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segunda-feira, 16 de maio de 2022

Resenha nº 191 - A Intrusa, de Júlia Lopes de Almeida



Título: A Intrusa

Autora: Júlia Lopes de Almeida

Editora: Pincipis

Copyright: 2019

ISBN: 978-85-380-9217-9

Gênero literário: romance

Origem: literatura brasileira

 Projeto Escritoras Brasileiras Esquecidas - 1

Júlia Valentim da Silveira Lopes de Almeida nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 1862. Filha do médico de nome Valentim José da Silveira Lopes, o qual se tornou, mais tarde, Visconde de São Valentim. Sua mãe era Adelina Pereira Lopes. Portugueses emigrados para o Brasil, foram morar em Campinas, São Paulo. Lá, Júlia Lopes publicou seus primeiros textos no jornal Gazeta de Campinas. Na época, literatura não era vista como algo que uma mulher séria pudesse fazer; numa entrevista a João do Rio, ela até confessara adorar fazer versos, mas isto ela o fazia às escondidas.

No ano de 1886, Júlia foi viver em Lisboa. Em 1887, ela se casou com o também poeta Filinto de Almeida. O marido era diretor da revista A Semana Ilustrada e ela passou a ser colaboradora assídua desta publicação. A escritora participou também da criação da Academia Brasileira de Letras – ABL.

Como era vetada a composição do quadro de escritores com mulheres na ABL, Júlia não foi indicada. Em seu lugar, o marido Filinto de Almeida foi homenageado. Posteriormente, ele teria reconhecido ser a esposa a verdadeira merecedora da cadeira ocupada por ele. Júlia faleceu em 30/05/1934, aos 71 anos de idade, no Rio de Janeiro.

Sua vasta obra compõe-se, entre outras publicações: A Família Medeiros, 1892; Memórias de Marta, 1899; A Viúva Simões, 1897; A Falência; A Intrusa, 1908; Cruel Amor, 1911; A Silveirinha, A Casa Verde (com Filinto de Almeida); Pássaro Tonto, 1934; O Funil do Diabo (Novelas e contos), Traços e Iluminuras, 1887; Ânsia Eterna, 1903; A Isca (quatro novelas), 1922; A caolha.

Este A Intrusa é de 1908. Estamos vivendo, nesta época, com o declínio da monarquia no Brasil, a chamada República Velha. Uma mudança de regime nada popular, com forte crise econômica. O apoio à instauração desta mudança veio das classes mais abastadas, que viam nela uma maneira de recuperar os prejuízos advindos da abolição da escravatura.

O primeiro capítulo vai introduzir alguns dos personagens importantes para a história:

“Por essa feia noite de chuva, conversavam em casa do advogado Argemiro Cláudio, no Cosme Velho, o seu grande amigo padre Assunção, o deputado Armindo Teles e o Adolfo Caldas, homem de quarenta anos, sem profissão determinada, mas muito bem aceito nas rodas políticas e literárias, que frequentava assiduamente.

Tinham jantado tarde, fumavam agora na biblioteca de Argemiro, sentados à mesa do pôquer.

Menos por virtude que por cansaço, padre Assunção não quisera tomar parte no jogo e andava pela sala sacudindo o pano da batina a cada impulso de suas largas passadas. Era alto, magro, anguloso, de uma cor pálida; e nas suas feições acentuadas, em que melhor condiria o sarcasmo, havia uma tal expressão de candura, que Adolfo Caldas costumava dizer:

— O riso do Assunção cheira a rosas brancas.

O dr. Argemiro, advogado, conforme rezavam os diários do Rio, dos mais distintos do nosso foro, jogava por jogar, sem vivo interesse, só para pretexto de chamar os amigos à sua casa de viúvo e de lhe dar uma palpitação de alma que lhe ia faltando...” (página 8)

Aqui temos algumas informações para a leitura deste livro. O dr. Argemiro Cláudio é um advogado bem-posto socialmente, pois a boa casa é dele; temos, também o padre Assunção, bondoso e dono de senso crítico.

A esposa do dr. Argemiro faleceu. O viúvo tem uma filha, Maria da Glória, criada pelos avós, já idosos. O padre Assunção tem verdadeira adoração pela menina e visita a propriedade rural dos responsáveis por Glória com alguma frequência.

Entretanto, Argemiro começa a sentir falta da filha consigo. Para tanto, ele precisa de alguém que tome conta da menina e da casa:

“— Preciso de uma mulher em casa, que não seja boçal como uma criada, mas que não tenha pretensões a outra coisa. Saberei indicar-lhe o seu lugar. Nem quero vê-la, mas sentir-lhe apenas a influência na casa. É a minha primeira condição.” (página 15)

Dentro deste contexto de regras sociais mais rígidas, como acontece neste início do século XX, o que Argemiro pretende não deixará de suscitar comentários maldosos. Entretanto, ele está disposto a concretizar suas ideias. O negro Feliciano, serviçal em sua casa, não o contenta; as coisas permanecem desarrumadas, os móveis cheios de pó e ainda, ele gasta mais do que o necessário, refestelando-se com compras para ele mesmo. 

O dono da casa põe, então, um aviso no jornal e a única candidata para o cargo é dona Alice:

“O advogado levantou os olhos e viu entrar na sala uma figura meio encolhida, que lhe pareceu ter um ombro mais alto que o outro e cujas feições não viu, porque vinham cobertas com um véu bordado e ficavam contra a claridade.” (página 18)

Entendidos quanto às características do cargo, inclusive quanto à de não se verem, o contrato de trabalho é assinado. Ele poderá, agora, trazer sua filha Glória para conviver com ele pelo menos alguns dias.

Em conversa com sua sogra, mãe de sua esposa falecida, Argemiro aprendera a chamá-la de mamãe. O narrador do livro traça o perfil desta senhora, sem evitar alguns traços caricaturais:

“A baronesa era uma senhora gorda, alta, de lindos olhos negros e cabelos completamente brancos. Tinha as faces flácidas, a carne do pescoço descaídas, a boca larga, a testa curta e ainda roubada pela espessura das sobrancelhas escuras. Cosia sentada em uma cadeira de balanço, ao lado de uma mesa redonda, coberta de um pano escuro e onde floriam em um vaso, um ramo de crisântemos pálidos.” (página 35)

Toda esta caracterização tem razão de ser. Bons romancistas utilizam particularidades de um personagem quando a ele vão, palavras à frente, contrapor outras características. Por isso, a baronesa – mulher de um tempo que vai passando, abrindo espaço para outras propostas sociais – responde às ideias de Argemiro:

“— Não é razão. A mulher hoje precisa ser instruída, solidamente instruída, mamãe, e eu quero, eu exijo que minha filha o seja.

— Está direito, mas sempre quero saber se o sacrifício do estudo tem compensações verdadeiras! Andar atrás de uma pobre criança o dia inteiro, fazendo-a conjugar verbos e compor e recompor orações gramaticais, atirando-lhe para dentro da cabeça nomes de terras e complicações matemáticas; curvar-lhe a espinha em cima de mapas e linhas geométricas, cansar-lhe a vista antes do empo, roubando-lhe a liberdade que dá saúde, alegria e ousadia, olhem que não me parece obra de amor nem de caridade! Eu, cá por mim, confesso: fujo da sala de estudo quando vejo meu marido chamar a neta para a lição...” (página 37)

Esta baronesa é, portanto, não só o símbolo de uma época em decadência; é uma mulher acomodada ao papel de que a investiram o consórcio com um homem de posses, o título de nobreza (estes títulos nobiliárquicos muitas vezes eram vendidos) e não deseja mudanças.

Claro está, a baronesa – vigilante desde sempre da promessa do genro, em manter-se sem amar outra, feita no leito de morte da filha – não vê com bons olhos a contratação de uma governanta jovem, solteira, que vá viver em casa dele... uma indecência e um perigo! Juntam-se a isto os ciúmes, pois sua querida neta Maria da Glória teria contato com outra mulher, além dela: dona Alice poderá ganhar o coração da menina.

Argemiro, entretanto, vive atrelado às recordações da sua querida morta:

“Sentou-se ao lado de uma mesa a ler um jornal, mas a folha descaiu-lhe das mãos e ele pôs-se a olhar para um retrato da mulher, suspenso em um cavaletezinho de prata fosca. A saudade da sua morta revivia todas as vezes que vinha ver a filha; sentia-lhe a falta então, poderosamente. Se ela vivesse! Ah, se ela vivesse correria tudo suavemente!

Argemiro levantou o retrato e contemplou-o de perto. Quantas vezes beijara aquela fronte larga e pálida, emoldurada por cabelos loiros, que tão se adivinhavam na fotografia! Que pena não ter Glória herdado a finura daquelas feições, tão bem delineadas, tão puras, nem a doçura daquele caráter, que só o ciúme conseguia agitar. Pobre ciumenta, quantas torturas inventava para seu martírio! Que imaginação a dela para criar fantasmas de amores...” (página 43)

Mancomunada com o negro Feliciano, que via suas regalias diminuírem dia a dia, a baronesa influencia negativamente as impressões da neta, para que ela resista à tal governanta, aquela intrusa.

Não poderia dizer muita coisa mais, no tocante ao enredo, sem prejudicar a leitura deste romance. O leitor já terá deduzido que a vilã desta história será a baronesa. Se prestou atenção à figura do padre Assunção, suspeitará que ele terá um papel mediador no conflito armado. E terá razão. Mas nem tudo pode um religioso que, a custo de mediar tanta confissão dentro da igreja, termina por conhecer tão bem a alma humana e seus amores...

E, a respeito deste personagem de batina, o narrador nos conta alguma coisa:

“Padre Assunção morava para os lados da Lapa, numa casa encravada no morro de Santa Teresa, velha e esguia como uma torre, com frente de dois andares para uma rua tranquila e fundos rentes a um jardinzinho bem-cultivado.

Entre o habitante e a habitação havia certas analogias de forma e de caráter. Tinham ambos a silhueta fina e o aspecto melancólico e fatigado. E se as paredes grossas, da velha construção, davam a ideia da firmeza que o vulto ossudo do padre sugeria, as rosas brancas entrelaçadas junto ao telhado, no jardim do morro, fariam lembrar a doçura dos seus sentimentos impregnados de lealdade...” (página 159)

Muito interessante a passagem acima, não, meu caro leitor? Por que a autora se incomodaria em tão bem caracterizar este personagem coadjuvante, se ele não tivesse importância? Seria um mau romance, perdendo tempo em polir um padre Assunção sem maiores funções dentro da trama.

O meu caro leitor não se engana. Ele terá, sim, sua função. Na verdade, será fundamental para o desenlace do romance. E mais, guardará, ele mesmo, um segredo cuja revelação só se fará ao final.

Há finais fechados – os preferidos do grande público – em que todas as pontas são amarradas e tudo é explicado; há finais abertos – sempre com risco de desagradar leitores comuns – onde nem todas as pontas são atadas e cada um pode concluir pela sua escolha, dentro do que a história permitir. Há, enfim, os finais sugeridos – esses mais característicos, acredito, de certos livros de suspense – em que, igualmente, nem todas as pontas se amarram, cria-se uma tensão, mas exige-se que o leitor feche a última ponta solta, mas visível.

Pistas são fornecidas durante a história. O leitor atento, então, vai juntando-as em sua cabeça e, ao final, tem um sorriso malicioso: não disse que terminaria assim? Então, vem a astúcia de uma autora e lhe tira o sabor da vitória. Esticou o suspense, mas não afirma a solução. Apenas deixa-a entrever, a autora, por sua vez, com o tal sorriso malicioso: deixo-te a pensar; não te digo tudo, decifra-me ou te devoro...

A Intrusa. Neste friozinho que se apossou de Belo Horizonte, foi um prazer. E, ainda, Júlia Lopes de Almeida tem como marca estilística longas frases subordinadas. Hoje, já não se usam mais assim. Longos trechos com frases subordinadas exigem um domínio alto na expressão do pensamento, na construção das frases, para não se perder a coerência. Júlia faz isto com tranquilo domínio. Daí, algo de que gosto: pontos-e-vírgulas cirúrgicos.

Não deixe de o ler, meu caro, este A Intrusa. Não compreendo porque ficou ele tanto tempo sem reedição. 

domingo, 15 de maio de 2022

Projeto Escritoras Brasileiras Esquecidas

 

 

O que pode tornar uma autora, um autor esquecidos? Mesmo se eles forem bastante populares em seu tempo? Para estas perguntas podemos pensar em algumas causas.

Primeiro, pode ser que novos movimentos literários lancem no limbo autores antes conhecidos. Foi o que aconteceu, por exemplo, com Coelho Neto. Bom escritor, tendo sido considerado “o príncipe dos escritores”, sofreu intensa perseguição – hoje, dizemos sofreu apagamento – pelo rolo compressor do modernismo. Coelho Neto foi autor muito apreciado antes daquele movimento; escreveu um romance gótico, uma espécie de Frankenstein brasileiro, Esfinge.

Segundo, podemos falar do desinteresse comercial das editoras. Não desejo ser injusto, sei das dificuldades enormes por que passam as casas de publicação literária para sobreviverem do que publicam, num país com tão poucos leitores per capta por motivos que não me cabe analisar aqui. Muitas vezes, certo autor/autora que já não vende tanto pode ser preterido por alguém que possua maior apelo de vendagem – mesmo que a qualidade, por vezes, não chegue nem perto da obra preterida.

Terceiro – o que é muito pior – o esquecimento por serem, simplesmente, mulheres, autoras. A maioria das doze artesãs da palavra que integram esta minha lista teve o período de maior evidência entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX. Todas as doze autoras são falecidas.

Quarto – argumento que se vincula ao terceiro, acima – por serem mulheres em defesa de propósitos considerados incômodos pela sociedade. Aliás, este argumento, aplicado aqui especificamente às mulheres, se aplica também em épocas de ditaduras, de esquerda ou de direita, a artistas em geral. Parece que ditadores morrem de medo das expressões artísticas, tanto que as vigiam ou as proíbem: Index Librorum Prohibitorum (Lista de Livros Proibidos).

Encontrei escritoras brasileiras esquecidas de maneira sistemática, o que me motivou a este projeto. Estou inconformado com a qualidade das obras e da importância histórica das publicações e o limbo a que foram atiradas autoras e suas produções. Para tanto, vou me apoiar no excelente trabalho da professora Nelly Novaes Coelho, Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, livro este esgotado na editora.

Abordarei, dentro do Projeto Escritoras Brasileiras Esquecidas, uma publicação de cada autora selecionada, para resenha neste blogue. Serão elas, levantadas em pesquisa prévia: Dinah Silveira de Queirós (A Muralha), Carolina Maria de Jesus (Casa de Alvenaria), Júlia Lopes de Almeida (A Intrusa), Maura Lopes Cançado (Deus é Hospício), Carolina Nabuco (Chama e Cinzas), Emília Freitas (A Rainha do Ignoto), Adalgisa Nery (A Imaginária), Ana Cristina César (A Teus Pés), Teresa Margarida da Silva e Orta (As Aventuras de Diófanes), Maria Firmina dos Santos (Úrsula), Maria Benedita Bormann (Lésbia) e Emília Moncorvo Bandeira de Melo (A Luta).

Várias destas queridas escritoras tinham posição muito definida na defesa do abolicionismo e do pré-feminismo (aspirações de igualdade de direitos sempre tiveram defensoras, embora não constituíssem ainda um movimento com pauta de reivindicações), dentro de uma cultura conservadora e machista. Vale lembrar, Lisístrata é uma comédia grega de Aristófanes, em que mulheres, fartas da guerra, iniciam uma greve sexual de consequências... para lá de socialmente incômodas.

Felizmente, os tempos são outros ou os assuntos que antes incomodavam a sociedade hoje são mais deglutíveis ou não fazem mais estardalhaço. É assim que estas mulheres vêm sendo resgatadas, em publicações disponíveis. Emília Freitas teve seu volume A Rainha do Ignoto magnificamente republicado pela editora Wish. É inacreditável o alheamento perpetrado, mas trata-se do primeiro romance com temática de ficção científica/fantasia escrito no Brasil. Talvez, apesar da minha indignação, isto pouco importe, já que ficção científica de autores brasileiros não encontra espaço de publicação entre nós ou, se o encontra, é sempre reduzido.

Seja como for, vêm ganhando notoriedade Maria Firmina dos Reis, com o seu Úrsula e Carolina Maria de Jesus, com Quarto de Despejo. Que bom, desejo contribuir ainda que minimamente para torná-las mais conhecidas.

Surpreendentemente, pelo menos para mim, dei com o resultado de uma pesquisa na internet, não sei se verdadeira (suponho que o seja): homens não leem obras escritas por mulheres. Quero ser exceção. O único gênero que reconheço em literatura é o das obras literárias em si: gênero conto, romance, novela, poemas, etc.