro) – 2011; Contos mais que mínimos (contos) – 2011; Terramarear (textos sobre viagens, com Ruy Castro) – 2011; Crônicas para ler na escola (crônicas) – 2013; Uns cheios, outros em vão (crônicas e receitas) – 2013; Carmen, a grande pequena notável (biografia infantil, com Julia Romeu) – 2014; O oitavo selo (romance) – 2014. 

Heloisa Seixas é uma autora nascida no Rio de Janeiro, em 26/07/1952. É jornalista, formada pela Universidade Federal Fluminense, tendo trabalhado na agência de notícias O Globo. Posteriormente, atuou na assessoria de imprensa da ONU. É também tradutora. Sua estreia como escritora se deu em 1995, ao lançar o livro de contos Pente de Vênus: Histórias do Amor Assombrado. A editora Record, um ano mais tarde, publicou seu primeiro romance, A Porta. Durante sete anos, Heloisa Seixas manteve a coluna Contos Mínimos no JB – Jornal do Brasil.

Um dia qualquer, de uma semana qualquer, mês de setembro. Numa livraria de shopping, eis que este fuçador bibliômano investe seu tempo de espera em mais uma prospecção literária. Não desejava gastar muito, afinal, era preciso economizar e especificamente o mês de setembro já estava no trinco econômico-financeiro. Resultado: vamos à bacia das almas – o saldão dos livros. Às vezes, a gente consegue coisas boas por preços módicos. Não deu outra: saí de lá com este Uma Ilha Chamada Livro, por R$ 7, 95. Trouxe para casa também outros dois volumes: A Caixa, de Günter Grass, por R$ 14,90 e Dias Perdidos, de Lúcio Cardoso, por R$ 9,95. E, imediatamente após a compra, saboreando um expresso na cafeteria próxima, iniciei a leitura do livro da Heloisa Seixas.

Os minicontos deste Uma Ilha Chamada Livro estão no limite poroso entre contos curtos e crônicas. São uma invenção relativamente recente, afinada com estes tempos de pressa em que vivemos. O mais relevante, porém, é que apesar de serem textos curtos, não perderam a qualidade literária. Heloisa Seixas escreve com a sensibilidade a serviço tanto do leitor quanto dela própria, como autora.
O volume se apresenta divido em três partes: 1) Ler; 2) Escrever; 3) Contar. Este tríptico já nos adianta alguma coisa sobre o que nos aguarda: serão textos sobre as atividades enunciadas por estes três verbos tão simpáticos.
“Imaginem um menino. Um menino qualquer, nem gordo nem magro, nem alto nem baixo, nem bonito nem feio, mas de uma inteligência aguda e de olhos bem grandes, abertos para o mundo, todos os mundos. Ele era assim, Filho único, era capaz de ficar horas a fio trancado no quarto lendo, pois tinha nos livros seus grandes companheiros. Não que fosse um menino solitário, isto não. Tinha amigos, jogava bola, namorava. Mas ler era um prazer especial, que desfrutava com avidez.” (página 9)
Heloisa inicia o primeiro conto da primeira parte, a sobre Ler. Senti-me tão identificado que tive inveja nada branca: aquele texto musical bem que poderia ser meu. Tinha gosto e cheiro de infância. Da minha infância de leitor iniciante.
O estilo de Heloisa é assim. Tem um quê de literatura infantil, da simplicidade do dizer dos livros realmente literários. Ela explicita o seu amor pelos livros com muita sinceridade – um amor difícil de entender para aqueles que vêm no livro apenas seu aspecto exterior, um conjunto de páginas, cheias de letras de um texto lido apenas uma vez e logo depois esquecido. Não. Ela, como eu, ama os livros pela alma que eles têm:
“Esse amor pelos livros me comove, um amor que venho aprendendo a desenvolver nos últimos anos. Antes, guardava meus livros de qualquer jeito, sem qualquer ordem nas estantes. E, ao lê-los, pouco me importava se os abria demais, se os virava ao contrário, se deixava a ponta da capa se enrolar numa feia orelha.” (página 18)
Já sei, posso senti-lo, esta não será uma resenha strictu senso. Está mais para um depoimento de amor partilhado. Você, leitor talvez exigente e muito sério, talvez não goste deste tom, por isso o estou avisando: você pode escolher outro texto, mais analítico que apaixonado. Saberei compreender.
Em tons altamente poéticos, segue nossa amiga, desta vez inaugurando a segunda parte, a de Escrever:
“Há, no seio de uma ostra, um movimento – ainda que imperceptível. Qualquer coisa imiscuiu-se pela fissura, uma partícula qualquer, diminuta e invisível. Venceu as paredes lacradas, que se fecham como a boca que tem medo de deixar escapar um segredo. Venceu. E agora penetra o núcleo da ostra, contaminando-lhe a própria substância. A ostra reage, imediatamente. E começa a secretar o nácar. É um mecanismo de defesa, uma tentativa de purificação contra a partícula invasora. Com uma paciência de fundo de mar, a ostra profanada continua seu trabalho incansável, secretando por anos a fio o nácar que aos poucos se vai solidificando. É dessa solidificação que nascem as pérolas.” (página 44)
Será que Heloisa Seixas, por acaso, não leu o A Elegância do Ouriço, de Muriel Barbery (resenha neste blogue)?
E vai concluindo que as pérolas são, então, o resultado de uma contaminação. Associa: a arte também. Ela é quase sempre a transformação da dor. E como se saltasse sobre as pedras precárias dentro d’água, Heloisa pontilha que
“Fico lembrando de quando comecei. Estava com quase quarenta anos e de repente alguma coisa dentro de mim clamou por ser escrita, mas clamou ferida, gritando. E eu cedi. As pessoas às vezes me perguntam se não é preciso coragem para começar a escrever tão tarde, mas responde que não foi por coragem que comecei, e sim por covardia. Tinha medo de morrer. Ou melhor, tinha certeza de que morreria se não escrevesse.” (página 44)
A terceira parte, Contar, se inicia com o texto Conto Mínimo, em que Heloisa nos conta de um acidente com um avião japonês. A aeronave não explodiu, sequer pegou fogo, não se partiu no ar. Apenas caiu, quase planando em seu destino inexorável de chocar-se com a terra. Quando a equipe de resgate chegou ao local, encontrou somente restos e mortes. Entretanto, diz a autora, entre tantos corpos, havia anotações em guardanapos, pedaços de cadernetas de passageiros que, diante do inevitável, quiseram deixar suas experiências relatadas por escrito. E conclui, num texto pungente, mas fácil de se ler:
“É a pura verdade. Somos todos – não só artistas, mas todos nós – como aqueles japoneses desesperados. Vivemos tentando deixar nossas pegadas, apressadas entre o início e o fim da viagem, sem saber ao certo o que acontecerá. E a vida passa num sopro, uma rajada, não dura mais do que alguns minutos diante do arco da eternidade.
É como um conto mínimo.” (página 90)
Uma Ilha Chamada Livro – Contos mínimos sobre ler, escrever e contar é assim. Pelo estilo, pela sinceridade apaixonada, pela coragem de revelar o amor, para mim, se irmana poeticamente a O Profeta, de Gibran Kalil, a A Pérola, de John Steinbeck, O Pequeno Príncipe, de Vincent de Saint-Éxupery. São livros que podem até ser acessados pela razão analítica do leitor, mas se dirigem mais ao coração, à alma de quem os lê. E por isso fazem um bem danado. São verdadeiros oásis neste deserto desencantado de nossas vidas.
Taí: me ocorreu um título-tema para um livro, coisa com a qual estou tentando atinar há um tempão: Um Oásis Chamado Livro. Gostei. Duplamente obrigado, Heloisa!
Nota (muito afetada pelos sentimentos): 10.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Resenha nº 126 - O Leitor Como Metáfora, de Alberto Manguel


Resultado de imagem para livro o leitor como metáforaTítulo original: The Traveler, The Tower and The Worm
Título em português: O Leitor Como Métáfora – O Viajante, A Torre e A Traça
Autor: Alberto Manguel
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: SESC
ISBN: 978-85-9493-056-9
Copyright: 2017
Gênero: Ensaios
148 Páginas
Bibliografia do autor (incompleta): Dicionário de lugares imaginários (The Dictionary of Imaginary Places), 1980; Uma história da leitura (A History of Reading), 1996; Bride of Frankenstein, 1997; No bosque do espelho (Into the Looking Glass Wood), 1998; A Visit to the Dream Bookseller  (Ein Besuch beim Traumbuchhändler), 1998; Reading Pictures: A History of Love and Hate, 2000; Kipling: A Brief Biography for Young Adults, 2000; Comment Pinocchio apprit à lire (How Pinocchio Learned to Read), 2000 ; A Reading Diary, 2004; Com Borges (With Borges), 2004; A Biblioteca à Noite (The Library at Night), 2006; Nuevo elogio de la locura (At the Mad Hatter’s Table), 2006 ; Magic Land of Toys, 2006; The City of Words (CBC Massey Lecture), 2007; Homer's The Iliad and The Odyssey: A Biography, 2007; A Reader on Reading, 2010; The Traveler, the Tower, and the Worm: the Reader as Metaphor, 2013; Uma História da Curiosidade (Curiosity), 2015.
Alberto Manguel nasceu em 1948, em Buenos Aires, Argentina. Cosmopolita, passou a infância em Israel, estudou na Argentina e viveu no interior da França, na Espanha, na Inglaterra e na Itália. É também cidadão canadense. Atua como romancista, editor, organizador de antologias, ensaísta, tradutor. Contribui regularmente com artigos em revistas e jornais. Consta que, sendo filho de embaixador, foi criado por uma ama, pois os pais se separaram quando Manguel era uma criança. Apesar de ter origem judaica, considera-se um ateu. Adquiriu um antigo imóvel no interior da França (Mondion), onde construiu uma biblioteca de aproximadamente 30.000 volumes. Atualmente, vive em Buenos Aires, onde é diretor da Biblioteca Nacional.
Alberto Manguel é figurinha para lá de conhecida nos meios acadêmicos voltados a estudar o fenômeno da leitura. E, pelo menos para mim, uma coisa que lhe empresta certa aura é ele ter sido leitor para Jorge Luís Borges. Não, a preposição para, aí atrás não está errada; é leitor para Jorge Luís Borges, mesmo, e não de. Estou falando do período em que Borges, já cego, contratou Manguel para ser os olhos dele. Manguel lia para Borges.
De Alberto Manguel, já resenhei aqui no blogue A Biblioteca À Noite. Caro leitor, você não gosta de ler livros teóricos, estou certo? Se é assim, peço-lhe que considere a possibilidade de se deixar encantar pelos textos deste escritor. Na faculdade, tive a experiência (comum à quase totalidade dos estudantes) de lidar com textos teóricos importantes, substanciais, mas produzidos com uma aridez de dar azia no cérebro. Parecia que os doutos autores não estavam nem aí para seus leitores obrigatórios; descarregavam sua erudição sobre dado assunto e pronto – o leitor, se quisesse, que se virasse.
O Leitor Como Metáfora – O Viajante, A Torre e A Traça – mas não só ele – conta com um texto teórico com fluidez, gostoso de ler. Alberto é um erudito, mas põe a sua erudição a serviço do leitor, e isto transparece na segurança da pesquisa e das citações necessárias. Seus ensaios parecem uma conversa muito legal entre um professor e seus alunos interessados. Interessados porque o assunto encanta a ambos. O ponto de vista deste livro é o do leitor, daí a explicitação da metáfora tríplice do título: o leitor como viajante, como habitante de uma torre de mármore e como traça.
Há uma introdução, em que o autor cita Nietzsche em epígrafe, dizendo “não existe o que se possa chamar de fatos. Apenas interpretação.” Ela vai servir à perfeição para o que Alberto pretendeu ao planejar seu projeto deste livro. Senão, vejamos como ele inicia sua introdução:
“Até onde sabemos, somos a única espécie para a qual o mundo parece ser feito de histórias. Biologicamente desenvolvidos para ter consciência de nossa existência, tratamos nossas identidades percebidas e a identidade do mundo à nossa volta como se elas demandassem uma decifração letrada, como se tudo no universo estivesse representado num código que temos a obrigação de aprender e compreender. As sociedades humanas estão baseadas nessa suposição: de que somos, até certo ponto, capazes de compreender o mundo em que vivemos.” (página 13)
Esta maneira de ver perpassa toda a filosofia, de Platão a nossos dias. A grande questão: o mundo é o que é e precisamos interpretá-lo, dar-lhe uma significação, ou muito diferente, o mundo não é e nós o criamos como tal, e ao significá-lo, criamos realidades? E me lembro de Yoval Harari, em seu Sapiens - Uma Breve História da Humanidade (já resenhado aqui): a capacidade de efabulação fez o predomínio do Ser Humano sobre as demais espécies. Mas, como diria Belchior, em uma de suas canções de cunho filosófico, “deixando a profundidade de lado”, o que Manguel está nos dizendo nesta introdução é que a tradição letrada é de fundamental importância na interpretação de mundo, mas não é, per se, satisfatória; é preciso a metáfora como força de transferência:
“A linguagem mal toca a superfície da nossa experiência e transmite de uma pessoa a outra, num código convencional supostamente compartilhado, notações imperfeitas e ambíguas que dependem tanto da inteligência cuidadosa daquele que fala ou escreve como da inteligência criativa daquele que ouve ou lê. Para incrementar as possibilidades de entendimento mútuo e criar um espaço mais amplo de sentido, a linguagem recorre a metáforas que são, em última instância, uma confissão do insucesso da linguagem em comunicar diretamente. Por meio de metáforas, experiências num campo são iluminadas por experiências em outro.” (páginas 13/14)
E é, portanto, firmando o pé nas metáforas, que Alberto Manguel faz este estudo da relação dos leitores com seus objetos de desejo, e por extensão, da relação dos leitores com o mundo.
A primeira parte vai tratar do leitor como viajante, ou a leitura como reconhecimento de mundo. Abordando principalmente Santo Agostinho (aquele, de Confissões) e Dante Alighieri (o autor da Divina Comédia), o ensaísta vai aproximar o leitor ao peregrino, em sua jornada de conhecimento do mundo:
“Dante, que escreveu sua Comédia no exílio, devia saber em que sentido amplo ele próprio era um peregrino. Deve ter percebido a proximidade entre sua vida itinerante e a leitura itinerante, e conhecido o amargor (como ele diz na Comédia) de comer “pão estrangeiro com gosto de sal” e de “subir e descer escadas estrangeiras”. “Perambulei como um mendigo virtualmente por todas as regiões por onde se estende esta nossa língua”, diz ele em Convívio, lendo seu caminho Itália afora. Durante os vinte longos anos de exílio, até o último dia de sua vida, a biblioteca de Dante consistia nos poucos livros que ele carregava consigo de um refúgio a outro, aos quais eram ocasionalmente acrescentados os que seus anfitriões lhe emprestavam – uma coleção cambiante que refletia os diferentes estágios e experiências dos vários locais de seu banimento.” (página 51)
A segunda parte, O leitor na torre de marfim, caracteriza, como diz o subtítulo, A leitura como alheamento do mundo. Nesse caso, o ato de ler se reveste de escapismo, de devaneio. E, ajuntando a este alheamento o toque da melancolia ou cansaço de mundo, Manguel aborda, como não podia deixar de ser, o Hamlet, de William Shakespeare:
“Para Hamlet, encerrado na casca de noz de sua biblioteca, o mundo real, o mundo fora dos livros, é um pesadelo aprisionador. Neste sentido, o fantasma do pai de Hamlet surge como uma libertação apavorante. O fantasma demanda implicitamente que Hamlet feche seus livros, saia do seu espaço confinado de palavras e encare os fatos dolorosos, que, como sua “carne sólida, sólida demais”, recusam-se a dissolver-se. Hamlet (diz-lhe o fantasma) precisa relembrar o pai, o rei assassinado, e não “a matéria mais ordinária” escrita em seus livros. Desse modo Hamlet é confrontado brutalmente com uma realidade (ou antes com uma “irrealidade” que é mais real que o real) que substitui os “caros registros triviais” que ele escolheu copiar, com uma realidade terrena que suplanta o palavreado de seus livros e “catálogos”. Esses “catálogos”, mantidos habitualmente por estudantes no tempo de Shakespeare, eram cadernos de citações nos quais eles supostamente deviam copiar exemplos inspiradores e ensinamentos morais dos clássicos.” (página 82)
A terceira parte recebe o título de A traça – O Leitor Como Inventor do Mundo. Como não podia deixar de ser – o leitor experimentado associaria quase de imediato a imagem do leitor-traça com Dom Quixote, de Cervantes – um solitário que, de tanto ler, enlouquece e cria para si um mundo à maneira do mundo dos cavaleiros andantes de antigamente.
Falando sobre o arrebatamento que um livro pode causar no leitor, Alberto Manguel nos explicita:
“E, no entanto, há leitores para os quais o mundo na página adquire tamanha vivacidade, tamanha verdade, que suplanta o mundo dos sentidos racionais. Excluindo os casos clínicos, todo leitor já sentiu, ao menos uma vez, o poder avassalador de uma criatura de palavras, apaixonando-se por certo personagem, detestando visceralmente outro, tendo a esperança de emular um terceiro. Santo Agostinho nos conta que, em sua juventude, chorou pela morte de Dido [primeira rainha da cidade de Cartago, apaixonada por Eneias, que a deixa e ela acaba se apunhalando]. Os vizinhos de Robert Louis Stevenson em Samoa imploraram para que ele lhes mostrasse a garrafa que guardava o diabo. E ainda hoje os Correios de Londres recebem cartas endereçadas ao Sr. Sherlock Holmes no número 221B da Baker Street.” (página 113)
Alberto nos explica, o amante dos livros tornou-se o Louco dos livros e converteu-se na figura da Traça dos livros, estas últimas paródias daquele leitor arrebatado. Para estas traças (para usar a última detratação), o que importa é ler, é o ato da leitura em si.
E, discorrendo sobre o protótipo do leitor arrebatado, nosso ensaísta nos alerta, no que se refere ao “cavaleiro da triste figura”:
“É assim que, em 1605, Cervantes definiu o Louco dos Livros que conhecemos como Dom Quixote. E, no entanto, quando Cervantes retratou seu bravo cavaleiro, não estava propriamente definindo o leitor enlouquecido por seus livros. Em vez disso, Cervantes estava definindo uma sociedade loucamente temerosa de suas próprias inverdades. Sem dúvida, como nos é dito no capítulo de abertura, Alonso Quijano acredita na realidade factual das histórias que lê. Mas então, ao longo do romance, fica claro que a visão de mundo de Dom Quixote é algo mais complexo que a mera ilusão. Em várias ocasiões, quando está a ponto de se deixar arrebatar pela fantasia urdida por suas leituras, Dom Quixote, com lúcida intuição, supera o hiato entre o que é real no mundo e o que é real em sua imaginação.” (página 126)
Em sua última parte, Conclusão, Alberto Manguel fecha suas reflexões nos trazendo Gustave Flaubert, citando o romance inacabado, Bouvard e Pécuchet – dois idiotas simplórios que pensam poder entender o mundo ao se porem a ler todos os livros já publicados.
Num belo parágrafo que funciona como síntese da discussão proposta pela obra, citando o Madame Bovary, do mesmo Flaubert, Anna Karenina, de Tólstoi e novamente o Dom Quixote, pondera Manguel:
“Emma Bovary devora livros e imagina que as vidas ficcionais são dela própria, que ela é uma heroína de Balzac ou Sue. Dom Quixote devora livros e molda seu comportamento de acordo com certos códigos ficcionais que julga justos e apropriados, embora saiba que não é nenhum Lancelote, nenhum Amadis [de Gaula]. Anna Karenina não vê na ficção que lê nem personagens ideais nem ideais de conduta, mas simplesmente vidas imaginárias que zombam dela e a atormentam com a vida que ela própria não está vivendo. Não a vida ficcional, mas sua própria vida, não a lady Mary, mas a da própria Anna Karenina, menos uma imagem do mundo que um exemplo de ação do mundo, um exemplo de como é viver, ao mesmo tempo consciente de que a vida lida não é sua própria vida. E assim como Anna Karenina compreende o que significa ser lady Mary sem acreditar que ela mesma seja lady Mary, compreendemos o que significa ser Anna Karenina sem sermos de fato Anna Karenina.” (página 138)
Peço desculpas ao leitor deste blogue, me excedi realmente no tamanho das transcrições. Tenho a desculpa de que resenhar um livro teórico não é o mesmo que resenhar um livro de ficção. Não se trata, aqui, de reduzir um enredo ao seu estado mínimo, dando leves impressões de personagens. Resenhar um livro teórico, e principalmente um da riqueza e erudição de O Leitor Como Metáfora significa rastrear-lhe os pontos principais de argumentação, de exposição de ideias e de referências. Poderia ser mais sintético? Penso ser possível maior concisão. Não fui capaz, entretanto; talvez, por causa do meu entusiasmo com o texto. É um magnífico livro – reconheço – para quem ame literatura e se disponha a entender um pouco melhor o processo do qual participa.
Para terminar, meu caro amigo leitor, já o imagino com um sorriso malicioso nos lábios e nos olhos, me indagando diretamente: “e você, senhor Cleuber, que leitor é você?” Certo, leio mais do que a média dos leitores brasileiros, mas não me considero uma traça. Não leio qualquer coisa em qualquer tempo. Também não me vejo como um leitor numa torre de marfim, realizando uma leitura escapista, até porque faço resenhas e as publico neste blogue. Ao refletir sobre as leituras, claramente reflito sobre o mundo. Então, salvas as licenças poéticas, considero-me um leitor do primeiro time metafórico, o leitor viajante. Concorda?
Outra nota 10, com entusiasmo.


quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Resenha nº 125 - Como Um Romance, de Daniel Pennac

Resultado de imagem para livro como um romance
Título original: Comme un roman
Título em português: Como um Romance
Autor: Daniel Pennac
Tradutor: Leny Werneck
Editora: Rocco
Copyright: 1992
ISBN: 85-325-0425-6
Edição: 4ª
Páginas: 167
Gênero: Ensaio
Bibliografia do autor: Au bonheur des ogres, 1985; La Fée Carabine, 1987; La Petite Marchand de Prose, 1989; Monsieur Malaussène, 1995; Des Chrétiens et des maures, 1996; Monsieur Malaussène au théâtre, 1996 ; Aux fruits de la passion, 1999 ; Les enfants de Yalta, 1978 ; Messieurs les enfants, 1997 ; Le dictateur de Hamac, 2003 ; Chagrin de l’école, 2007 ; Comme un roman, 1992 ; Gardiens et Passeurs, 2000, entre outros.

Daniel Pennacchioni, mais conhecido como Daniel Pennac, nasceu em Casablanca, Marrocos, em 01/12/1944. É filho de um oficial francês que servia nas colônias francesas. Professor de língua francesa em uma escola de Paris e muito apaixonado pela pedagogia, morou no Brasil, em Fortaleza, por dois anos, na década de 1980. É um aficionado por nosso país. Entre seus títulos editados no Brasil estão A Pequena Vendedora de Prosa (La Petite Marchand de Prose), Senhor Malaussène (Monsieur Malaussène), Frutos da Paixão (Fruit de la Passion), Esses Senhores Os Meninos (Monsieurs les enfants), Kamo e a agência Babel (Kamo et L’Agence Babel), Kamo e a ideia do século (Kamo et L’Idée du Siècle), O olho do lobo (L’oeil du Loup), Vira-lata virador , além deste Como Um Romance (Comme un roman). Em 2007, ganhou o prêmio Renaudot por Mágoas de Escola (Chagrins de l’école) – um romance autobiográfico.
Como um romance não é um romance. É um ensaio. E o que será um ensaio? Vejamos. De acordo com a definição corrente,
Um ensaio acadêmico é um gênero textual que tem como objetivo discutir determinado tema. Ele consiste na exposição das ideias e pontos de vista do autor sobre determinado tema, com base em pesquisa referencial – ou seja, o que outras pessoas também dizem sobre aquilo – e conclusão. Busca-se originalidade no enfoque, sem, contudo, explorar o tema de forma exaustiva.
O título nos fornece uma chave interpretativa: como um romance. Escrito à maneira de um romance. Portanto, um ensaio em sentido bastante amplo que, a rigor, a universidade não conseguiria classificar como um verdadeiro ensaio. Tem, do documento acadêmico, a intenção de analisar criticamente um problema levantado – no caso, por que não lemos tanto –; a semelhança com o gênero textual, entretanto, apresenta um hibridismo com os textos narrativos (romances). Logo, Daniel Pennac se propõe a analisar e discutir um problema real, as causas de tanta gente não gostar de ler. Ele o faz por meio do artifício de tornar o texto leve, poético, sarcástico às vezes, caminhando para o lado de uma narrativa longa. Talvez, a melhor caracterização seria um ensaio poético. Não, decerto não; ensaios críticos e ao mesmo tempo poéticos não existem. Desisto. Mas Daniel Pennac faz isto conscientemente, como veremos mais tarde.
Este livro é um queridinho dos professores de língua e literatura. E de cara já vou dando um motivo: é uma delícia de se ler. Veja como o autor escreve, na página 13, por onde ele começa, efetivamente, seu ensaio:
“Ele dormiu em cima do livro. A janela, de repente, lhe pareceu imensamente aberta sobre uma coisa qualquer tentadora. Foi por ali que ele decolou. Para escapar ao livro. Mas é um sono vigilante: o livro continua aberto diante dele. E no pouco que abrimos a porta de seu quarto, nó o encontramos sentado junto à escrivaninha, seriamente ocupado em ler. Mesmo se nos aproximamos na ponta dos pés, da superfície de seu sono ele nos terá escutado chegar.”
Pennac nos diz que o problema vem de longe. Antigamente, no tempo em que o livro era difícil de se ter, pois o livro era muito caro e não andava na mão de qualquer, os leitores eram malvistos pela falta de costume de se ler. Mulheres, principalmente, não liam, pela simples razão que, durante muito tempo, elas não eram alfabetizadas. Ora, para que gastar tempo com a alfabetização delas, se elas não iriam trabalhar fora? Sua competência, segundo se pensava, era cuidar do lar e dos filhos e para isso, não havia necessidade de tal investimento.
Vieram, entretanto, os tempos mais amenos. Fizemos questão de contar histórias para nossos filhos:
“Sejamos justos. Nós não havíamos pensado, logo no começo, em impor a ele a leitura como dever. Havíamos pensado, a princípio, apenas no seu prazer. Os primeiros anos dele nos haviam deixado em estado de graça. O deslumbramento absoluto diante dessa vida nova nos deu uma espécie de inspiração. Para ele, nos transformamos em contador de histórias. Desde o seu desabrochar para a linguagem, nós lhe contamos histórias. E essa era uma aptidão em que nos desconhecíamos. O prazer dele nos inspirava. A felicidade dele nos dava fôlego. Para ele, multiplicávamos os personagens, encadeávamos os episódios, refinávamos as armadilhas... Como o velho Tolkien para seus netos, inventamos para ele um mundo. Na fronteira entre o dia e a noite, nos transformávamos em romancista, só dele.” (página 17)
Evoca J. R. R. Tolkien, de O Senhor dos Anéis. E segue, dizendo no capítulo 4, que ensinamos a ele (nosso filho) tudo sobre o livro numa época em que ele não sabia ler. Lá para os lados do capítulo 27, página 67, o autor dispara sua arma sarcástica:
“E assim vão nossas existências: ele traficando fichas de leitura, nós face ao espectro de sua repetência, o professor em sua matéria ultrajada... E viva o livro!”
A defesa é que somente existe a possibilidade de gostarmos de ler quando lemos por prazer. Descompromissadamente, sem metas a atingir. Ler por gosto. Daniel nos relata sua própria experiência como professor: começou a ler livros em voz alta, para sua classe. Nada de cobrar provas aos alunos, sobre os livros lidos:
“E obrigado também, senhores Márquez, Calvino, Stevenson, Dostoiévski, Saki, Amado, Gary, Fante, Dahl, Roché, vivos ou mortos! Nenhum, entre esses trinta e cinco refratários à leitura, esperou que o professor terminasse qualquer de seus livros para terminá-lo antes dele. Para que deixar para a próxima semana um prazer que se pode ter numa noite?” (página 111)
Mas a grande, genial sacada de Daniel Pennac está reservada para a parte IV do livro, sob o título O que lemos, quando lemos e o subtítulo esclarecedor, ou os direitos imprescritíveis do leitor, sussurrado entre parênteses. E ele os desfia, um a um:

  1. O direito de não ler.
  2. O direito de pular páginas.
  3. O direito de não terminar o livro.
  4. O direito de reler.
  5. O direito de ler qualquer coisa.
  6. O direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível).
  7. O direito de ler em qualquer lugar.
  8. O direito de ler uma frase aqui e outra ali.
  9. O direito de ler em voz alta.
  10. O direito de calar.
O tal “bovarismo” a que Pennac se refere, no sexto mandamento do leitor, acima, refere-se ao livro Madame Bovary, de Gustave Flaubert e é assim que o termo é explicado:
“É assim, grosso modo, o “bovarismo”, esta satisfação imediata e exclusiva de nossas sensações: a imaginação infla, os nervos vibram, o coração se embala, a adrenalina jorra, a identificação opera em todas as direções o cérebro troca (momentaneamente) os balões do cotidiano pelas lanternas do romanesco.” (página 157)
Como um romance é uma obra que paga o que promete, um gostoso livro de se ler. E esta figura de linguagem usada logo aí atrás, gostoso de se ler, é uma sinestesia (quando duas sensações se misturam, como no exemplo retrocitado, paladar e visão). Ah, se todos os livros que já li na vida fossem sinestésicos! Teria sido muito mais fácil...
Só não corri o risco de odiar ler porque, quando fui para a escola – temível lugar das leituras obrigatórias – eu já conseguia ler alguma coisa, naturalmente pouco e mal, mas já lia. E a vontade, o encantamento de ler mais e mais havia sido instaurado por minha irmã, ela mesma uma leitora do tipo traça. A língua francesa, aprendi outro dia na sala de aula, tem um termo apropriadíssimo para quem devora livros e livros, comme moi: papivore. Pois sou um papivore. E de carteirinha. O feiticeiro Pennac misturou os gêneros para melhor seduzir o leitor.
Se você desejar ler o meu exemplar de Como um romance, de certo Daniel Pennac, sinto muito, não vou emprestá-lo. Não o vendo, não o empresto, não o doo: egoisticamente, esse volume é meu, só meu. Se quiser, que compre o seu...
Nota 10, com entusiasmo.